• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: A OBRA CONSTRUINDO CONSCIÊNCIAS

2.4 Contraste de olhares à luz da experiência de produzir uma coleção didática

O relato das lembranças faz um apelo à memória evocando certos fatos ou vivências que de algum modo nos marcaram, pontos estes onde a significação da vida se concentra. Ecléa Bosi, em sua obra Memória e Sociedade: lembranças de velhos, buscou nas narrativas de seus personagens essas marcas e a riqueza implícita em cada palavra ou gesto. Ao nos aproximarmos dos autores da coleção Construindo Consciências, a espelho da supracitada autora, desejamos eternizar essas lembranças, visto a sua importância para o cenário educacional. Esses livros representam uma nova forma de se pensar o ensino de Ciências no Brasil.

Não posso deixar de registrar a fala de uma das personagens desta investigação, que se volta às suas memórias afirmando “[...] já se passaram tantos anos que eu não lembro tanta coisa, talvez o que fica é o que importa” (Maria Emília Caixeta de Castro Lima - Junho/2016). Atentei-me a esses relatos para apresentar a história da coleção e suas situações ímpares, considerando o campo de visão de cada autor e o seu modo peculiar de narrar os fatos. Mairy

78 e Helder assumiram como ponto de partida os momentos de consultoria direcionados a formação de professores. Selma apresentou-me o Centro Pedagógico e suas peculiaridades e como a escrita da coleção estava, de alguma forma, atrelada a esse espaço. Por sua vez, Orlando e Maria Emília referiram-se a parceria com a professora Selma no desenvolvimento de unidades temáticas. As narrativas ora se entrelaçaram, ora seguiram caminhos solitários, principalmente quando se voltaram as individualidades de cada narrador.

A atuação profissional no campus da UFMG, seja na Faculdade de Educação, no Colégio Técnico ou no Centro Pedagógico, aproximaram os autores, proporcionando o desenvolvimento de projetos e trabalhos comuns. O livro Construindo Consciências foi fruto de um esforço conjunto de amigos, que trabalharam articulando formação de professores e pesquisas em ensino de Ciências, e que ao defenderem suas ideias foram instigados a produzir uma coleção didática que representasse a concepção do grupo sobre currículo e Educação em Ciências. Os livros foram construídos pautados em críticas ao modelo tradicional de ensino, sobretudo a memorização e fragmentação de conteúdos. A organização de um grupo multidisciplinar propôs romper com esse tradicionalismo, mostrando que é possível ensinar Ciências de forma integrada, assumindo como premissas o raciocínio, a argumentação e o aprendizado por interação. As leituras comuns sobre concepção prévia, estudos do discurso, história da ciência, perfis conceituais e outras voltadas para a Educação em Ciências, estão presentes nos textos e atividades elaboradas. Essas ideologias são alguns dos laços que uniram o grupo e que culminou na escrita da referida coleção.

Uma frase comum no início dos relatos era o fato de não se atentarem a datas, mas ficou evidente a cronologia. De forma geral, os autores descreveram momentos que antecedem a escrita do livro propriamente dita, contextualizaram e se localizaram no tempo e espaço. Mairy, Helder, Orlando e Maria Emília atuavam na formação de professores através de consultorias em redes particulares de ensino ou em projetos da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Selma, além disso, como docente do Centro Pedagógico da UFMG, acolhia professores em formação. Em meio a pesquisas e atuações profissionais, os autores se dedicaram também aos cursos de mestrado ou de doutorado no período da escrita da coleção.

Essencialmente, o grupo estava em contato direto com professores da educação básica. Nesse contexto, materiais de apoio foram elaborados e muito do que se produziu para as consultorias, foram testados no Centro Pedagógico, sendo inseridos posteriormente na coleção. A experiência com os docentes e o modo como trataram os resultados dessas

79 experimentações tornou-se mais um diferencial dos exemplares. Com um certo orgulho, todos relataram os cuidados na escrita da assessoria pedagógica, que não representava apenas um gabarito pronto e acabado. Fundamentados em pesquisas em Educação em Ciências, discutiram algumas dificuldades que os professores poderiam encontrar ao longo do seu trabalho e sugeriram formas de intervenção visando a superação de possíveis obstáculos. A assessoria pedagógica era, e se mantem, um instrumento de formação docente.

Os livros sempre foram bem avaliados pelo PNLD, com apenas uma ressalva. Cada autor, a seu modo, exprimiu suas insatisfações quanto a isso, por se tratar de uma parte que não lhes cabia: o projeto gráfico. Em seus relatos, Mairy, Helder, Selma, Orlando e Maria Emília apontaram as deficiências da editora ao tratar a diagramação e a escolha das imagens que compuseram os exemplares. E mais, revelaram a impotência do grupo diante dessas circunstâncias. Pouco puderam opinar. Para os autores, a parte mais difícil do processo de escrita dos livros didáticos foi lidar com as questões editoriais e suas imposições.

Outro fato que causou desconforto entre as partes foi a falta de divulgação da proposta pedagógica dos livros. Aqueles professores que os adotaram em escolas públicas, acredita-se, foi por conhecerem o grupo e não pela ampla divulgação da editora. Maria Emília relatou que como no primeiro momento a coleção foi adotada por instituições privadas de ensino, os vendedores não acreditavam que a escola pública pudesse fazer um bom uso desses livros, apresentando somente as coleções que já seriam tradicionais no mercado. Mairy, Helder e Orlando criticaram o papel das editoras e as políticas públicas voltadas para a avaliação, escolha e distribuição de livros didáticos no Brasil. Tornou-se um mercado vantajoso e lucrativo, impossibilitando a reutilização de livros já editados.

Em meio a críticas e ressalvas, questionei a alguns autores o que foi mais fácil nesse processo de escrita da coleção Construindo Consciências. Recordo-me do Helder quando afirmou que não há nada fácil, mas prazeroso e interessante, resultando em desafios intensos e no crescimento intelectual; do sorriso fácil do Orlando ao se referir à boa convivência com o grupo e ao aprendizado, e do olhar convicto da Maria Emília ao definir esse momento com uma única palavra: criar.

Os autores tinham conhecimento sobre a resistência dos professores a essa nova proposta para o ensino de Ciências. Afinal, exigia dos envolvidos uma mudança de postura e o rompimento com anos de uma educação tradicional e memorística. Selma, em seu relato, atribuiu essas dificuldades a formação. A coleção Construindo Consciências é constituída por livros com um caráter desafiador, organizado em temáticas e com abordagens

80 multidisciplinares, trazendo um discurso arrojado de Educação em Ciências. Apesar de pouco adotado, deixa um legado para todos que tiveram contato com a coleção e que comungam das ideias propagadas pelos autores através dos livros. O primeiro passo já foi dado rumo a uma nova maneira de se pensar o ensino de Ciências. Como disse Maria Emília, talvez o livro não tenha nascido no tempo certo, mas está registrado na história dos Livros Didáticos de Ciências e vivo na literatura.

81