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1. INTRODUÇÃO

1.2. Contribuições da Psicanálise para o DI/DIMPC

A “metodologia” e a ética do DI são tributárias da psicanálise do campo de Freud e Lacan, com a diferença essencial de que seu campo não é o da clínica, mas o de uma práxis onde a psicanálise é “aplicada” (COSTA-ROSA, 2007, 2008). Conceitos centrais, como sujeito, desejo, inconsciente, transferência, demanda, etc., são reutilizados levando em conta as peculiaridades do campo, ou seja, da assistência social. As recomendações freudianas sobre a formação dos analistas também são consideradas no percurso de formação do trabalhador-

59Pereira (2011) destaca a diferença entre o saber e o conhecimento produzidos na intercessão-pesquisa (DI/DIMPC). “Trata-se da diferença entre saber (sempre inconsciente ou referente ao não-sabido das Formações Sociais) e conhecimento, esse arcabouço acumulado pela Ciência e mesmo a Filosofia, e que se pretende ligado diretamente à razão e à consciência. De modo aproximado se pode dizer que o operador no DI se remete ao saber de extração não cartesiana, ao passo que o conhecimento propriamente dito, cujo lócus comum é a Universidade tem sua extração derivada do Cógito Cartesiano” (ibidem, p.16).

intercessor: estudo da teoria (técnica, ética, dos processos e modos de subjetivação e do campo de atuação), da práxis de atendimento com os sujeitos, supervisão dessa práxis e, por fim, e não menos importante, a análise pessoal.

Em alguns casos, o trabalhador-intercessor situa-se de modo similar ao analista: pauta- se na ignorância douta, que não é uma posição de saber ou de compreender os sujeitos e sim uma posição de suposição de saber, aliás, uma posição de ignorância, mas não de ignorância

ignara (desconhecimento). Nesta ignorância douta, sabe-se que o saber tem seus limites – e o

seu limite é não saber pelo outro – considerando-se que a comunicação é baseada no mal entendido (QUINET, 2005). À medida que não nos entendemos, tentamos nos explicar, fazendo-nos entender, o que não significa que, como trabalhador-intercessor, não saibamos ou não compreendamos, simplesmente colocamos nosso conhecimento em suspenso para que os sujeitos possam produzir um outro saber, um saber-se.

O saber em psicanálise não é um saber intelectual ou do senso comum, muito menos uma mistura desses dois campos (ELIA, 2010); é um saber inconsciente, acessível por meio do dispositivo analítico ou do DI, ocorre apenas sob transferência. Logo, é um saber determinado pelas condições de sua elaboração, isto é, resultante das práxis dos próprios sujeitos envolvidos nessa produção. Em outros termos, segundo Elia (ibidem), o acesso ao saber inconsciente exige um trabalho (a práxis), um método, que, em nosso caso, é o dispositivo intercessor que requer um operador, o psicanalista (trabalhador-intercessor).

O intercessor é uma função, homóloga à do analista, assumida pelo trabalhador, mas em outro lócus. Isso não significa que o trabalhador-intercessor não possa dar explicações e orientações, fazer encaminhamentos, ministrar oficinas, organizar grupos, fazer palestras, seguir fluxos ou protocolos. O diferencial é que, quando o faz, visa um para além das demandas básicas ou mínimas (imaginárias) de auxílios, renda, benefícios, etc., já que visa a produção de sentido novo e o desvelamento das contradições pelos próprios sujeitos que demandam sua ajuda, devido a impasses sociais ou subjetivos que sofrem. Ele almeja a implicação subjetiva e sociocultural, pois as considera o motor do movimento e do protagonismo do sujeito. O restante, isto é, a inserção no grupo social mais amplo, no trabalho, no lazer, na renda, no emprego, vem por acréscimo. Ou melhor, na medida em que o sujeito vai-se implicando no processo, ele vai descobrindo modos de lidar com seus próprios impasses e com a parte que lhe cabe em todo o contexto. Não desconsiderando a formação sociocultural e subjetiva e as implicações que esta tem em sua vida, a diferença é que, por hipótese, ele possa conseguir minimamente diferenciar o que é dele e o que é do “outro”.

A adoção, por parte do trabalhador-intercessor, de algumas táticas, como interrogações, assinalamentos, escansões, proposições que desvelam e evidenciam os impasses dos sujeitos –produção de sentido novo –, não significa que ele deixe de fazer uso do conhecimento já acumulado, ou seja, do conhecimento que armazenou em sua prática, da literatura ou das leis e normas que regem o acesso aos direitos sociais. Ele utiliza essas táticas de acordo com o contexto e as intercala com a produção de saber novo, pois a utilização do conhecimento pode levá-lo a ocupar a posição de mestre detentor do saber que pode resolver, curar, ajudar e salvar os sujeitos. Em sua posição de intercessor, ele deve contribuir para implicar os sujeitos em suas questões, levando-os a assumir outra posição e, em vez de objetos de intervenção, tornar-se sujeitos da ação.

O conceito lacaniano de sujeito suposto ao saber (QUINET, 2005) auxilia-nos a entender a posição intercessora. Os sujeitos supõem no trabalhador-intercessor um saber que possa resolver, ajudar, curar, consertar, salvar e arrumar aquilo que lhes falta e que lhes falta por diversos motivos: não receberam, não tiveram, perderam, lhes foi roubado ou negado no decorrer de suas vidas. As táticas usadas pelo trabalhador-intercessor visam desvelar as contradições e ocupar as brechas existentes entre a encomenda social e a demanda social, possibilitando meios de diferenciá-las e, quando for o caso, referenciá-lasem seus respectivos locais de interlocução.

As táticas do trabalhador-intercessor visam abrir a dimensão de um não-saber que possibilita redimensionar a práxis, já que é um saber que não se sabe até o momento de seu aparecimento, diferentemente do modo de pesquisa positivista que valoriza a produção de conhecimento mecânico ou repetitivo. No DI pretende-se produzir um saber novo, acessível apenas aos que estão presentes no ato de sua produção. Cada sujeito, no ato da produção, apreende este saber de um jeito próprio. Portanto, o trabalhador-intercessor e o sujeito têm contato com o saber de um modo diferente, sendo que esse saber ainda poderá produzir sentido para além do momento da intercessão. Por hipótese, quando este sentido surge, tem potência de ressignificar uma série de acontecimentos anteriores, passados. Na medida em que é polissêmica, a fala pode conter sentidos para além dos imaginados pelos sujeitos, logo o modo de produção de saber do intercessor e a psicanálise possuem algumas características comuns.

Como o analista, o intercessor tem a particularidade de não se inserir totalmente no “coletivo de trabalho” (OURY, 2009), ou seja, ele vai até onde sua análise lhe permite ir, sem entrar em intrigas imaginárias que tendem a ocorrer nos estabelecimentos, ou sem ser pego pelos pressupostos básicos do grupo (luta e fuga, acasalamento e dependência). “A ética da

psicanálise, como sua teoria e sua técnica, exige que o último seja, sobretudo, uma bússola para o primeiro” (COSTA-ROSA, 2008, p. 7), já que é uma prática feita por muitos (DI- CIACCIA, 1999).

2. DISPOSITIVO INTERCESSOR COMO MODO DE PRODUÇÃO DO