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Controle do mérito administrativo

1. INTRODUÇÃO

3.4. SOBRE O CONTROLE DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

3.4.4 Controle judicial

3.4.4.1 Controle do mérito administrativo

O mérito administrativo, identificado com o conjunto de circunstâncias conexas ao “motivo” e ao “objeto” do agir estatal, por compreenderem “os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, equidade, razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo”, estaria imune ao controle judicial, sob pena de maltrato ao princípio da separação de poderes.134-135

Aqui a ênfase recai sobre o aspecto subjetivo do agente público, que tem de realizar a valoração de “dados contingentes”,136 que condicionam a prática administrativa, e que muitas vezes se relacionam a aspectos específicos do setor regulado, de modo que, como regra, a avaliação dos antecedentes fáticos que demandaram uma determinada solução técnica escapa da alçada judicial, justamente pelo cabedal de conhecimentos necessário para valoração de dados extrajurídicos. Sirva como exemplo o julgado do Superior Tribunal de Justiça que examinou medida liminar que, em sede de ação civil pública, manteve a “suspensão da cobrança de tarifa interurbana nas ligações telefônicas” realizadas entre localidades situadas na área de um mesmo município.

A decisão impugnada acabou por se utilizar do conceito descritivo de organização política, mencionando que o distrito não detinha autonomia em relação ao município sede, como forma a inviabilizar que a estrutura tarifária tivesse por base uma ligação interurbana.

O Ministro relator, contudo, destacou de início que a questão era “bem mais complexa do que sugerem as razões de decidir colacionadas no decisum hostilizado”, uma vez que a definição da “área local” para fins tarifários não levava em conta

134 FAGUNDES, M. Seabra. Controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 6. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 127-128. De igual modo, Hely Lopes Meirelles afirmava que “[e]m tais atos [os discricionários], desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrão de legalidade para aferir essa atuação”, ressalvando mais adiante a possibilidade de controle na hipótese de abuso ou desvio de poder. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 165-166).

135 Há, em sentido contrário, julgados que parecerem reconhecer a plena sindicabilidade dos aspectos discricionários dos atos administrativos, sob o fundamento de que a margem de liberdade da Administração Pública não é absoluta, de modo que “seus abusos podem e devem ser submetidos à apreciação do Poder Judiciário, a quem cabe o controle de sua legalidade, bem como dos motivos e da finalidade dos atos praticados sob o seu manto.” Não se pode extrair do julgado, todavia, uma linha conceitual segura, pois mais adiante registra ser vedado ao magistrado “declarar ilegal um ato discricionário tão só por discordar dos valores morais invocados pela Administração, quando ambos são válidos e admissíveis perante a sociedade.” (STJ, T1, REsp 1612931/MS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 20.06.2017).

136 FERRAZ, Sérgio. Controle judicial do mérito do ato administrativo. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). Perspectivas do direito público: estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 298.

necessariamente a organização político-geográfica dos municípios, de modo que deveria ser aplicada na espécie a Resolução 85/98 da Anatel, que considera a “área geográfica contínua de prestação de serviços, definida pela Agência, segundo critérios técnicos e econômicos, onde é prestado o STFC na modalidade local" (art. 3º, II).

Assim é que na ementa do aresto constou que “[a]o adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a atual configuração das ‘áreas locais’ estará o Poder Judiciário invadindo seara alheia na qual não deve se imiscuir.”137 De igual modo, o TRF da 2ª Região reconheceu que, como as Leis 8.987/95 e 9.247/96 e o Decreto 2.335/97 não fixam parâmetros para a revisão de tarifas de energia elétrica, deve a Aneel estabelecê-los por meio de ato administrativo, com a ressalva de que não cabe o controle judicial de decisões da Administração Pública que demandem conhecimentos específicos do setor regulado, uma vez que isso “envolve múltiplos fatores para os quais a agência reguladora encontra-se muito mais preparada tecnicamente do que os órgãos do Poder Judiciário.”138

No âmbito da Justiça Estadual, o TJSP manteve a decisão denegatória da segurança pleiteada contra o ato da Artesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte) que definiu determinado padrão de segurança para o sistema de cobrança de tarifas nas praças de pedágio, ao argumento de que “[n]ão cabe ao Poder Judiciário imiscuir-se na apreciação e motivação administrativa quando esta se mostrar razoável e adequada ante os elementos existentes, vedada a apreciação do mérito administrativo, a fim de aferir o grau de conveniência e oportunidade.”139

Em sentido próximo, o TJPR que manteve a decisão que indeferiu a tutela de urgência pleiteada em ação popular para suspender os efeitos do ato da Agência local que reajustou a tarifa dos serviços de fornecimento d’água e coleta de esgoto, constando da ementa que “[o] Poder Judiciário somente pode interferir nos critérios técnicos e contratuais utilizados pelo Munícipio, para a realização do reajuste da tarifa do transporte coletivo, quando constatada a existência de grave desequilíbrio.”140

Os julgados estaduais têm em comum a peculiaridade de que não reconheceram propriamente a impossibilidade de apreciação das questões técnicas que serviram de

137 (STJ, T2, REsp 572.070/PR, Rel. Min. João Otávio Noronha, j. 16.03.2004).

138 (TRF 2, 8ª Turma Especializada, Ap. 0029588-78.2003.4.02.5101, Rel. Marcelo da Fonseca Guerreiro, j. 18.12.2019).

139 (TJSP, 6ª Câmara de Direito Público, Ap. 1030761-08.2018.8.26.0053; Rel. Sidney Romano dos Reis, j. 07.10.2019).

lastro à edição dos atos impugnados, mas sim a insuficiência do acervo probatório coligido para lastrear exames mais aprofundados.

Com efeito, enquanto a Corte paranaense averbou que “[o] equívoco ou incorreção grosseira da tarifa somente seria possível a partir da prova pericial, ou seja, com a instrução probatória”, do aresto Tribunal paulista constou que “(...) a pretensão da impetrante esbarra em necessária dilação probatória com vistas a respaldar suas assertivas acerca de qual o sistema/padrão melhor atenderia às necessidades da Administração (...).

Há, nesse ponto, uma relevante distinção conceitual que permite divisar duas racionalidades diversas acerca do papel a ser desempenhado no controle da atividade regulatória: no primeiro caso (representado pelos acórdãos do STJ e do TRF 2), ficaram delineadas áreas infensas à apreciação judicial, ao passo que na segunda hipótese (correspondente aos acórdãos dos Tribunais estaduais) a resolução das controvérsias teve como fio condutor a presunção de legitimidade dos atos administrativos, sem que fosse afastada a possibilidade da eventual produção de provas tendentes a contrapor as conclusões das agências locais.141

O que se pode extrair dos julgados, ademais, é que o fato de as agências reguladoras se utilizarem cotidianamente de conhecimentos específicos, de cunho eminentemente extrajurídico, acarretou uma tendência de autocontenção do Poder Judiciário na seara de controle, sem contudo, a utilização de linhas argumentativas uniformes.142

141 Parte da doutrina reconhece a possibilidade de que, diante de questões que demandem conhecimento técnico, recorra o juiz a peritos versados sobre o assunto (DI PIETRO, Maria Silvia. O papel das agências reguladoras nos serviços concedidos. In: Parcerias na administração pública. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 145-146; MENDES, Conrado Hubner. Reforma do estado e agências reguladoras: estabelecendo os parâmetros da discussão. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 130-131; MOREIRA, Egon Bockmann. Agências reguladoras independentes, déficit democrático e a “elaboração processual de normas”. Op. cit., p 200-206). Aparentemente, este é também o entendimento adotado em LEHFELD, Lucas de Souza. Controle das agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2008, p. 360-363). Em sentido próximo, Marçal Justen Filho reconhece a possibilidade de o juiz examinar as deliberações técnicas dos órgãos reguladores e apontar a incorreção da escolha realizada, ressalvada “(...) a impossibilidade de o Judiciário substituir-se à autoridade administrativa no tocante ao exercício das escolhas discricionárias.” (In: O direito das agências..., op. cit., p. 591-592), entendimento igualmente esposado em Paulo Todescan Lessa MATTOS (In: O novo estado regulador no Brasil: eficiência e legitimidade. São Paulo: Singular, 2006. p. 151). 142 Há, no ponto, referência à chamada “discricionariedade técnica”, expressão que, segundo António Francisco de Sousa, é utilizada para significar a margem de liberdade que detém a Administração para tomar “decisões altamente técnicas”, não sujeitas a controle pela “falta de preparação dos juízes”, salvo nas hipóteses de “erro manifesto”. O autor ressalta que a doutrina não tem fundamento científico, a começar porque a expressão “decisão técnica” já constitui em si mesma um conceito indeterminado, sujeito à valoração do intérprete. Daí sustentar que sob a rubrica “discricionariedade técnica” há na verdade “juízos técnicos de verificação” (que só comportam a verificação da existência ou não de uma determinada situação, sem margens de liberdade decisória), “juízos de valor” (terreno da

Assim, ao examinar a decisão liminar que havia fixado o valor a ser pago por uma companhia para utilização da rede móvel de outra operadora (VU-M), o Superior Tribunal de Justiça assinalou:

(...) Em matéria eminentemente técnica, que envolve aspectos multidisciplinares (telecomunicações, concorrência, direito de usuários de serviços públicos), convém que o Judiciário atue com a maior cautela possível - cautela que não se confunde com insindicabilidade, covardia ou falta de arrojo (...).143

Por outro lado, registra-se a existência de entendimento diverso, no sentido de que “[é] possível ao Poder Judiciário anular atos administrativos editados no exercício da discricionariedade técnica quando atentatória à razoabilidade e proporcionalidade”,144 o que alteraria os parâmetros de aferição, pois que não haveria propriamente a circunscrição de áreas isentas de controle, mas ponderação entre valores constitucionais colidentes.