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UM NOVO CONTROLE JUDICIAL DA REGULAÇÃO?

1. INTRODUÇÃO

3.5 UM NOVO CONTROLE JUDICIAL DA REGULAÇÃO?

Como se viu, o controle judicial dos atos regulatórios se utiliza do mesmo ferramental empregado na fiscalização da Administração Pública em geral, apresentando as mesmas virtudes e se ressentindo das mesmas vicissitudes.

Nessa perspectiva, a referência a julgados eleitos por amostragem teve por escopo apenas ilustrar a constatação de que a origem do ato inquinado não implica a diferenciação das técnicas aplicadas, sem qualquer pretensão de representar um levantamento exauriente sobre o tema.

E isso acaba por trazer uma grave inconsistência sistêmica, pois sujeita a regulação a variáveis capazes de afetar significativamente sua uniformidade e eficácia. Com efeito, um estudo realizado sob os auspícios do Conselho Nacional de Justiça constatou que a estimativa de tempo de trâmite mínimo para a ultimação das ações envolvendo as agências reguladoras e o CADE era de 50 meses, enquanto que em relação aos casos encerrados (com trânsito em julgado) o tempo médio de tramitação foi de 36 meses, chegando até 69 meses “nos casos em que o Judiciário não confirma a decisão administrativa (a anula ou reforma parcialmente).”163

Por outro lado, nas hipóteses em que o Poder Judiciário examina aspectos substanciais “(diferentemente de uma decisão baseada em questões processuais), parece

161 (TRF2, 8ª Turma Especializada, Ap. 0000143-97.2012.4.02.5101, Rel. Marcelo Pereira da Silva, j. 11.11.2015).

162 (TRF 1, 5ª Turma, 0040950-15.2012.4.01.3800/MG, Rel. Souza Prudente, j. 21.03.2018).

163 MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque; AZEVEDO, Paulo Furquim; FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio (Coords.). Direito regulatório e concorrencial no poder judiciário. São Paulo: Singular, 2014, p. 17.

que o tempo de processamento é significativamente maior: por volta de cinco anos (58 meses).”164

Outra circunstância que afeta significativamente a segurança jurídica é o grau de mutabilidade das decisões judiciais (“índice de incerteza”), alteradas ao longo da relação processual por força de medidas liminares ou provimentos recursais, retirando o atributo de previsibilidade da ação regulatória.

E a conjugação desses dois fatores traz a reboque “(...) a sinalização adversa para as partes, tornando atraente a judicialização de questões regulatórias por aqueles litigantes que, embora não acreditem nas razões de mérito para reversão da decisão administrativa, podem ter benefícios com o atraso da intervenção das agências.”165 Por outro lado, o mesmo estudo constatou que “é elevado o grau de confirmação das decisões”166 das agências reguladoras, o que autoriza a conclusão de que a prática judicial assimilou a ideia de autocontenção diante das agências reguladoras,167-168 havendo mesmo o reconhecimento de um princípio da “deferência técnico- administrativa”169 a orientar o controle de atos praticados no exercício de competência discricionária.

164 MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Revisão Judicial de decisões das agências regulatórias: jurisdição exclusiva? In: PRADO, Mariana Mota (Org.). O judiciário e o estado regulador brasileiro. São Paulo: FGV Direito, 2016, p. 27.

165 MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque; AZEVEDO, Paulo Furquim; FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio (Coords.). Direito regulatório e concorrencial no poder judiciário. Op. cit., p. 19. 166 Idem, p. 17. O estudo revela, todavia, que o índice de confirmação das decisões regulatórias varia de forma considerável de acordo com a Agência que as profere: a) ANA – 100%; b) ANAC – 10%; c) ANATEL – 92%; d) ANCINE – 75%; e) ANEEL – 65%; f) ANP – 71%; g) ANS – 60%; h) ANTAQ – 71%; i) ANTT – 90%; j) ANVISA – 33%; k) CADE – 74%; CVM – 50% (p. 18).

167 Sirva como exemplo o que constou da ementa do julgado do TRF 1ª Região mencionado na nota de rodapé nº 57: “É de se ressaltar que a intervenção do Judiciário em atos concretos de reajuste tarifário, num sistema econômico sério, deve se mover pelo princípio da autorrestrição (‘self restraint’), sob pena de implicar verdadeira bomba de efeito retardado cujas consequências serão posteriormente sofridas pelo jurisdicionado (consumidor), que arcará com as diferenças de reduções tarifárias artificialmente impostas, mas que, cedo ou tarde, terão que ser cobradas (‘no free lunch’).”

168 No âmbito da Justiça Federal foi instituído o Fórum Nacional da Concorrência e da Regulação (Fonacre), com o intuito de fomentar o debate e o aperfeiçoamento nas áreas de referência, funcionando por meio de reuniões nas quais podem ser aprovados enunciados e recomendações administrativas para a magistratura. E o Enunciado 8 tem a seguinte redação: “Embora o controle de juridicidade dos atos

regulatórios não obedeça a uma parametrização fechada, o Poder Judiciário deve privilegiar intervenções procedimentais em vez de intervenções resolutivas, de modo a verificar a observância, entre outros pontos, i) da transparência e da publicidade das decisões administrativas, ii) da legitimidade e da efetiva participação dos atores juridicamente interessados, inclusive da sociedade civil, iii) da realização do estudo de Análise de Impacto Regulatório (AIR), quando cabível; e iv) do atendimento das balizas legais e constitucionais autorizativas da regulação, bem como dos seus motivos determinantes.”

(Disponível em: <https://www.ajufe.Org.br/fonacre/enunciados-fonacre?start=20>. Acesso em: 7 fev. 2020).

A priori, as conclusões do estudo parecem compreender dados incompatíveis no tocante à prestação jurisdicional, pois se o desfecho dos processos é prioritariamente favorável às agências, o conjunto de reiteradas decisões sobre temas específicos deveria contribuir para unificar entendimentos e reduzir a duração e os custos dos processos. Todavia, o achado se justifica por aspectos processuais (deliberações liminares, multiplicidade de recursos, disputas sobre competência, realização de perícias) e circunstâncias estruturais (ausência de juízos especializados, dúvidas sobre o escopo da revisão, formalismo exacerbado e “insensibilidade às razões regulatórias”).170

Sob esse pano de fundo, contudo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um “dever de deferência”, com lastro em aspectos estruturais do Poder Judiciários e das peculiaridades da atividade regulatória.171

E a despeito de não constituir um precedente vinculante (CPC, art. 927), o julgado é paradigmático por reconhecer que: a) a interpretação jurídica deve levar em consideração as capacidades institucionais do julgador e das partes; b) as questões regulatórias se revestem de peculiaridades que as diferenciam de outras “comumente enfrentadas pelo Judiciário”; c) não podem ser desconsiderados os efeitos práticos da decisão.172

É da conjugação desses três fatores que se estrutura o princípio da deferência, que, todavia, carece de justificativa constitucional e de standards de aplicação, não apenas porque se retira a ênfase do mérito administrativo (conceito que, ademais, estava esgarçado pela concepção de graus de vinculação), mas também porque a potencialização da ideia de “capacidades institucionais” pode, no limite (isto é, sem modulação de sua intensidade), acarretar a integral retirada do Poder Judiciário do cenário regulatório, em violação ao artigo 5º, inc. XXXV, da Constituição da República.173

170 MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque; AZEVEDO, Paulo Furquim; FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio (Coords.). Direito regulatório e concorrencial no poder judiciário. Op. cit., p. 21-28. As conclusões do estudo serão novamente analisadas no Capítulo 4.

171 (STF, 1ª T, Ag. Reg. RE 1.083.955/DF, Rel. Min. Luiz Fux, unânime, j. 28.05.2019). O julgado será examinado no Capítulo 4.

172 Registra-se que esse requisito constava do artigo 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional (“Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar”), tendo sido posteriormente positivado no art. 20, caput, da LINDB (por força da Lei 13.655/2018).

173 “Pela deferência à decisão regulatória, o Judiciário pode, inclusive, deixar de analisar o conteúdo do ato regulatório.” (WANG, Daniel Liang; PALMA, Juliana Bonacorsi; COLOMBO, Daniel Gama e. Revisão Judicial dos atos das agências regulatórias: uma análise da jurisprudência brasileira. In: SCHAPIRO, Mario Gomes. Direito econômico regulatório. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 280).

E se o que se tinha até recentemente eram parâmetros sugeridos pela doutrina,174 atualmente há um microssistema regulatório, formado pela LINDB e pelas Leis 13.848/2019 e 13.874/2019, além da legislação que disciplina as agências setoriais, que fornece critérios objetivos para um controle judicial deferente nessa seara.175

Para logo, o que se pode dizer é que, a despeito da relação existente entre liberdade de escolhas e deferência, a racionalidade subjacente não é a mesma que anima o controle da discricionariedade.

Não se trata da delimitação de áreas interditadas à fiscalização judicial em razão do princípio da separação de poderes, mas sim da retração decorrente de uma análise (substancial, procedimental e institucional) orientada por uma finalidade a ser atingida de maneira eficaz, por meio de atores dotados de legitimidade e expertise.