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Da convitologia à visitologia ao poético

Postulemos então, tese humanista, que a epígrafe convida.

A ler, sobretudo111: o texto que segue, que a segue, persegue – como promessa ou isca, alvo ou refém, prova ou testemunha...

O convite convida a seguir.

Adiantemos: em várias de suas “destinerrâncias”, seguir obceca a linguagem convencional da hospitalidade como seu outro, mas se pensarmos que o outro da hospitalidade convencional é o outro de um mesmo, digamos então: como um outro ao qual não resiste em seguir (ou segue por resistência a ele/ela?). É verdade que seguir seria a própria obsessão (se soubéssemos o que ela é, se pudéssemos “segui-la”, chegar à sua essência sem ceder à loucura ou à... obsessão. E, todavia, podemos pensar um seguir – e uma seqüência ou uma con-seqüência – que se isente de obsessão?). A co-autora que cita esta epígrafe nos diz o que é o próprio de um autor, o insubstituível nele: a sua obsessão. O

111 Sloterdijk lembra a proximidade, no contexto mais ou menos exposto, de ler (Lesen) e selecionar (Auslesen),

não longe do “Plus élire que lire” de Valéry, ou na demasiadamente humanista proximidade entre dois autores. É claro que o convite à leitura seria já algo que viria na era de um pós-humanismo, aceito esta determinação sócio- literária: quando o humanismo é muito cordial para chamar à leitura não estaria já no fim de sua era de colonialismo letrado?

insubstituível nele como o que o persegue e o que ele segue: não se chegaria mais a uma interioridade insubstituível, mas a algo que se pode seguir – até lá (onde?) não se pode mais seguir. Uma diferenciação se impõe entre todas as modalizações e cruzamentos do seguir e do perseguir. E o poético, é resumível a isso? Se o poético não se contém nestes termos, é porque os difere, os desloca. E move, portanto, o movimento do seguir. Até onde dizer “eu sigo” não se acompanha mais com o ouvido ou os olhos e seguir é, como dizia P, “outra coisa ainda”112.

Sem mais delongas: hipótese (a seguir): seguir obseda a “posicionalidade” humana da hospitalidade (inclusive da leitura e da escritura – sentada, por exemplo113 –, do crítico, do critic as a host114). Seguir leva para o limiar o pensamento ético, do ethos – “lugar” da referência, da posição, da tradição, etc. A tentação é dizer: “seguir” é um caminho privilegiado para pensar os deslocamentos do ethos em/com D – mas afirmar “seguir é um caminho” não é já pré-compreender algo que não é imediatamente inteligível, que não é a decisão consciente ou da ordem de um pensamento, um pensamento traçado? Problema tético: não posso seguir o caminho da tese sem que isso implique um afastamento.

Suponhamos então que temos acima de nós um convite. De AD ou de JD, de AD convidando a ler JD ou a ler seu texto através do de JD? Convite a priori não endereçado, o que faz desta epígrafe um curioso convite. Um fabuloso convite, sem isso quem se deixa escolher por ela?

Mas o que estaremos fazendo ao submeter o convite à fábula115? Não se trai o convidado, se este convite for quimera, se ele não convidar de fato, se esta frase solta, este escrito, este gesto ou este olhar forem leves, levianos, irresponsáveis, independentes do ato de

112 Nos referimos a Fernando Pessoa, no poema com título infinitamente sintomático, “Isso”. Tentaremos uma

análise.

113 Ao que diz Sloterdijk do escolar acostumado a ler apaziguadamente sentadinho, não se sobrepõe (ao menos é

uma maneira de vê-las aqui) “Quatro posições para ler” de Ana Cristina César? (inclusive, “De trás para frente”... Escritos no Rio. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ Editora e Brasiliense Editora, 1993).

114 Hillis Miller, J. “The critic as a host”. In: Theory now and then. Durham: Duke University Press, 1991. 115 Uma “Fábula”, contudo, se torna referência importantíssima para realojar, digamos, a nossa frase: o poema

chamado “Fábula”, de Ponge, analisado por Derrida em “Psyché, invention de l’autre”. In: Psyché, inventions de

hospitalidade? Cabe então esta outra pergunta quimérica: um convite já é um ato de hospitalidade? Não saberemos o quanto grifar a língua destes hiatos, nos quais nos precipitam a epígrafe. (O grifo é outra quimera: o grifo grita a quimera no literal). Se, no entanto, o que afirmamos acima for relevante, e, portanto, o convite devesse não ter “verso”, como conciliar isso com o que acreditamos reconhecer como outro imperativo do convite, isto é, o de não ser um “verso”, um poema, uma fábula, isto é, não destinado necessariamente ao convidado? Quem sabe, na frente destes dois versos, não seja possível decidir frontalmente, nem abrir totalmente mão do convite.

Podemos, contudo, indicar duas vias convidativas de inscrição do convite (e da inscrição como convite). Ambas propõem um além-convite. Estas vias se cruzam e, cremos, se separam. A primeira via passaria pela definição proposta por K em Temor e tremor, e que opõe, de modo não simples ressaltemos, estético e ético. O convite ainda não participa da hospitalidade em sentido ético. Nem seria objeto de uma ética determinada116. Pertence, antes, ao sentido estético. Isso, para começar, por uma questão de tempo, uma vez que a “estética faz caso omisso do tempo, o qual transcorre para ela com a mesma rapidez, quer se trate de uma brincadeira ou de uma coisa séria”117. O tempo do convite não co-incide com o da acolhida, dando vez ao cálculo, ao acaso, ao jogo ou à cortesia. “Mas esta ciência [a estética] plena de delicadeza e de cortesia tem mais recursos que um gerente de montepio”118. Na figura um tanto mórbida do gerente de montepio se anuncia a temporização econômica do

116 Em Paixões, escreve Derrida: “O que é um convite? O que é responder a um convite? Isso representa o que,

para quem? Um convite deixa livre, sem o que se torna obrigação. Nunca deveria subentender: você tem a obrigação de vir, você deve, é preciso. Mas o convite deve ser insistente, não indiferente. Nunca deveria subentender: você tem a liberdade de não vir e se não vier, azar, não importa. Sem a pressão de certo desejo – que ao mesmo tempo diz “venha” e deixa ao outro, contudo, sua liberdade absoluta –, o convite imediatamente volta atrás e se torna inospitaleiro. Portanto, ele deve desdobrar-se e se redobrar ao mesmo tempo, ao mesmo tempo deixar livre e tomar como refém: golpe duplo, golpe redobrado. É possível um convite? Acabamos de vislumbrar as condições em que ele existiria, caso exista, e mesmo que exista, alguma vez se apresenta de fato e como tal, atualmente?” (Op. cit. p. 25).

117 Kierkegaad, Søren Aabye. Temor e tremor; Diário de um sedutor; O desespero humano. Trad. C. Grifo; M. J.

Marinho; A. C. Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p.161. Já Drummond dizia, conforme citamos acima, e dado o caráter comunicante da literatura, que “para isso o tempo não conta”.

convite como estética119. Entroncamento, passagem de uma segunda via: para D, esta temporização econômica do convite não pode dar lugar a uma hospitalidade incondicional, esta se anunciando para além do convite. Neste, o “ato” de hospitalidade não é realmente posto à prova, não se depara com seu(s) fantasma(s) (mas este possessivo ainda é demasiadamente próprio), não é totalmente privado da garantia, da própria prova, isto é, em suma, de uma fiabilidade identitária. Por isso D prefere à lógica do convite uma lógica da “visitação”, porém não sem algum tremor final:

A hospitalidade incondicional, a hospitalidade de uma só vez pura e im-possível, dever-se-á dizer que ela corresponde a uma lógica do convite (quando a ipseidade do em-casa acolhe o outro em seu horizonte, quando coloca condições, visando então saber quem ela quer receber, esperar e convidar, e como, até que ponto, quem lhe é possível convidar, etc.)? Ou de fato a uma lógica da visita (o anfitrião então diz sim à vinda ou ao acontecimento inesperado e imprevisível do que vem, a qualquer momento, por antecipação ou com atraso, na anacronia absoluta, sem ser convidado, sem se fazer anunciar, sem horizonte de expectativa: como um Messias tão pouco identificável e tão pouco antecipável que o nome mesmo de Messias, a figura do Messias e, sobretudo, do messianismo, revelariam ainda uma pressa em ceder o passo ao convite em detrimento da visita). Como adequar-se ao sentido do que se chama de um acontecimento, a saber, a vinda inantecipável do que vem e de quem vem, o sentido do acontecimento não sendo então outro senão o sentido do outro, o sentido da alteridade absoluta? O convite guarda o controle e recebe nos limites do possível; ele não é, portanto, pura hospitalidade; economiza a hospitalidade, pertence ainda à ordem do jurídico e do político; a visita apela, ao contrário, para uma hospitalidade pura e incondicional, que acolhe e que acontece como im-possível. A única hospitalidade possível, como pura hospitalidade, deveria, portanto, fazer o im-possível. Como esse im-possível seria possível? Como se tornaria isso? Qual é a melhor transação – econômica e aneconômica – entre a lógica do convite e a lógica da visita? Entre sua analogia e sua heterologia? O que é então a experiência, se ela é esse devir-possível do

119 O “estético” é dado várias vezes como o “concupiscente”, o “voluptuoso” (Idem.. p. 161 e 162), ele exige o

oculto e o recompensa enquanto a ética exige a manifestação e pune o oculto (p. 162). Indica não apenas a sensualidade, mas parte do oculto do indivíduo, uma paixão talvez, ao passo que o ético indica a “generalidade” e sua exigência de “claridade” intervém cada vez que um ato “lança a perturbação na vida de outrem” (162). Derrida cita algumas destas questões em “La littérature au secret” (In: Donner la mort. Op. cit. p. 5) e sublinha a diferença entre “o segredo paradoxal de Abraão e o segredo do que deve estar escondido na ordem estética e que deve ser, ao contrario, desvelado na ordem ética”. Neste texto, Derrida vai propor umas hipóteses sobre “uma aliança entre o absoluto segredo e o absoluto literário” (p. 1). Caberá repensar esta in(di)gestão (absoluto) do segredo na relação (secreta) entre ética e literatura. Podemos desde já colocar que se a separação ética/estética e além destas, o segredo e o sagrado, é muito rigorosa, e é a partir deste rigor mesmo que podemos questionar a pertinência da oposição entre a necessidade de claridade ética e a exigência de velamento estética. Mesmo que Kierkegaard chegue a nuançar o papel de cada uma e coloque este além da ética e da estética sem os quais o segredo permaneceria no plano estético, é de se perguntar se, por exemplo, uma estética não se imiscui secretamente até mesmo na relação com outrem – e vice-versa. Se, por exemplo, “a estética” não pode aclarar mais do que qualquer princípio moral a exigência de clareza.

impossível como tal? Não estou certo de ter praticado ou preferido o convite, de preferência à expectativa sem expectativa da visita, mas não juraria nada120.

Começa a evidenciar-se um contexto, alguns diriam um contexto lógico, para nossa epígrafe. Mas que contexto! Inaudito, intransigente, procura romper com a ordem horizontal do visível, do previsível, de certa maneira do “contextualizável”, do controlável nos protocolos do convite. Este entraria no programa controlador do Estado, de uma hospitalidade “jurídica e política”, de um certo humanismo (por exemplo, na escolha dos textos que se “convida” a ler na escola, e no modo como se os lê). A situação de crise em que se encontram há algumas décadas as democracias coloniais na chegada do estrangeiro, do imigrante, do exilado, do refugiado é o “contexto” “político” em sentido estrito (mas “mundial”), cujo fundo ético sem fundo é posto aqui à prova (pela segunda vez, D nos impele ao uso desta expressão). O conto “O hóspede” de C é mais do que exemplar quanto aos paradoxos da hospitalidade na colônia ou que levam a decisão pelos caminhos do colonialismo121.

A lógica da visitação não exclui, pelo contrário, em sua surpresa não horizontal, o retorno do reprimido, do recalcado, do proscrito mesmo na prescrição hospitaleira.

D, entretanto, não juraria nada, e este tremor final, esta reticência se volta, cremos, para a nossa epígrafe. Mais precisamente para o “poético”. Qual a necessidade do poético quando o ato de hospitalidade se mede na prova da visitação?

Se se aposta todas as fichas na visita, um recurso ao poético correria o risco de atrasar, extraviar a efetividade da acolhida. Entretanto, nem mesmo uma “lógica da visitação” garantiria tal efetividade, na medida em que a visita não aboliria o recurso à forma, à fórmula. Se uma visita visa provar a hospitalidade imediata, ela sequer deveria nem responder a uma

120 Em “Within such limits...” (In: Papel-máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo, Estação Liberdade,

2004), diz Derrida: (p. 269-270). Sim, o impossível.

121 Camus, Albert. “L’hôte”. In: L’exil et le royaume. L’Exil et le royaume. Paris: Gallimard, 1957. O professor

(francês) de uma escola do interior argelino recebe a tarefa de manter nos locais um prisioneiro até segunda ordem. No entanto, liberta o prisioneiro e indica duas direções no deserto, uma que leva à cadeia, para se entregar, outra pela qual poderia fugir. Quando volta para a escola, um escrito chama o professor de traidor. Citado por Derrida em Manifeste pour l’hospitalité. Autour de Jacques Derrida. Seffahi, M. Ed. Paroles d’Aube, 1999.

“lógica”. Trocando em miúdos, antes mesmo de julgar reconhecer nela algo de “poético”, nenhuma expressão da língua do hospedeiro – que é invariavelmente acolhido por uma língua e nela e sobre ela acolhe – está imune ao “verso”, ao extravio, à segunda intenção, à ordem, ao seqüestro, à vaidade, em suma, ao que D chama de “econômico”. Um silêncio acolhedor não escaparia com toda certeza à equivocidade, à acusação de indiferença, à ofensa de alguma lei de hospitalidade.

Paradoxo deste argumento: denuncio a impossibilidade de pureza do ato de hospitalidade, de uma visitação sem convite, da acolhida inequívoca de um visitante, a contaminação possível pela língua (condição do “poético”), porém o faço ainda em nome de uma hospitalidade absoluta, de uma acolhida sem nomes, sem coerções, etc. Falo, por exemplo, em “extravio” da efetividade da acolhida e com isso insinuo a idealidade de um “ato”122. Aceito isso, não podevo123, portanto, não ser visitado por uma idealidade. Melhor do que visitado, digamos “habitado” por uma idealidade, uma vez que “a visita do que vem”, como diz D, não deve responder apenas a uma idealidade, justamente, como ao que é dado ou ao que já habita. Sabemos que ser habitado e ser assombrado são o mesmo para D124. Uma idealidade deve assombrar a acolhida sem, contudo, determiná-la de antemão.

Resta que a “nossa” primeira lei da hospitalidade, “Um ato de hosp...”, faz tremer a visitologia a partir da sua inscrição na língua. Ela diz ainda que não há hospitalidade, mesmo sob sua forma mais imediata, mais prática, mais viva, mais presente, indivisível, a saber no

122 Estaríamos tentados a denunciar a repetição de uma confusão clássica entre juízo e ato, adjudicabilidade e

casuística, na dimensionalidade clássica do bem e do mal: “A bondade ou maldade do prazer depende da bondade ou maldade do ato” (Aristóteles. A ética. Op. cit. p. 160. (III, 1, 9)). Por outro lado, a ligação da reivindicação do absoluto concomitante à reivindicação de um ato pleno não é antagônica. É até a agônica exigência que podemos sublinhar em Sartre, quando Derrida elabora sua homenagem ao fundador da revista Les

temps modernes: (Sartre:) “Queremos que o homem e o artista obtenham juntamente sua salvação, que a obra

seja ao mesmo tempo um ato, que seja expressamente concebida como uma arma na luta que os homens travam

contra o mal.” (“‘Ele corria morto’: salve, salve. Notas de uma correspondência para Temps Modernes”. In:

Papel-máquina. Op. Cit. p. 170 e passim). Não tarda que o “absoluto” se torne “fome”, passe pela boca e engaje todo um léxico do gosto, ou seja, da proximidade a si, da presença a si, do valor absoluto da vida.

123 Tentamos repetir aqui uma rasura derridiana na língua do poder e do dever, que faz da constatação de

impossibilidade um dever (só não lembramos agora onde).

seu ato, sem uma experiência da língua. Assim sendo, o “poético” nomeia em primeiro lugar a experiência de uma hospitalidade mediada e/ou atravessada pela língua. A começar pela língua da hospitalidade, se não houver mais de uma. Este “mais de uma” não é uma pluralidade reconciliadora ou politicamente correta, é o que se deduz de uma hospitalidade radical.

Para que a visita continue válida enquanto experiência de hospitalidade radical, ainda que não possamos jurar (só) por ela, para que a lei incondicional da hospitalidade não se anule nas suas condições práticas e lingüísticas, temos que aceitar que o “poético” não se refere simplesmente à relação com a língua e de modo mais geral com um código ou qualquer marca, gesto, etc. E que não se refere simplesmente à relação coercitiva.

Em “poético” se esboça o espaço incontornável da tarefa do que D coloca em Anne Dufourmentelle..., a respeito da “experiência” de hospitalidade (“experiência” é um dos termos mais enigmáticos – ou “enigmatizáveis” – em D): a heterogeneidade ou antinomia e a indissociabilidade entre a lei incondicional de hospitalidade e as suas leis condicionais. Em outras palavras, a relação de intolerância e de inseparabilidade entre o que, no “conceito” ou na “noção” de hospitalidade, comanda que se acolha o que chega sem nenhum tipo de contrapartida ou condição (o “Sim” à visita), e todos os condicionais sem os quais nenhuma acolhida é possível125. Não é descabido pensar que nestas condições e nesta incondicionalidade se remarquem ou se perceba o desdobramento da análise por D da justiça e do direito, os quais respondem a ou através de uma estrutura similar: dissimétrica e praticamente im(dis)pensável126. Sem dúvida, seria preciso manter a diferença entre estas duas “experiências”, a da justiça127 e a da hospitalidade radical, assim como a do dom, do

125 Cf. Derrida, Jacques; Dufourmentelle, Anne. Anne Dufourmentelle convida Jacques Derrida a falar sobre a hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. p. 23-5.

126 Este “praticamente” se inspira do de “Mallarmé” (Op. cit. p. 378).

127 Quando a justiça não se confunde com o direito, quando ela não vive sem ele, mas sendo-lhe ainda assim

heterogêneo. Cf, por exemplo, “Do direito à justiça”. In: Derrida, Jacques. Força de lei. O “fundamento místico

perdão, do testemunho, do luto, da herança, da amizade, da cortesia128, não se deixam reduzir aos mesmos âmbitos, formas ou traços. Como se fossem exigências diversas e, contudo, tão exigentes umas quanto as outras. Dito isso, tais questões tampouco são isoláveis em esferas ou “questões” determinadas ou restritas. Muito pelo contrário, sua relevância ou sua contundência surgem quando, por exemplo, a hospitalidade e a justiça cruzam suas inquietações no limiar de um hiato entre ética, direito e política, isto é, quando uma ética radical – por exemplo, da hospitalidade – e primeira não se paralisaria na sua impossibilidade de deduzir dela um direito e uma política – por exemplo, de hospitalidade – segura, mas, ao invés disso, imporia um retorno “às condições da responsabilidade ou da decisão, entre ética, direito e política”129. Evidentemente, se poderia retrucar que a justiça não é uma questão entre outras e que esta contaminação entre hospitalidade e justiça se deve a uma questão maior, a saber à da relação da ética com a justiça e o direito e à necessidade incontornável desta relação e desta dedução130. Dedução sobre a qual D põe uma ressalva: por um lado há e deve haver a injunção formal de dedução de um direito de uma ética ou de uma filosofia, mas por

128 Reenviamos apenas a Papel-máquina (Op. cit.) para um resumo do uso por Derrida destas noções.

129 Nos referimos a uma “ética da ética” como Derrida já evocou para falar da ética segundo Lévinas. Para repor

esquematicamente as premissas destas questões, citemos um trecho de Adieu à Emmanuel Lévinas, onde se pode ver: “Supposons, concesso non dato, qu’il n’y ait pas de passage assuré, selon l’ordre d’une fondation, selon la hiérarchie fondateur/fondé, originarité principielle/dérivation, entre une éthique ou une philosophie première de l’hospitalité, d’une part, et un droit ou une politique de l’hospitalité d’autre part. Supposons qu’on ne puisse pas

déduire du discours éthique de Lévinas sur l’hospitalité un droit et une politique, tel droit et telle politique dans

telle situation déterminée aujourd’hui, près de nous ou loin de nous (à imaginer même que nous puissions évaluer la distance qui sépare l’Église St Bernard d’Israël, de l’ex-Yougoslavie, du Zaïre ou du Ruanda). Comment interpréter alors cette impossibilité de fonder, de déduire ou de dériver? Signale-t-elle une défaillance? Peut-être devrait-on dire le contraire. Peut-être serions-nous en vérité appelés à une autre épreuve par la négativité apparente de cette lacune, par ce hiatus entre l’éthique (la philosophie première ou la métaphysique, au sens que Lévinas donne à ces mots, bien sûr) d’une part, et, d’autre part, le droit ou la politique. S’il n’y a là aucun manque, un tel hiatus ne nous commande-t-il pas en effet de penser autrement le droit et la politique? Et

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