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A epígrafe (se) divide (n)o literal e (n)o litoral. Entre os litorais.

Hipótese difícil, sem bordas (não sem caminhos ou trilhas). Por isso mesmo, dissesse talvez D, o lugar mesmo, o único, de uma hipótese.

Estamos apenas na margem, na praia, na shore desta epígrafe, que é, ela mesma, limiar, soleira, patamar. Ela aborda a acolhida e reenvia para outro limiar – o “poético”. Será o caso de anexar-lhe um texto, um continente, que ela decoraria, que a criticaria ou colonizaria, que ela condensaria como um emblema, na melhor das hipóteses um emblema sem exemplo? Nestas “paragens”, como D já escreveu, queríamos oferecer-lhe um prefácio – que, inevitavelmente, tomará a forma de um posfácio, um prólogo, um epílogo.

(D afirma na introdução sem título dos “Envios”: “Vocês poderiam ler estes envios como o prefácio de um livro que eu não escrevi”202. D já duvidou da possibilidade, no prefácio, de mostrar uma origem ou o verdadeiro rosto do texto ou do livro, por ser protocolar

200 Jean Bessière. Seminário na Universidade da Sorbonne Nouvelle, Paris 3.

201 Veremos Jean-Luc Nancy falar, a respeito de Derrida via Freud, de um “ethos unheimlich”. Contradição,

paradoxo inevitável e risco de ethologização ou familiarização do estranho?

ou por estar fora do texto203. Aqui, dado um passo interpretativo, o prefácio, não sendo o de um livro existente, seria epígrafe ou epigrama para outro texto ou o texto de outro, para o qual acena – para o qual não há ainda autor, “fundador”?).

Ou, como se não pudéssemos muito mais do que isso, gostaríamos de oferecer algumas outras epígrafes que iluminassem esta. Outras como estas que nos escolheram na extensão de mar que também são os parages, trazidas até “nossa” epígrafe e enviando-lhe os seus sinais, trocando léxicos e clarões: “Aparentemente fortuita, a ocorrência de cada vocábulo viria cruzar, nestas paragens, o acaso e a necessidade: clarão (lueur) breve, abreviação de uma assinatura apenas esboçada, tão logo apagada, um nome a quem não sabemos atribuir, a que autor ou a que língua, a uma ou à outra”204. A esta luz respondia ou guiava, seis páginas antes, este farol: “Mas as ficções [D está falando das narrativas de B] continuavam para mim inacessíveis, como mergulhadas numa bruma em que me alcançavam fascinantes clarões (lueurs), e por vezes, mas em intervalos irregulares, a luz de um farol invisível na costa”205.

Nestas paragens não é tão fácil “oferecer”. Ou será preciso repensar o dom de maneira incisiva: o que significa oferecer uma epígrafe (quanto mais uma epígrafe assinada pelo mesmo autor que se quer presentear)? Seria como dar um corte, um recorte (como a incisão “do rastro cortante, a decisão de cada leitura”206)? Dar ao outro as suas próprias cicatrizes? Fazer da cicatriz um dom? Mas é possível dar outra coisa, se o dom radical deve desaparecer (“– Sim, o ferimento está aí, lá. Haveria outra coisa, a não ser o vestígio de um ferimento? E

203 Cf. Evando Nascimento. Derrida e a literatura. Op. cit. p. 185.

204 Trad. Nossa: “Apparemment fortuite, l’occurrence de chaque vocable viendrait croiser, dans ces parages, et le

hasard et la nécessité: lueur brève, abréviation d’une signature à peine esquissée, aussitôt effacée, un nom dont on ne sait plus à qui il revient, à quel auteur ou à quelle langue, à l’une ou à l’autre” (“Introduction”. Parages. Op. cit. p. 17).

205 Mais les fictions me restaient inaccessibles, comme plongées dans une brume d’où ne me parvenaient que de

fascinantes lueurs, et parfois, mais à intervalles irréguliers, la lumière d’un phare invisible sur la côte. Idem. p. 11.

outra coisa que jamais tenha ocorrido? Você conhece uma outra definição do acontecimento? / – Mas nada é mais ilegível do que um ferimento também”207)?

No pré ou pós-face-a-face destas epígrafes, com se viu, mas de modo breve, apagado e irregular, o nome de autor e a assinatura lançam intermitentes clarões nos litorais epigramáticos. Quem é o “autor” de uma epígrafe? Ou, para sobrescrever no título de F (tratar-se-á, em breve, de títulos), o que é o autor de uma epígrafe?

Pois, retomando o fio “poemático”, se não há, aparentemente, muitas dúvidas quanto à autoria de um poema, a não ser nos termos de um debate clássico sobre escritos anônimos, heteronímia ou plágio, um problema suplementar se põe de modo singular no que tange à epígrafe. Problema independente, ao contrário isso o realçaria, da presença ou não de um nome de autor abaixo do exergo, como se costuma fazer, mas que frequentemente também se omite, quando não se o desconhece. A “autoria” da epígrafe poderia ser atribuída tanto àquele ou àquela que escreveu a frase ou o texto, quanto àquele ou àquela que cita e faz do citado uma epígrafe. Seria o mesmo problema que o de uma citação (ao falar do autor da citação)?

Em todo caso, a epígrafe parece pôr em cena uma anormalidade com relação à auctoritas, à fundação: escapa à inequivocidade entre autor e fundador, mas está em relação com a autoria e a fundação. E isso se liga à “nossa” epígrafe, como entre uma hospitalidade convencional e aquela que deve responder à injunção de invenção do poético.

Anormalidade, então, quanto à fundação. Por vários motivos. Primeiro, se a epígrafe é como um poema, ela é também como um título, já que estes nomes não raro participam do “funcionamento referencial anormal” do nome, e mantêm uma “singular estranheza” quanto à língua. Em “Titre, à préciser”, D formulava da seguinte maneira a sua tese quanto ao título, a “forma-tese” não se alheando da estrutura do título: “Digamos que eu queira dizer a coisa seguinte, em forma de tese: um título tem sempre a estrutura de um nome, ele induz efeitos de

207 Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995.p. 43. Sobre o dom em sentido radical, o

nome próprio e a este título, ele permanece de maneira muito singular estranho à língua como ao discurso, ele induz neles um funcionamento referencial anormal e uma violência, uma ilegalidade que funda o direito e a lei”208.

A epígrafe parece escapar em grande medida a esta violência. Ela talvez não dê lugar a um direito ou a uma lei, talvez não seja, absolutamente, um título. Logo, não haveria, em seu ato, tal violência. E, afinal, é também uma citação, que faz, neste sentido, do discurso do outro um título, mas um título honorífico: ela deixa ao outro não a última, mas a primeira palavra.

Por outro lado, já frisamos que a epígrafe não é simplesmente uma conviva honradamente solicitada a fazer o discurso inaugural. (Será, aliás, impossível computar exatamente quantos convivas ela mesma abriga em seu discurso – são “virtualmente” infinitos, como dirá D mais tarde, muitos provavelmente não nasceram ainda – e a que título exatamente foram convidados). Se uma epígrafe pode ter sido convidada, ela não é menos o resultado de um arrombamento, ela não é menos roubada, talvez como uma carta ou uma “letra” (lettre), tirada de seu contexto, de seu(s) destinatário(s), se é que estes alguma vez asseguraram seu destino ou preveniram o arrombamento. É permitido salientar então que um dos traços estruturais poemáticos ou mais geralmente literários da epígrafe consiste nesta suspensão da destinação acertada. Mas a epígrafe, esta aqui ou a possibilidade da epígrafe em geral, não indica que há sempre arrombamento, que este arrombamento de fato acontece ou que ele é possível desde e em seu “contexto primeiro”? o que des-locaria a destinação?

Se houver, na epígrafe, fundação de um título, logo, de um direito e de uma lei, na condição paradoxal de uma anomalia referencial e de uma violência, a possibilidade do envio

e do reenvio do nome para além de todo contexto “primeiro” é o que faz a lei da epígrafe como sua condição mesma, mas, ao mesmo tempo, desvia, distorce a lei. E “esta é a lei”209.

(O privilégio dado por nós aqui ao poema e à literatura para nomear os traços de anomalia referencial da epígrafe, a sua “destinerrância”, mesmo não sendo um título em sentido estrito, é, por um lado, a tentativa de remarcar nela a “estranha instituição” que é e à qual “responde” a literatura, como a descreve D em “This strange institution called literature”210 e num seminário chamado “Do direito à literatura”211. Não é por acaso que em seu discurso sobre o título, D recorre a três textos ditos literários (“A moeda falsa”, de B; “O prado (Le Pré)” de P; La folie du jour, de B). Anomalia “exemplar” e secreta, vale precisar, do “direito de dizer tudo” e, portanto, de “não dizer tudo”. Mas sem entrar ainda nestas questões, tentaremos fazê-lo mais tarde, digamos, por outro lado, que a singularidade da epígrafe, singularidade geral, que atravessa os gêneros, insere, entre o título e o texto, mesmo e sobretudo o não-“literário”, a economia literária, para dizê-lo economicamente, na verdade o seu “desregramento econômico” (a ler em todos os sentidos), de que o título na obra dita literária é exemplar, embora por definição sem exemplo. Título cujo sentido é, tese enigmática e enigmatização da tese, “uma certa maneira de não ter sentido”, e “o seu evento de não ter lugar”212).

Retomemos. Uma “violência”, uma violação, um estupro estariam, portanto, potencialmente inscritos na economia da epígrafe, ousaremos dizer na sua possibilidade

209 “et que tout ce qui s’envoie bon gré mal gré fait la loi… La tourne aussi, la joue, mais c’est la loi”. “Envois”.

In: La Carte postale. Op. cit. p. 84.

210 Op. cit.

211 Que saibamos, inédito. Derrida resume, em “Titre, à préciser”, o teor do empreendimento : “Je devrai me

contenter de ceci: ce que j’esquisse ici au titre du titre prendrait peut-être place à l’intérieur de l’analyse plus systématique d’une séquence ou d’une grande configuration historique du juridico-littéraire, celle qui institue un nouveau rapport, en Europe occidentale, entre, disons, la production littéraire d’une part, le droit positif d’autre part, et enfin certaines institutions critiques d’évaluation, de garde traditionnelle, d’archivation, de légitimation intitulante et attitrante, d’attribution des compétences, tout ce dont l’Universitas est la forme ou le lieu par excellence” (In: Parages. Op. cit. p. 233).

212 “Je me limite aux traits typiques de ce dérèglement. L’affolement tourne autour de ceci: le sens du titre est une certaine manière de n’en avoir pas, et son événement de n’avoir pas lieu. Pas de sens et pas de lieu, donc”

mesma. Mais acentuadamente ou diferentemente do que no caso da citação, para a qual ainda se pode reivindicar uma ética, por exemplo, a da reconstituição mais fiel possível do “contexto de origem” (o que D nos ensina não existir em si mesmo: o “primeiro contexto” – como aquele que satura o sentido). A epígrafe instaura o desvio como “elementar”.

Mas o que se funda no ato violento que instaura uma epígrafe? O autor de um epigrama? O autor de uma leitura poetizante? A fundação de um fundador – a partir de um ato satírico (a repetição ou o ensaio de um ato de fundação), ou a partir de uma homenagem ou uma inscrição a desde a qual remarco um destino ou uma filiação?

Podemos dizer que aquele que cita a epígrafe se autoriza na e da autoria “primeira” do “conteúdo” da epígrafe? Uma violência se autoriza de outra?

No que chamaremos de “autorização da epígrafe”, com duplo genitivo, como diz D, duplica-se o nascimento, a origem (genitivo). Por um lado, a autorização da epígrafe envolve a ambivalência autoral da mão que assina: um nome de autor ou de obra (próprio ou comum) “autografa”(-se) (n)a epígrafe, porém é a mão citante do autor do texto litoral que “assina”, e assina com o nome de outro. Logo, não assina mais simplesmente, se alguma vez já foi simples uma assinatura: assina no lugar de, contra-assina, assassina, apunhala pelas costas. Por vezes contra-assassina, a assinatura epigramática servindo de gume para apunhalar, para e pelas costas de um, as costas de outro. Pistola epistolar. Mas a morte do autor213 não é mais situável apenas de um lado da fita de inauguração do texto. Em todo caso, ela suporta e persegue o autor do corte. O “ato” de “autorização” se divide nas águas que separam litorais e literaturas. A “autografia” entra na cena de hospitalidade turbulenta da epígrafe, espaço singular, porém espaço de troca litoral e literal, leitoral e autoral. É a outra inclinação da fórmula em questão: autorização da epígrafe. Dela se “autoriza”. A partir dela, que é um suplemento. Com ela, através dela.

Aqui devemos dirigir a B um epigrama ou um... epitáfio (pois escrevemos sempre sobre o túmulo de um outro...)214.

O paradoxo se aguça: supondo que temos aqui dois autores, e, logo, duas fundações, quer concomitantes, quer concorrentes, é possível pensar que há duas violências, isso no instante mesmo em que, não é temerário declará-lo, as mais belas homenagens e as mais justas oferendas se lançam nestas paragens. Mas trata-se, na epígrafe, de dois títulos, título cuja lógica, emprestada a D, parecia aqui se complicar? Talvez esta duplicidade fundacional,

214 Mais de um: “Aucun grand discours sur l’amitié, c’est ici notre hypothèse, n’aura jamais échappé à la grande

rhétorique de l’epitâphios, et donc à quelque célébration transie de spectralité, à la fois fervente et déjà gagnée par la froideur cadavérique ou pétrifiée de son inscription, du devenir-épitaphe de l’oraison. Ils ne nous convaincront pas du contraire, les grands exemples qui nous attendent, de Montaigne à Blanchot. Mais il y en aurait tant d’autres, à l’infini. Quel discours ne rappelle pas un mort? Qui n’en appelle pas au mort ? Le devenir- épitaphe de l’epitâphios, l’impression dans l’espace d’une parole funèbre, voilà ce que promet le premier mot au mort dédié. Au commencement de ce logos, il y a la promesse d’épitaphe” (Politiques de l’amitié. Op. Cit. p. 115). Mais adiante, também, uma epígrafe ao próprio epitáfio: “On ne l’a jamais fait, à ma connaissance, mais il serait sans doute intéressant de croiser les deux lignes de recherches, si différentes à tant d’autres égards, que sont celles de Nicole Loraux et de Paul de Man sur les lois, le genre, la poétique et la rhétorique, les paradoxes aussi, de l’épitaphe (…)” (Idem. p. 117-8). Ainda numa nota das Politiques de l’amitié sobre As “Considerações atuais sobre a guerra e sobre a morte” de Freud (1915), o epitáfio está no bojo de uma teoria do político (assim como o porco-espinho): “Une lecture attentive des Considérations..., dans ce contexte-ci, serait sans doute nécessaire. Schmitt, à ma connaissance, n’a jamais marqué beaucoup d’intérêt (pas plus que Heidegger en tout cas, et le fait n’est pas insignifiant) pour quelqu’un qu’il aurait pourtant pu classer, d’après ses propres critères, parmi les penseurs authentiques du politique, à savoir ceux qui partent d’une vision pessimiste de l’homme. L’homme n’est pas originairement bon, voilà selon lui l’énoncé fondamental d’une théorie du politique. C’est aussi la thèse résignée des Considérations actuelles..., qui de surcroît multiplient sur la violence essentielle de l’État des énoncés de type schmittien ou benjaminien. Freud insiste en effet sur le fait que si l’État interdit à l’individu le recours à l’injustice, ce n’est pas pour supprimer celle-ci mais pour s’en assurer le monopole. Quant à la réponse ‘optimiste’ à la question de l’homme (‘l’homme naît noble et bon’), Freud la déclare ‘sans valeur’: ‘nous n’avons pas à nous en occuper ici’. L’interdit ‘tu ne tueras point’ confirme que nous descendons d’une génération de meurtriers. Sans parler de la loi d’ambivalence qui inscrit la haine dans le deuil même de nos amis et d’un amour qui a le même âge que la pulsion de meurtre. L’épitaphe et l’oraison funèbre sont un thème du chapitre II. À cette violence fondamentale, Freud ne propose jamais (comme Schmitt, d’ailleurs) que des compensations au nom d’une vie qui pourtant ne connaît pas la mort, et n’a pas affaire à elle en tant que telle (nous préciserons ce point paradoxal quant à Schmitt). Le si vis vitam, para mortem, par lequel Freud propose de remplacer le si vis pacem para bellum, à la fin des Considérations... ne fait que confirmer ce pessimisme politique fondamental. Cela se vérifierait aussi à chaque page de Psychologie collective et Analyse du moi et s’illustre de la parabole schopenhauerienne, que Freud aime alors à citer: des porcs-épics renoncent à se serrer les uns contre les autres pour lutter contre le froid : leurs piquants les blessent. Obligés de se rapprocher de nouveau par temps de glace, ils finissent par trouver, entre l’attraction et la répulsion, l’amitié et l’hostilité, une distance convenable” (Idem. p. 143-4). Mais adiante: “Il appartient en effet au nom de pouvoir survivre au porteur du nom, et d’ouvrir ainsi, dès la première nomination, cet espace de l’épitaphe dans lequel nous avons reconnu le lieu même des grands discours sur l’amitié” (Idem. p. 255). “Une fois encore il faut dire (mais à qui ?): les choses ne sont pas si simples. Suis-je totalement irresponsable de ce que j’ai dit dès lors que je suis irresponsable de ce que j’ai dit? Suis-je irresponsable du fait que j’ai dit (du fait d’avoir parlé) dès lors que je ne me tiens pas pour responsable de ce que j’ai dit, du contenu de ce que j’ai dit et qu’en fait je me suis contenté de rapporter? Définis par ce qu’on appelle couramment des conventions, un certain nombre de signes artificiels viennent attester ceci: même si je n’ai encore rien dit de déterminé en mon nom quand j’ai prononcé pour commencer, sans autre protocole ‘O mes amis, il n’y a nul amy’, on est en droit (mais qu’est-ce que ce droit ?) de supposer que néanmoins je parle en mon nom. Il y va donc du nom porté, du port ou du support du nom – et du rapport au nom. La portée du nom, voilà une question qui n’a pas cessé de peser ici” (Idem).

autoral ou violenta já esteja marcada naquela definição supostamente tética do título lá escrito no singular: o título só seria título quando é mais de um título, mais do que um título, sua autoria se dividindo em dois ou mais, e sua violência não sendo simplesmente aí localizável215.

Não absolutamente necessária para unir, significar, representar um corpus textual, como a rigor seria o título no âmbito institucional (dos direitos autorais, de reprodução, etc.)216, a singularidade geral da epígrafe abrir-se-ia como (a) literatura na fundação de todo texto, como suplemento textual, um sacrificável que, contudo, tem um lugar de honra. Pois a epígrafe não implica, diretamente, em guerra de direitos autorais e de reprodução; é raríssimo que se discuta uma “autenticidade” epigramática. Nada obriga e nada impede de inscrever, num texto, uma epígrafe (da mesma maneira que para um epitáfio)217.

Não obstante, confessemos, uma certa aversão pela expressão, chamemos então de “licença poética” (outros diriam “festa de arromba”) aquilo que, a rigor, autorizaria, sem necessidade de autorização, um uso tão livre da palavra alheia que não requeira “explicações”, o pagamento de uma taxa, de um direito autoral, e que dê ao recorte um ar de verso... (Da palavra alheia: de outrem e alheia à “língua” (e à língua do direito), sentido a princípio convencional, mas extensível ao caráter excepcional da palavra epigrafada, como ao do

215 Apesar de que uma topologia regule ou faça a lei do título. Por exemplo (para resumir brutalmente tantas

precisões no texto de Derrida), se não se reconhece ao título a sua situação de borda do texto, o título se confundiria com o texto e perderia seu valor suplementar, além de desfazer-se o espaçamento do texto. Porém, “se a lei obriga a supor o autor real e identificável, o título não é menos uma ficção. Blanchot não assina este título [La folie du jour] como ele assinaria um cheque, um contrato editorial ou um testemunho perante um juíz” (“Titre, à préciser”. In: Parages. Op. cit. p. 236). O título consigna toda uma “economia de temas e de sentidos” mas não vem sozinho como se fosse uma criação verbal absoluta. Parages surge então como termo indecidível, nome de uma “cartografia impossível e necessária de um litoral”: “Parages: ce nom semble émerger seul, c’est du moins l’apparence, pour consigner l’économie des thèmes et du sens, par exemple l’indécision entre le proche et le lointain, l’appareillage dans les brumes, en vue de ce qui arrive ou n’arrive pas au voisinage de la côte, la cartographie impossible et nécessaire d’un littoral, une topologie incalculable, la phoronomie de l’ingouvernable.

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