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“LE DON DU POEME ‘(sic)’ ”

Apenas a 20 de setembro deixei Sils-Maria, retido por inundações, por fim há muito o último hóspede desse lugar maravilhoso, ao qual minha gratidão quer fazer o dom de um nome imortal.

F. Nietzsche

Não é de se descartar, afinal, que a escritura e a diferença da Escritura e a diferença já estejam pressupostos e acompanhem, talvez não nestes termos nem de forma explícita, a afirmação do poema enquanto autorizado por nada, da literatura como dom, um in(dis)pensável dom de pensamento, conforme tentamos mostrar desde a posição “declarada”, desde o ponto de “lucidez” de C seguindo F. C põe a literatura ou o poema no lugar do místico ou do analítico, como “porto” (port) de partida da própria análise. A repetição segundo D, que C tira de cena (sem deixar de recorrer ao “traçado” da crença e a outros “maquinismos”), pressupõe uma não-autoridade, uma não-origem, um “nada”. Lê-se em “Freud e a cena da escrita”: “Uma tal radicalização do pensamento do rastro (pensamento

352 Cf. Résistances. Op. cit. p. 43.

porque escapando ao binarismo e tornando-o possível a partir de nada) seria fecundo não somente na desconstrução...”[grifos originais]354 (... não só na desconstrução, como também, dirá D alguns parágrafos adiante, para uma psicanálise da literatura que, enfim, respeite a “originalidade do significante literário”...355).

“Nada” é a condição do poético (a ler em todos os sentidos), como criação ou, como prefere D, invenção. D o reivindica igualmente, não apenas na invenção im-possível da hospitalidade radical como, vale repetir, para o “pensamento do rastro”, da repetição originária que, para não ceder ao genealógico, deve “partir de nada”, não ser nada “em si”. Ademais, “nada” é, cremos, a condição, a referência irreferente, o ponto de partida da ética, desde a “clássica” até a contemporânea, implícito ou explícito, necessário e cujo rastro não raro é apagado, de A a A, de B a B356, a C, a D, a F, como tentaremos mostrar.

Todavia, se algo “se dá” no poético, se há nele algo de “revolucionário”, isso quer dizer que a invenção des-cria, cita... (E, consequentemente, uma ética também descria, cita, etc.). Cita, embora ela se constitua apagando a citação e a licitação, trazendo a injunção de uma recitação – “de cor”, expressão que evoca o coração, mas um coração que se “aprende” com o poema e que não nega a sua condição maquínica e a possibilidade do equívoco e da

354 In: L’écriture et la différence. Op. cit. p. 339.

355 Ver nota supra, último grifo nosso. Tomado em sua origem, temos que o “respeito” pede que “se olhe várias

vezes para trás” (respectare). O des-respeito seria assim a premissa única do “mau” para Derrida (o mau leitor sendo aquele que não olha para trás. O mal, diriam alguns, se reconhece aí ainda como um processo de leitura, o enclausuramento do mundo à página do livro, conforme Marcos Siscar resume a crítica de Foucault a Derrida). Este respeito pela originalidade do significante literário não é o que resiste a Freud em Certeau, a querer manter a “ficcionalidade” sob o signo “irreferente”, digamos, do “nada”?

356 “Nada” seria o espaço vazio onde, o dizíamos em nota no primeiro ato, Aristóteles e Bataille deveriam se

encontrar, estranho encontro é verdade, a seguir a reivindicação de Barthes de uma atividade – tanto escriturária quanto pedagógica – “para nada”. Agamben: “A ética só começa onde o bem se revela como nada mais que uma tomada (saisie) do mal e onde o autêntico e o próprio se revelam desprovidos de outro conteúdo que não o inautêntico e o impróprio” (“Avoir lieu”. In: La communauté qui vient. Op cit. p. 18); ou: “Le fait dont tout discours sur l’éthique doit partir, c’est qu’il n’existe aucune essence, aucune vocation historique ou spirituelle, aucun destin biologique que l’homme devrait conquérir ou réaliser. C’est la seule raison pour laquelle quelque chose comme une éthique peut exister : car il est clair que si l’homme était ou devrait être telle ou telle substance, tel ou tel destin, il n’y aurait aucune expérience éthique possible – il n’y aurait que des devoirs à accomplir”. Mas, precisa Agamben, resistindo a dois motivos econômicos que derivam do “niilismo” e do “decisionismo”, um nada-poder-ser e um poder-ser-tudo: “Cela ne signifie pas, toutefois, que l’homme ne soit pas ou ne doive pas être quelque chose, qu’il soit condamné au néant et puisse, par ailleurs, décider à son gré d’être ou de ne pas être, de s’attribuer tel ou tel destin (nihilisme et décisionnisme se rencontrent en ce point)” (“Éthique”. In : La communauté qui vient. Op. cit. p. 47-8).

asneira. O apagamento do rastro do poema, o poema como rastro (trace à l’oeuvre) ou cinza que, “estruturalmente”, pode sempre desaparecer (até mesmo o seu desaparecimento), não abole a referência357, mas remarca nos seus “limites” o segredo. Isso, a princípio, não contradiz a resistência de C para com o realismo autoritário da referência, o seu retorno ao real como determinante da verdade, ou a economia do testemunho que lhe supre esta autoridade quando vem a faltar. Muito pelo contrário.

“Poético”, portanto, não poderia se opor a “analítico”, nem a “canibal”, a uma “devoração” compulsiva, porém “auto-imunitária”, “auto-fágica”.

No seu livro de poemas intitulado A educação dos cinco sentidos – um espectro de Marx, aliás toda esta “educação” é um enorme trabalho de citação, de referência e de títulos, incluindo nomes próprios, nomes de obras, teorias, datas, etc., em outras línguas e em outras grafias358 – H versava não só sobre “Biografemas in memoriam”359, como também “biófagos grafemas”360. Não é descabido tentar redobrar nestes uma gráfica da auto-biofagia.

Assim, a compulsão à recitação que opera n/o poema não é separável de um movimento “lítico”: ela dissemina sua “resistência” destruindo a “autoridade do fato”, do que é dado como “real”, des-criando, abrindo espaços, violando brancamente o mesmo e sua lei. Mas o seu ditado deseja, ao mesmo tempo, apagar seus rastros, incita a ser engulida, decorada em toda a sua originalidade, toda a singularidade de sua experiência, como o fundo de uma genealogia. A luz de uma “contra-genealogia” dá a pensar no poema, ou no epigrama, um resto de análise, um “resto a analisar”/um “resta analisar”, um sem fundo – que já “permitiu”

357 Pelo contrário, Derrida explica, inclusive, em mais de um lugar, como, para ele, se dá a referência.

Especialmente em Salvo o nome. Op. cit.

358 Alguns exemplos: “Portrait of the artist as a young man”, “je est un autre: ad augustum”, “minima moralia”,

“brancusi”... Espalham-se ainda ideogramas, letras em outras fontes, maiúsculas etc. “A educação dos cinco sentidos” é uma frase de Marx, que Haroldo coloca em epígrafe. O que acontece quando a “educação” dos “cinco sentidos” co-responde a um enorme trabalho de citação?

359 A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 81. Remissão, sem dúvida, aos famosos

“biografemas” barthesianos de “Roland Barthes por Roland Barthes” (“Roland Barthes par Roland Barthes”. In:

Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1994).

360 A educação dos cinco sentidos. Op. cit. p. 61. Verso do poema “O que é de César”. Dupla ironia da

propriedade, dado que se evoca César, o César de Shakespeare e uma pequena galáxia de césares (Ana Cristina...)

o pensamento ou a “palavra analítica”361. Como formularam S ou G, a literatura oferece um fundo para logo retirá-lo – e naufragar, abandonando um rastro “hiperbolítico”362.

Mas se C afirma o “nada”, que, com todo rigor, deve “sustentar” a ficção e que é possibilidade “irredutível” (porque absolutamente redutível) de seu rastro, D insiste, ainda seguindo o “pensamento do rastro”, numa paixão do segredo. Em Béliers, D dá continuidade a um “diálogo ininterrupto” com a filosofia hermenêutica de G363, e vai começar mostrando, de modo no fundo não muito dissimilar ao “analítico”, a necessidade da interpretação, sua tarefa364 ou seu processo infinitos365, a responsabilidade e o diálogo que ela chama pelo fato mesmo de sua infinidade e da obra ser, na concepção de G, soberano e contínuo “subjectum” da arte (em vez do autor)366. Mas no reverso de toda esta responsabilidade infinita e

361 Coloquemos dois anúncios do “in(dis)pensável” “poético” em epígrafe de rodapé: 1. Certeau anuncia o

caminho que leva à “escritura poética” sob os passos da démarche (procedimento) que “obriga” a uma “interrogação” (analítica?): “Sobre os procedimentos lacanianos, os estudos já são numerosos e apresentam toda a gama de gêneros, desde a acrimônia do sério lingüístico até as farças da simpatia estilística. Inútil insistir nisso. O essencial é reconhecer aí o conjunto de operações efetuadas na linguagem pelo “ser falante”. Estes traços literários são os gestos de uma teoria, suas maneiras de andar (marcher: funcionar, acreditar...). Eles desenham talvez esta “lingüística da palavra” eu Roland Barthes tinha como ainda impossível e que seria uma “nova maneira de pensar”. Impossível, em todo caso, reduzi-la (e medi-la) aos sistemas lingüísticos dos quais ela não cessou de se distinguir (“a linguagem não é o ser falante”) emprestando-lhes, ao mesmo tempo, conceitos que ela metaforizava imediatamente. Apenas uma inversão de imagem, quiprocó ele mesmo revelador, pode explicar que Lacan apareça como “psicolingüista” nos pôsteres americanos. Seu procedimento (sa démarche) obriga antes a se interrogar sobre a necessidade interna que leva a palavra analítica a uma escritura poética e que faz desta experiência a elucidação do que é a prática da literatura. (Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Op cit. p. 179-180); 2. No estudo de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarte sobre O título da letra (uma

leitura de Lacan) (Trad. Sérgio Joaquim de Almeida. São Paulo: Escuta, 1991) na teoria lacaniana, depois de

remarcar outras voltas com o/do poético nos momentos mais decisivos da teoria (“Esqueçamos por um instante o rodeio poético pelo qual tal significante acaba de transpor a barra – eis que, como veremos, o mesmo rodeio não demorará em insistir de novo”, p. 70), o texto conclui com uma “epigramatização” e o que dela se conclui: “Que, no entanto, a retoricidade do retórico não possa negar-se, que a metaforicidade, em geral, deva ser deportada – que nunca possa fixar-se ou ser detida – é bem isto que era indicado no texto de Freud que, por esta razão, cremos poder pôr em epígrafe. Texto este que será preciso, também, por conseguinte, reler...” (p. 155-156).

362 Nome resistente, composto de uma “análise hiperbólica” (hiperanalítica) e resistente à análise porque não

coloca como telos da análise o “principial do princípio”... Résistances. Op. cit.

363 Os textos que de tramam mais explicitamente o debate são, entre outros, de Gadamer: “Destruição e

desconstrução” (“Destruction et déconstruction”), “Desconstrução e hermenêutica” (“Déconstruction et herméneutique”, ambos em La philolophie herméneutique. Paris: PUF, 1996.); de Derrida: “Bonnes volontés de puissance” (In: Revue internationale de philosophie. n. 151. fasc. 4, “Herméneutique et néo-structuralisme. Derrida, Gadamer, Searle”, 1984), Béliers (Op. cit).

364 Para dizê-lo com Michel Foucault. Um diálogo sobre os prazeres do sexo; Nietzsche Freud e Marx; Teatrum Philosoficum. Trad. Jorge Lima Barreto; Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000. p. 57.

365 Béliers... Op. cit. p. 38. 366 Béliers... Op. cit. p. 18.

ininterrupta da filosofia heumenêutica, há o que D, às voltas com um poema de C367, chama de “experiência disseminal”, que “assume, a través da hermenêutica, nela mesma [à même l’herméneutique], a prova [l’épreuve, no sentido de provação, provança, não-prova de que se faz uma experiência] de uma interrupção, de uma cesura ou de uma elipse, de um encetamento”368. Hiato que “mantém”: o contexto insaturável e o infinito descontínuo, o

poema longe do mundo e simultaneamente acolhedor e encarregado da alteridade369, a “cripta” secreta, o segredo secreto, dividido, heteronômico370 (não “hermenêutizável” ou explicável), divisor de bordas:

São tantas hipóteses, é claro, e indecisões. Isso fica [reste] para sempre o elemento mesmo da leitura. Seu “processo infinito”. A cesura, o hiato, a elipse, tantas interrupções que ao mesmo tempo abrem e fecham. Elas retêm para sempre o acesso do poema no limiar de suas criptas (uma delas, uma somente, faria referência a uma experiência singular e secreta, inteiramente outra [tout autre], cuja constelação só é acessível ao testemunho do poeta e alguns outros).

(Pequena interrupção, interromperemos também as iniciais, para assinalar: esta “experiência singular e secreta” se assemelha àquela que Ginette Michaud analizou em Tenir au secret (Derrida, Blanchot), a partir do texto de homenagem de Derrida a Blanchot, Demeure, Maurice Blanchot371: a referência desta cripta, “tout autre”, inteiramente outra, parece sugerir que a sua particularidade é a de remeter a uma interpretação ou uma determinação de sentido da experiência vinda da “vida real”, como seria possível intuir do fato de Derrida se apoiar numa carta “privada” que Blanchot lhe enviou e que explicaria a experiência de L’instant de ma mort372. Em outros termos, tratar-se-ia de uma ocorrência “única” na obra de Derrida: a de

367 Poema de Paul Célan, “Grosse, Glühende Wölbung”, de Atemwende, que termina com os seguintes versos:

“Die Welt ist fort, ich muss dich tragen” (o mundo está longe, devo te levar).

368 Béliers... Op. cit. p. 54-5.

369 Conforme anotado acima, o poema de Célan afirma a distância do poema do mundo, e no verso final – “Ich

müss dich tragen” (eu devo te portar, te carregar...), refrão de Béliers – o outro paradoxo da responsabilidade do poema.

370 Como diz Ginette Michaud, em Tenir au secret (Derrida, Blanchot) (Op. cit.) a qual se apóia em sessões

inéditas do seminário de Derrida chamado “Répondre du secret” de 1991.

371 Derrida, Jacques. Demeure. Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998.

372 Lembrando que L’instant de ma mort de Blanchot narra a quase-execução do narrador pelos oficiais alemães

na segunda guerra e, em estranho paralelo, a perda sem volta de um manuscrito único, cujo segredo se arrasta com o a sentença de morte que paira sobre a sobre-vida que o narrador vive desde o incidente da quase-execução – e, em contrabando, desta insubstituível perda.

um “acesso” privilegiado – isto é, “inacessível”, palavra que Certeau usava no que dizia respeito à “autoridade” validada por um recurso ao místico ou à ao nome próprio da instituição –, sendo que todas as outras vias de entrada no poema se detêm no limiar de suas “criptas” (inscrições e/ou túmulos). Logo, o que era uma ocorrência única – no caso de Blanchot – não é mais tão único e se “encripta” aqui novamente para Célan e o poema “em geral”. Mas no coração do testemunho desta carta privada373, reincide, novamente, uma “resistência”, na verdade mais de uma: a da “Resistência” francesa aos nazistas (em L’instant de ma mort, de Blanchot), pela qual Derrida “confessa” seu fascínio na abertura de Résistances; segundo Michaud, a substituição entre as duas cenas (quase-execução e perda do manuscrito) e entre seus tempos neste “Instante”

é o que resiste até o final. É precisamente a esta resistência que o manuscrito torna sensível, que ele materializa no exato momento de seu desaparecimento no deslizamento de um evento para outro, de uma data para outra, de uma morte para outra, resistindo ao mesmo tempo a toda substituição pela sua singularidade, sua insubstituibilidade mesma. Ao instalar este deslocamento “no lugar do segredo”, o relato opera assim não um retorno à realidade, muito menos à normalidade, mas descobre assim um impensado que escapa a toda análise e resiste até o fim.374

No selo aberto da cripta (entre o críptico como cifra – legível – e o a cripta como túmulo – ilegível –, o manuscrito perdido e a quase-execução), o que persiste ou resiste na afirmação de um “acesso” à “constelação” da “experiência singular e secreta” pelo único “testemunho” do poeta (“e de alguns outros” – mas quem? os “próximos”, os “amigos próximos”, os amigos- irmãos humanistas? Derrida, por exemplo, para Célan?) caberia nos termos de uma “expérience inéprouvée”, expressão enigmática de L’instant de ma mort: experiência não

373 As primeiras linhas de Ginette Michaud: “Uma carta, mesmo ‘privada’, estará alguma vez fora da literatura?

Ou, resistindo surdamente a todos aqueles – críticos literários, pesquisadores e outros leitores profissionais – que tentam se servir dela arrazoando-a como documento, arquivo, até mesmo como caução ou prova material, será que ela não permanece nas suas bordas, permanecendo (séjournant: fazendo uma estada) indefinidamente nas suas paragens, lá ‘(de)morando’ (demeurant) de certa forma em suspens(o) sem contudo jamais permanecer (demeurer) enquanto tal?” (Nós grifamos, p. 9). Encontramos quase todos os termos da resistência que atribuímos a Certeau e que, ao mesmo tempo, nele resistia. A dificuldade da tradução se deve à retomada por Michaud de toda a riqueza e indecidibilidade que “demeurer” ganhou no texto de Derrida lendo “Blanchot”, assim como das suas declinações, como a de “morada”, “morte”, “demora” (e morada como lugar de demora e de último lugar de vida de alguém), atraso de morte e morte que demora (demeurance, demourance).

374 Tenir au secret. Op. cit. p. 107-8. Diga-se de passagem, Michaud cita duas vezes a “nossa” epígrafe (p. 9 e

sofrida, não provada, inanalisável, mas que dura até o fim, que faz do instante de uma quase- morte a “instância” da morte sempre em instância de (sentimento extático de leveza ao escapar da morte e sentença de morte, nos diz Demeure)... É também a “experiência” – cuja leitura o leitor do relato não experimenta – do manuscrito perdido, inéprouvé, isto é, não-lido, não sobrevivo, “absolutamente perdido”, a não ser no relato que é sua “última testemunha”, e que testemunha pela perda sem salvação (inclusive a salvação do testemunho definitivo). Do qual, em outros termos “só se pode testemunhar, mas além de toda atestação presente”375. Em vez de abalançar a hipótese de Michaud segundo a qual a literatura é, para Blanchot e Derrida, o lugar do segredo por excelência, à diferença, por exemplo, da psicanálise, que seria o do pensamento da crueldade, este último e tardio testemunho epistolar acrescenta, como um “prière d’insérer”376, exergo de última hora, uma “última” resistência da literatura ao limite entre testemunho e ficção, isto é, levando-a a não renunciar sequer aos “riscos” do testemunho, uma última resistência à “própria” autoridade do dizer contaminada pela “possibilidade da literatura” 377. Continuemos com as outras interrupções:)

As interrupções abrem também, de modo disseminal e não saturável, para constelações inprevisíveis, para tantas outras estrelas, dentre as quais algumas se parecerão talvez ainda a esta semente da qual Javé disse a Abraão, após a interrupção do sacrifício, que ele a multiplicaria como estrelas: o abandono do rastro deixado, é também o dom do

375 Derrida, Jacques. Demeure. Op. cit. p. 136. Nós grifamos: com esta precisão e ao dissociar o testemunho da

atestação da verdade, somos incitados a pensar a diferença (o relato) que produz a atestação, pela qual só se pode testemunhar... pelo relato.

376 Folha que, a princípio, se insere, após a publicação do livro, como comentário ou introdução suplementar. Há

um “Prière d’insérer” em Demeure, totalmente destacado da encadernação do livro (o manuscrito perdido de

L’instant de ma mort era um “caderno”) e é, por definição mais “perdível” que as outras folhas, e não é sem

lembrar que, mesmo impresso, este texto é tão “mortal” quanto o manuscrito único. Este “prière d’insérer” recolhe as ocorrências da palavra “demeure”, do verbo “demeurer” em L’instant e alguns de seus comentários por Derrida

377 “Le témoin ‘jure de dire la vérité’, il promet la véracité. Mais là même où elle ne cède pas au parjure,

l’attestation ne peut ne pas entretenir une trouble complicité avec la possibilité, au moins, de la fiction. Où situer, dès lors, entre les deux, la littérature ? une histoire de la littérature et une histoire racontée par la littérature ? Celle-ci ne renonce à aucune des deux chances, à aucun des deux risques (le témoignage et la fiction). Ne se tient-elle pas sur une limite commune, aux confins équivoques de ces deux langages?” (“Prière d’insérer”.

Demeure. Op. cit. p. 1). Uma última questão se colocaria enfim para quem esperasse salvar a “especificidade” ou

a “singularidade” da literatura, uma vez que, ao mesmo tempo “lugar por excelência do segredo” e começando com a possibilidade da ficção, o território de sua singularidade não se atém aos limites do texto que, a princípio, era sua “única prova”, em todo caso o único objeto de uma “ética da leitura” em literatura, como dirá Hillis Miller (que evocaremos a seguir). Não renunciando a nenhum dos dois riscos, testemunho e ficção, a literatura daria a ler, contudo, a experiência impossível do testemunho, deste louco testemunho: “testemunha[r] do que escapa ao testemunho”, como escreveu Blanchot (citado acima).

poema a todos os leitores e contra-signatários que, sempre sob sua lei, a do rastro em

obra (trace à l’oeuvre), do rastro como obra, levarão e se deixarão levar em direção a

uma leitura ou contra-leitura inteiramente outra (tout autre). Esta será ainda, de uma língua para outra às vezes, no risco abissal da tradução, uma incomensurável escritura.378

Interrompamos para tentar atar alguns dos fios deixados soltos. O que está em jogo de “incomensurável” e que se designa ainda por escritura? Como a “interrupção” onipresente se dá na economia da tradição – e, logo, da ética –, que remonta aqui até Abraão? Vamos assinalar apenas algumas pistas no que concerne o poema, o que o interrompe como epigrama; o que nele se anuncia como dom.

1. Aqui, o poema se torna epigrama de uma de uma tradução de riscos abissais (em “Che cos’è...” o ouriço já arriscava sua vida na “auto-estrada da tradução”, e este “auto” designava antes o carro, la macchina mortal de uma “auto-telia”, isto é, aquilo que tem como

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