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COOPERAÇÃO FORMAL E/OU JURÍDICA E A OBEDIÊNCIA À LEX DILIGENTIAE

2 A APLICABILIDADE DE MECANISMOS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL NA DEFESA DA CONCORRÊNCIA

2.2 COOPERAÇÃO FORMAL E/OU JURÍDICA E A OBEDIÊNCIA À LEX DILIGENTIAE

A lex diligentiae129 representa conceito central aos pedidos de cooperação formal e/ou jurídica internacional que buscam o cumprimento de medidas de diligências tais como o impulso processual, a produção de provas e a execução de medidas assecuratórias. Não por outro motivo, destinaremos especial atenção a esse ponto, a fim de avançarmos nas explanações futuras.

Em Direito Internacional Privado, a lex fori constituiria a regra geral. Tradicionalmente, a lei do local onde se inicia o processo é que regularia todos os aspectos relacionados ao exercício da jurisdição130. As razões residiriam em regras universalmente aceitas, como as de que o exercício da jurisdição é uma das funções do exercício da soberania, e de que as autoridades administrativas ou judiciais de um país aplicam somente regras                                                                                                                

128 A reserva da especialidade será analisada com mais detalhes ao final deste Capítulo.

129 As terminologias empregadas para designar objeto semelhante são variadas. Por isso, esclarecemos que o que

aqui denominamos como lex diligentiae (regra de aplicação da lei do Estado requerido na execução da medida solicitada), outros autores identificam, de forma semelhante, utilizando diferentes nomenclaturas. Jatahy, por exemplo, ao comentar a execução de cartas rogatórias, fala que há de se observar a lei do Estado rogado e identifica a necessidade de tal observância na regra de lex fori. (JATAHY, Vera Maria Barreira. Do Conflito de

Jurisdições – A Competência Internacional da Justiça Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 213). Outros

autores preferem nomenclaturas alternativas, como locus regit actum ou lex fori execuciones. (CAPATINA, Octavian. L’entraide Judiciaire Internationale en Matière Civile et Commerciale. In: Recueil des Cours. Haia/ Boston/ Londres: Martinus Nijhoff Publishers, t.179, 1984). Elegemos o emprego do termo lex diligentiae, cunhado em artigo seminal de Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio. Acreditamos que o termo trata de regra específica, a qual particularmente nos interessa: a necessidade de se aplicar a lei do Estado requerido quando da realização de uma diligência no exterior em virtude da cooperação internacional. Veja DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. The Forum Law Rule in International Litigation – Which Law Governs Proceedings to be Performed in Foreign Jurisdictions: Lex Fori or Lex Diligentiae? In: Texas International Law Journal. Austin, Texas: University of Texas at Austin School of Law, v. 33, n. 3, 1998, p. 425-461.

processuais e de organização da administração de justiça de seus países, não a de Estados estrangeiros131.

A regra seria distinta quando fossem buscadas medidas processuais ou investigativas, solicitadas por um forum (ou seja, o do Estado requerente), para a execução de medida em outro forum (ou seja, o do Estado requerido). Essas diligências deveriam ser controladas pela lei deste outro forum. Dolinger e Tiburcio denominam a regra de lex diligentiae132. Assim, quando o que se busca é o cumprimento de medidas tais como as de mero impulso processual, as de produção de prova e as assecuratórias, aplica-se a lei do Estado requerido, isto é, a lei do Estado de onde o ato tenha que ser praticado. Será o cumprimento consoante às regras da lex diligentiae que assegurará a validade da medida cumprida.

Tal regra está em vários diplomas afetos ao tema de cooperação jurídica internacional133, incluindo os acordos bilaterais de cooperação jurídica internacional134. A aplicação da lei do Estado requerido para o cumprimento de diligência, por óbvio, tem sua racionalidade. Não seria factível exigir do Estado requerido que, a cada vez que cumprisse medidas solicitadas por distintas jurisdições estrangeiras, adequasse seu aparato estatal, suas regras de administração da justiça e seu pessoal e rotinas diárias à legislação de cada Estado requerente. A lex diligentiae, assim, é princípio reitor condizente com um mundo em que a cooperação internacional não é excepcional, sim uma exigência cotidiana das autoridades e uma obrigação135. Há, nesse cenário pós-moderno, de se primar pela operacionalidade e o pragmatismo.

A regra da aplicação da lex diligentiae também se insere em lógica de respeito à jurisdição estrangeira, conforme postulam Dolinger e Tiburcio136. Dado o foco privilegiado                                                                                                                

131 “(...) selon un principe universellement admis, en effet, les autorités administratives ou juridictionnelles de

chaque pays appliquant toujours les règles de procédure de ce pays, et jamais celles d’un Etat étranger." GOLDMAN, Berthold. Les champs d'application territoriale des lois sur la concurrence. In: Recueil des Cours. Haia/ Boston/ Londres: Martinus Nijhoff Publishers, t. 128, n. 3, 1969, p. 646.

132 DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. The Forum Law Rule in International Litigation – Which Law

Governs Proceedings to be Performed in Foreign Jurisdictions: Lex Fori or Lex Diligentiae? In: Texas

International Law Journal. Austin, Texas: University of Texas at Austin School of Law, v. 33, n. 3, 1998, p.

427-428.

133 A regra, por exemplo, está nas Convenções de Haia e Interamericanas, incluindo a Convenção sobre Adoção.

Ademais, pode ser encontrada no Código de Bustamante. A respeito, leia DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Op. Cit., p. 435-440.

134 “Bilateral conventions also tend to include terms similar to the provisions discussed in the above-mentioned

conventions.” (DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. Op. Cit., p. 440).

135 Veja JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. In: Recueil des Cours. Haia/ Boston/ Londres: Martinus Nijhoff Publishers, t. 251, 1995, p. 258.

136 “There are two reasons to apply lex diligentiae to the collection of evidence. The first and foremost reason is

the respect due the foreign jurisdiction where the evidence is to be collected. The state where the suit is brought does not have jurisdiction outside its territorial limits. For example, under what authority may a judicial authority determine that a witness domiciled in Brazil be heard or that a document located in Brazil be analyzed? The jurisdiction of a judicial authority is limited to the territory in which the judge exercises his or her functions and

desta dissertação, de apresentar a cooperação como alternativa ao exercício da jurisdição extraterritorial direta, nos casos em que seja exercida sem a autorização do Estado estrangeiro, acrescentamos que a regra tem a função de impedir eventual exercício invasivo e propenso a criar conflitos. Ora, uma vez que se exige, via de regra, o cumprimento da lex diligentiae para que a medida seja válida, a exigência estimularia a busca da cooperação internacional, e, no limite, a convivência harmônica entre os povos.

Conforme aqui defendemos, o princípio de obediência à lex diligentiae inclui não só a observância às normas processuais, mas também às regras de organização administrativa da jurisdição que cumpre a diligência. Definições tais como as referentes a competências e legitimidade ativa das autoridades para determinado fim são afetas, em rigor, à soberania de cada Estado. Portanto, estas devem ser delimitadas no Estado requerente (de origem), e não no Estado requerido137. O tema, não raro, costuma gerar confusões por parte de autoridades não suficientemente familiarizadas com o dia a dia da cooperação. Lembramos aqui as sábias palavras do Ministro Francisco Rezek, em seu voto na Extradição nº 504: “não podemos impor ao direito estrangeiro contornos exatamente idênticos àqueles do nosso direito”138. À luz dessa compreensão, tentar impor o Direito do Estado requerente seria solução a ser evitada, sempre que possível.

Logo, o cumprimento da diligência solicitada seguirá essencialmente os procedimentos exigidos na lex diligentiae. Porém, quando necessário que o Estado requerido siga algum procedimento especial, de forma a assegurar que a medida seja válida no Estado requerente, isso poderá ser solicitado no bojo do pedido. O princípio da lex diligentiae, assim,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

not beyond. The second reason is more practical: ensuring that the decision is recognized and enforced abroad, particularly in the state where the evidence was collected. As a rule, a jurisdiction will not recognize a foreign decision if that decision was reached by violating basic principles of domestic legislation. Conversely, evaluation of evidence b a court should be regulated by lex fori because this function is connected to the process by which a judicial authority renders its decision, which goes to the essence of the judicial role.” (DOLINGER, Jacob; TIBURCIO, Carmen. The Forum Law Rule in International Litigation – Which Law Governs Proceedings to be Performed in Foreign Jurisdictions: Lex Fori or Lex Diligentiae? In: Texas International Law Journal. Austin, Texas: University of Texas at Austin School of Law, v. 33, n. 3. 1998, p. 434). Assim, ao lado do respeito à jurisdição estrangeira, Dolinger e Tiburcio ainda acrescentam uma segunda razão essencialmente prática: garantir que a decisão seja reconhecida e executável no estrangeiro, em especial, onde a prova foi coletada. Se tiver como contrafactual a possível homologação de sentença estrangeira, de fato, parece desejável que se respeite procedimento nacional, de forma a evitar que argumento seja levantado pela defesa. Não obstante, segundo os autores, tal argumento só poderia ser aventado em processo oriundo de Estado requerente.

137 “Porém, é preciso observar se a autoridade do Estado rogante é competente para determinar a medida cuja

eficácia pretende seja estendida ao território nacional. Trata-se, neste caso, do critério da competência na origem. É possível que determinada medida que, no Brasil, somente seria processada por autoridade do Poder Judiciário seja, na origem, atribuição de outra autoridade, como um membro do Ministério Público.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento na Carta Rogatória nº 998. Voto Min. Gilson Dipp. Voto Rel. Min. Edson Vidigal. Publicado no DJ em 30 de abril de 2007).

138 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 504. Voto do Rel. Min. José Francisco Rezek. Publicado

comporta exceções. De um lado, o Estado requerente pode solicitar que a autoridade do Estado requerido cumpra com alguns aspectos procedimentais especiais139. De outro, a autoridade requerida pode cumprir com alguma forma especial, caso compreenda ser o ônus desse cumprimento suportável, bem como que o procedimento solicitado não viola a ordem pública do lugar onde a medida há de ser executada. Alguns tratados fazem referência expressa a essa possibilidade, a exemplo dos MLATs vigentes no Brasil140.

2.3 DA APLICABILIDADE DA CARTA ROGATÓRIA PARA INFRAÇÕES À ORDEM