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Análise dos Espetáculos do Método BPI: 1990 –

CORACI MIRONGÁ

Pesquisa de campo: Baianas da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde, São Paulo – SP.

Uma mulher vestida com uma grande saia azul e com um turbante na cabeça traz um pequeno braseiro, no qual queimam algumas ervas. Ela vai deslizando pelo espaço, limpando e preparando o lugar para começar os trabalhos. Ela gira e defuma cada canto do lugar e com seus gestos de mão vai afastando, colocando e retirando coisas e intenções. Ela volta ao fundo do palco, atrás de uma cortina de renda branca, deixa o defumador e pega um vaso com flores brancas. Seu caminhar agora é mais pendular, ela se desloca balançando sua saia como as ondas do mar, num constante vai e vem. Como as ondas, os seus movimentos parecem lavar aquele espaço. Ela se ajoelha na frente do palco, oferece as flores brancas e

despeja sua água de cheiro, entrando em giros que movimentam e dinamizam toda a paisagem.

Este momento é como uma preparação para o início do ritual do próprio espetáculo. É um rito que vai desvelando a paisagem que a personagem Coraci habita. Coraci é, também, uma baiana, como aquelas que vendem quitutes com seu tabuleiro na rua. Ela se apresenta faceira, sinuosa, jogando seu charme e vendendo ou dando suas guloseimas. Quem se arrisca? Ela traz um largo sorriso no rosto e, em sua malandragem, ora oferece um doce, ora oferece uma pimenta.

As muitas facetas de Coraci serão reveladas nesse ciclo de ir e vir, entre a boca de cena e o fundo do palco. Junto das mudanças da modelagem de Coraci, a música também se transforma, revelando e sublinhando cada nuance desta personagem misteriosa. Em sua magia, vai se revelando uma feiticeira que entra de costas, fremindo os ombros e rodando como quem abre uma Gira, evocando seus Orixás. Coraci vai trazendo em seu corpo os movimentos de alguns Orixás, começando por Oxumarê, passando por Oxum, Ogum, Oxóssi e Obaluaê. Ela, depois de formar e apresentar todos os santos do seu altar, parece assoprar no ar o seu tempo, a atmosfera do seu lugar, ela é da mandinga, ela é feiticeira. Coraci retira de dentro de sua saia um chocalho de sementes e com ele começa a marcar o ritmo de sua caminhada. Depois passa a benzer ou acordar todo o espaço e o seu próprio corpo que, neste momento, se juntaram numa coisa só. Seus gestos são sinuosos e cheios de uma cadência hipnotizante.

Espaço limpo e abençoado abre-se, então, o baile da Corte e é agora que a Gira de Coraci vai rodar. Ela, com um olhar dissimulando certa fragilidade e fingindo certa doçura, espalha seu encanto pelo salão. Mas ela é sorrateira, arisca e a qualquer sinal de perigo deixa revelar que seu charmoso leque é também sua arma. O seu disfarce social é bem aceito nos mais variados grupos. Seus gestos deixam revelar o incômodo com toda aquela falsidade e, sem se conter, ela abana, bate, afasta, luta e se protege. Coraci esconde o rosto, mas não se faz de rogada, quando se sente ameaçada usa seu leque para cortar e furar seus inimigos. O vermelho toma a cena, Coraci não se arrepende de seu ato e, se preciso for, usará novamente a sua arma. Ela não se deixa amedrontar. Coraci foi à caça, foi buscar o elemento vivo para o sacrifício que sua Gira pede.

Coraci agora procura por um lugar seguro, um canto onde ela possa assentar- se e abrir sua cozinha. Ela agarra tudo o que encontra pelo caminho, qualquer

pedaço, resto ou parte será útil. Ela entra por dentro de sua saia revelando, por debaixo da saia, sua cozinha, suas panelas e utensílios. Coraci prepara suas panelas, seus ingredientes, seus temperos secretos e se coloca a cozinhar. Ela vai preparar a caça que pegou, ou aquele que conseguiu pegar. Ela mexe suas panelas, amassa sua massa, dança o seu cozinhar com prazer. Ela prova seus temperos, oferece ao mundo aquilo que cozinha. Sai carregando suas panelas na cabeça, mostrando os seus feitos, oferecendo a comida que ela mesma cozinhou. Com seus caxixis parece temperar e ao mesmo tempo abençoar ou envenenar o alimento que preparou. Seu sorriso é faceiro e sua cozinha é de magia; na cozinha de Coraci, se preparam os alimentos e poções, o remédio e o veneno.

Coraci coloca feijões em uma panela e dança como se estivesse catando os ciscos misturados aos grãos, mas sua movimentação se amplia e ganha novos sentidos. A panela parece ganhar vida e tomar o controle dos movimentos, a partir de giros, o corpo dela segue por várias direções pelo espaço. Coraci retoma o controle e agora joga a panela de uma mão para a outra, seu corpo se contorce fazendo movimentos diversos e oferecendo o alimento. Na boca de cena, ela despeja o feijão de uma panela para outra, como quem reparte a comida entre muitas pessoas. No fim desta sequência, uma das suas panelas fica na frente do palco, lembrando a oferenda para algum santo, para o povo ou para uma nova presa.

A música, junto com o corpo de Coraci, instaura um momento de grande festejo. Ela dança e se entrega ao samba, ainda com suas panelas na mão. Coraci movimenta suas “cadeiras” — dança pontuando bem os seus quadris — batucando com uma colher em suas panelas que já estão vazias. O som do batuque e o sorriso dela se espalham pelo lugar. Mas a música cessa, a festa acaba, as pessoas vão embora e sobra Coraci — sozinha e com o ânimo de quem quer mais festa. Ela fica sozinha e toda a atmosfera da paisagem torna-se pesada, talvez esse seja o seu maior pesadelo. Coraci que oferecia comida e festa para todos, se vê agora abandonada, sem companhia e sem música. Ela raspa o fundo vazio de suas panelas. Com a solidão, veio a sua própria fome e ela já não tem mais nada que a alimente. Mas o que será que Coraci cozinhou nas suas panelas? Qual foi a oferenda sacrificada?

O colorido da sua vida dá espaço para o branco, para o vazio, o sem cor. Coraci se enfia nas suas panelas, ela tenta dormir ou fugir daquela realidade que a

assusta. Mas ela não consegue e o som das panelas vazias se mistura ao som da sua fome, ao som do seu estômago vazio que agora ronca. Ela tenta extrair desse som alguma música, mas o ritmo e aquela cadência não se harmonizam.

Em seu desespero, Coraci tenta arrancar de si mesma algo que a alimente, ela tenta se cozinhar. Num misto de loucura e sonho ela vê e transforma seu turbante em uma cobra. Coraci dança com a cobra, ambas desconfiadas e sorrateiras, dada a iminência de um possível bote. Ela e a cobra se fundem, tornam- se uma coisa só. Elas buscam em cada canto uma solução para a situação. A cobra ao mesmo tempo que é traiçoeira é, também, uma saída, uma força para que Coraci se reerga. A cobra ganha, ainda, o sentido de renovação, de regeneração, de transformação. Coraci rasteja, dinamizando sua própria desistência e estagnação. Ela é o veneno e também a cura, o antídoto para si mesma.

A cobra traz um novo fluxo ao corpo e vai embora, com isso, Coraci retorna o eixo do corpo vertical. Ela acorda de seu sonho, de sua ilusão, no meio de uma batucada. Coraci reconhece aquela toada, é o ritmo e a cadência de sua escola de samba. Ela fica constrangida, por não estar vestida adequadamente, mas acaba se entregando ao samba. Ela dança com toda a sua força e vida. Entretanto, há algo errado, a escola vai passando e não espera por ela, não a leva junto. Coraci fica para trás e é abandonada novamente. Coraci já não existe fisicamente. Ela tenta se agarrar ao grupo, tenta chamar, ninguém pode ouvi-la. Ela se desespera, chora e enlouquece. É como se a baiana Coraci houvesse perdido a sua nova oportunidade de se juntar ao grupo. Ou ainda, no fim de sua jornada de vida, Coraci tem seu último lampejo vendo o samba que ela nunca abandonou.

Das similaridades: primeiro tratamento das Descrições

A partir das descrições anteriores, foi possível perceber a existência de algumas similaridades recorrentes nos espetáculos aqui analisados. Esses dados similares dizem respeito ao desenvolvimento dos intérpretes, às especificidades do processo criativo instaurado, bem como, a características pontuais e inerentes aos espetáculos gerados pelo método BPI. Os dados aqui levantados são apontamentos iniciais, mas, parecem direcionar e trazer um norte para a análise que aqui se pretende.

Um primeiro item diz respeito à estrutura dos espetáculos. Percebe-se a existência de dois momentos ou duas partes nesses espetáculos que poderiam ser denominados como dois atos, dizendo de um trânsito entre peso e leveza, entre claro e escuro, ou ainda, entre conflito e solução, entre ordem e caos. Esses dois atos com suas qualidades não possuem uma ordem específica e nem são divididos em partes iguais. Esta possível separação diz, mais, sobre a ação desenrolada ao longo do trabalho cênico, na qual a personagem, ou as personagens, passam por momentos mais tensos, delicados ou penosos com a instauração de um conflito ou embate, para depois fluir e fruir com a resolução, adaptação (adequação) ou perturbação da situação apresentada pelo roteiro. Transita-se aqui entre grandezas e mazelas, lixo e luxo, a proximidade e a distância, realidade e sonho, o poder divino e a fraqueza humana. Enfim, tratam-se de oposições que se complementam numa realidade que se vincula à existência, à dramaturgia da própria vida ou da coisa viva. Outro dado, diz respeito à paisagem que ambienta e circunda o espaço, independentemente da existência ou não de elementos cenográficos. Em todos os espetáculos, foi possível perceber uma paisagem que contextualizava a recepção e contribuía para a fruição a partir do roteiro do espetáculo. Todavia, o dado que aqui se relata, diz de uma paisagem menos materializada como cenário e mais sentida, percebida, apreendida a partir do contato com os espetáculos. Sendo assim, este ponto sobre a paisagem reforça dois aspectos percebidos nos onze espetáculos: i) há uma relação direta do espaço habitado com o corpo modelado pela personagem que é incorporada, como se o espaço/paisagem fosse uma ampliação do corpo, a impressão gerada é de que há uma unidade e integração entre corpo e espaço; ii) as personagem trazem com elas uma qualidade de transformação, do renascimento e da regeneração, como se elas ressurgissem do caos, dos escombros, de uma

encruzilhada de muitos sentidos e sensações, as paisagens de onde elas surgem corroboram com essas impressões, pois os ambientes instaurados são lugares questionadores, em constante modificação e viabilizadores de novas elaborações das coisas dadas — são terreiros onde algo está sempre sendo transformado.

O caminhar diz, também, de uma ação comum a todos os trabalhos analisados. Todavia, é preciso ampliar a noção e pensar no caminhar como uma dinamização que irrompe a espacialidade no tempo e vice e versa. As personagens apresentam em cena suas vidas, seus desejos, impulsos e forças, dançando suas histórias e suas sinas. Elas se deslocam e transformam a paisagem, são muitos os caminhos que elas desenham, materializam e percorrem, criando uma tempestade de sensações para que cada espectador conceba a imagem sugerida, à sua maneira. Tem-se a impressão de que as personagens surgem como andarilhas percorrendo, cada qual, as trajetórias dos seus destinos com mais ou menos peso, dor, amor, sonho e verdade. A certeza que elas deixam aqui, para esta análise, é de que os caminhos precisam ser trilhados. Há, ainda, a ação de buscar com seu caminhar um solo fértil, um lugar propício para plantarem as suas histórias, para firmarem os seus eixos. O caminhar, também, traz o sentido de que a personagem abre o espaço para a realização da sua dança de vida, enfim, para a concretização desse seu ritual de transformação, revelação, denúncia ou sagração.

Mas essas personagens carregam, também, uma força que é dual, ambivalente, com um quê de figuras míticas. Sendo a palavra mítica usada aqui não no sentido de “deusas”, mas sim, no sentido da sua força de autotransformação. Essas personagens, como um todo, carregam em seus corpos a força do animal e do humano, que se fundem através dos sentidos, das sensações, dos movimentos e das modelagens corporais liberadas pelo e no corpo do intérprete. Essa dualidade, às vezes negada, combatida ou simplesmente aceita, diz de uma organização que se dá em níveis mais profundos, num processo de elaboração dos conteúdos internos de cada intérprete. Há, portanto, uma liberação do lado animalesco e dos impulsos muitas vezes tolhidos e negados. A personagem traz à tona o monstruoso, o animalesco, o feio e funde tudo isso no corpo do intérprete, abrindo, assim, as portas para uma expressão que vem das vísceras, do inconsciente, mas, que acima de tudo e sempre, estava pronta para ser liberada.

Posto isso, faz-se importante ressaltar que alguns desses dados já foram definidos e estudados em diversas reflexões sobre o método BPI. A própria autora

deste Método já pontuou e indicou inúmeras vezes, sobre alguns desses dados, ao analisar e aprofundar seus estudos e pesquisas sobre o Processo BPI. Entretanto, essas similaridades nunca foram apontadas como especificidades estéticas imanentes ao Método. A presente investigação acredita que esses seriam alguns princípios iniciais e parte desses para prosseguir com esta análise.

A partir da Descrição dos onze espetáculos que compõem o corpus deste estudo, foi possível listar esses quatro pontos que dizem de suas similaridades. Todavia, realizarei, a seguir, uma nova escrita sobre cada um desses espetáculos, buscando analisar e entrecruzar as informações e impressões sobre seus processos de criação. Esses parecem contribuir para afirmar positivamente a hipótese desse estudo, ou seja, confirmam a suposição que concebe a existência de uma especificidade estética para o método BPI. Eis, portanto, o momento em que este estudo se encontra, lançando mão de alguns dados coletados para verificar a existência e a definição de uma especificidade estética que surja de dentro do Processo BPI.

Ação Analítica III:

Cruzamento, Interpretação e Análise dos dados

Nesta terceira e última ação de análise, busca-se aprofundar a descrição dos espetáculos com o intuito de entrecruzar e interpretar os dados coletados até então. O ato de descrever torna-se aqui uma atitude de desvelamento para alcançar outras camadas mais sutis de cada processo. Para tanto, junto à orientadora dessa investigação, fizemos sessões para assistir juntos aos vídeos dos espetáculos. O objetivo dessas sessões — Cine BPI — foi possibilitar que surgissem novos dados para fomentar essa verticalização da análise dos espetáculos. Dados esses que, inclusive, disseram muito sobre os processos de criação de cada espetáculo. A participação do Grupo BPI e Dança do Brasil, nessas sessões, foi de grande valor, pois trouxe a oportunidade de coletar relatos das próprias bailarinas-pesquisadoras- intérpretes de seis espetáculos. Além, é claro, de poder participar e fomentar um levantamento sobre a própria história de desenvolvimento do método BPI.

A descrição, portanto, seguiu como tônica dessa análise e revelou-se como uma ferramenta minuciosa para a análise. A preocupação não está mais atrelada a

descrição do roteiro, mas às assimilações e compreensões que levaram à sua elaboração durante o processo criativo. Houve o intento de, analiticamente, apresentar as ações cênicas e suas relações com a dramaturgia provinda das personagens incorporadas em cada espetáculo. Assim, a análise dos espetáculos que aqui se faz é, também, uma apreciação da vida e da trajetória de cada personagem dentro do contexto apresentado pelo roteiro. Uma vez que, segundo Rodrigues (2003) e Turtelli (2009), a dramaturgia do espetáculo no método BPI traz o fator vivo e é a própria vida, ou seja, aquilo que é a existência da personagem que se incorpora a partir do Processo BPI.

Por fim, na tentativa de compilar e exemplificar os dados coletados, apresenta-se aqui uma possibilidade de categorização e interpretação dos conteúdos analisados. Essa organização não se fecha em si mesma, muito menos, reduz ou quer esgotar as possibilidades de leituras e interpretações sobre o método BPI. Trata-se, no entanto, de uma das possibilidades, ou melhor, aquela que se optou ou, por ora, se conseguiu alcançar. No que diz respeito à linguagem de movimentos e à coreografia, alguns elementos e aspectos foram pontuados aqui, mas seria necessário focar única e exclusivamente neste contexto para uma apurada análise e reflexão sobre esse tema.