• Nenhum resultado encontrado

Guarda de Moçambique do Arturos saindo pela porteira da Comunidade em direção a Igreja do Rosário já no fim do dia Festa do Rosário de 2012.

Experiência com o Processo BPI: o eixo Co-habitar com a Fonte

Foto 2 Guarda de Moçambique do Arturos saindo pela porteira da Comunidade em direção a Igreja do Rosário já no fim do dia Festa do Rosário de 2012.

Não consegui perceber como, mas vi que cada guarda recebia indicações do trajeto que deveria ser feito dentro da Comunidade dos Arturos. O que pude perceber é que os capitães das guardas da Comunidade se dividiram e cada um acompanhava um dos grupos visitantes. Os trajetos eram os mais variados, eles passavam pelos mastros hasteados, pelos três Cruzeiros da comunidade e entravam na Capela, onde se demoravam um pouco mais. Ao todo, naquele ano de 2012, vinte e três guardas visitaram a Festa do Rosário. Depois de passarem pelo trajeto indicado, algumas das guardas começavam a pagar suas devidas promessas enquanto outras eram encaminhadas para o almoço servido no refeitório da Casa

Paterna. Para o almoço um esquema muito delicado e cuidadoso é estabelecido, como o espaço era limitado seria necessário que cada guarda fosse fazer a refeição por vez. No fim todos os visitantes e Arturos foram alimentados, esse processo durou mais ou menos três horas. As guardas, ao fim do almoço oferecido pela Comunidade dos Arturos, fazem um lindo canto em agradecimento, pedindo benção para as cozinheiras que cumprem a sua função na Festa do Rosário cozinhando para a multidão de devotos, congadeiros ou não. O almoço foi algo que me proporcionou uma experiência muito singular em meu processo, lidar com a minha própria sensação de fome durante o dia de giro com o Congado e a Festa do Rosário me forçou a buscar uma autorreflexão sobre minhas ações e vontades.

Não houve após o almoço nenhuma pausa e por volta de umas cinco horas da tarde começou uma nova organização do cortejo de retorno para a igreja. De certa forma, trata-se de um retorno das guardas para seus locais de origem. Ainda durante a tarde algumas guardas cumpriram suas obrigações e foram embora, talvez pela distância e/ou condições de transportes. Soube com isso que muitas vezes os ônibus são arranjados numa espécie de permuta ou favor, sendo assim, em alguns casos o tempo para estar na Festa é bem restrito. Entretanto, o mais importante é cumprir com a obrigação, ou seja, com a devoção e tradição passada de geração em geração e com a promessa que deve ser mantida. O retorno à Igreja é também a finalização do dia, os Arturos foram receber e também vão se despedir com gratidão das guardas que vieram fazer a Festa do Rosário acontecer. Ao chegarem à frente da Igreja uma apoteose acontece, fogos de artifícios, sinos badalando, o som das músicas cantadas é ampliado em caixas de som no alto da torre e as guardas são recebidas para a celebração de mais uma missa. Os corpos cansados, mas atentos, recebem a benção e seguem para suas casas.

A Festa do Rosário nos Arturos, entretanto, ainda não terminou. Na segunda- feira uma nova missa é rezada, agora na Capela da Comunidade, e ao fim do dia todos os Mastros são arriados. O arriamento dos Mastros votivos acontece com a mesma devoção e respeito do dia do seu hasteamento. Tudo isso porque o símbolo do elo entre céu e terra, do divino com o humano, não deixa de existir. Tanto o pau do mastro quanto os estandartes são cuidadosamente retirados e guardados em locais especiais preparados para isso. A festa se encerra na Capelinha do Arturos com muitas preces e vivas emocionados com o peso e valor de terem cumprido sua devotada obrigação de filhos de Nossa Senhora. O corpo está materialmente

cansado, mas o espírito completamente renovado. Ouve-se ao fim, assim como durante todo o festejo, muitas e muitas vezes a saudação “Salve Maria!” que é sempre respondida em alto coro firme e forte “Salve!”.

Festa de Encerramento do Congado (Reinado de Nossa Senhora do Rosário) – 08 de dezembro de 2012

Deste Festejo participei inusitadamente, estava indo à Comunidade para ver a Festa do João do Mato, mas fui surpreendido com o momento em que eles celebravam o encerramento do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Esta ida a campo também foi muito especial para o estreitamento da minha relação com os Arturos, pois fui recebido pelo senhor Antônio Maria da Silva, um dos filhos do casal Arthur e Carmelinda, em sua casa. Desde então, é com ele que estabeleço os contatos prévios para as visitas e é também na casa dele que me hospedo durante a estadia em campo. O senhor Antônio tem 79 anos de idade e é o Capitão Regente da Comunidade dos Arturos. Nada é feito na Comunidade sem o conhecimento, aconselhamento e aprovação dele, todavia, hoje existe um grupo que discute junto com ele sobre as necessidades e encaminhamentos do coletivo. Outro detalhe diz respeito à localização da casa do Sr. Antônio, bem como à sua atual situação de saúde: por decorrência de complicações, ele não anda mais e passa o dia sentado na frente de sua casa que está sempre de portas e janelas abertas para todos que chegam. Desta forma, uma dinâmica peculiar acontece ali, os sobrinhos e netos que passam na rua sempre lhe tomam a benção, sem parar ou entrar na casa dele. O mais interessante é que, por vezes, o grito pedindo “benção tio Antônio?” é quase inaudível, mas ele lá de dentro ergue o pescoço e responde, olhando pela janela, “Deus abençoe Fulano!”. Como naquele dia eu havia chegado bem cedo, fiquei conversando com ele durante o dia todo, escutando histórias e mais histórias. Ele tem muito a falar, muito a ensinar e por vezes reclamava da falta de companhia e de visitas dos sobrinhos e netos.

Por outro lado, a casa do Sr. Antônio está cercada pela casa dos seus filhos e, por consequência, de seus netos. Esta é a organização que prevalece na Comunidade dos Arturos, cada um dos nove filhos do casal progenitor da comunidade recebeu um pedaço da terra e, assim, foi dando continuidade a promessa do patriarca Arthur: manter a família unida nas terras herdadas. Os filhos

do Sr. Antônio estão sempre atentos ao pai, as filhas estabeleceram um esquema que vai desde a alimentação à limpeza e aos demais cuidados com a casa. Os filhos também cumprem todo um rito de visitas, banho, levar ao médico, comprar medicamentos e mantimentos. Estas funções e cuidados se estendem aos genros e noras, que atentamente vieram algumas vezes, durante o dia da minha primeira estadia na casa dele, conferir se tudo estava bem.

Foto 3 — Altar da Capela da Comunidade dos Arturos, contendo as imagens dos santos de devoção, as bandeiras do Congo e do Moçambique e as coroas dos reis e rainhas do Reinado de Nossa Senhora do Rosário.

Uma grande empatia foi se estabelecendo entre o Sr. Antônio e eu, nossas conversas seguem pelo dia a perder de vista. Este foi se tornando um momento de grande afetividade que se estabeleceu passo a passo, com muito cuidado e respeito de ambas as partes. O sr. Antônio ia me contanto histórias de sua vida, tanto sobre a comunidade quanto sobre suas andanças como vaqueiro e carreador de boi. Uma sensação leve e muito agradável ia se estabelecendo. Eu tinha a sensação de estar escutando meu avô me contar histórias. Vez ou outra chegava uma pessoa de fora para ter conversas mais sérias e particulares, momento em que eu me retirava e ia conhecer e conversar com outras pessoas da comunidade.

O senhor Antônio me explicou sobre a Festa de Encerramento do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, me contou que era uma maneira respeitosa de fechar as batidas dos tambores do congado para tocar as Folias de Reis e de São Sebastião. Os Arturos tocam congado de abril a dezembro, e para iniciar o intervalo aproveitam para avaliar o ano e para agradecer. Sendo assim, no ritual de encerramento tocam o Congo, o Moçambique e o Candombe. O Encerramento do Congado, no ano de 2012, começou com um giro do Congo que havia sido convidado para tocar numa Feira de Artesanatos que acontecia na Expominas – Belo Horizonte. Pude acompanhá-los nesta apresentação, assim como foi um momento em que pude me aproximar de outros Arturos. Também conversei bastante com o Sr. Jorge, genro do Sr. Antônio e que tem uma função mais administrativa e de gestor cultural dentro da Comunidade. Por outro lado, foi muito curioso perceber o efeito da música do Congo dos Arturos sobre as pessoas que estavam na feira, algumas não conheciam aquela música e muitas pessoas sabiam se tratar dos Arturos. A música ecoava pelo espaço e, como estava em um local público, tomei a liberdade de fazer algumas fotos da guarda.

De volta com o Congo para a comunidade, o rito de Encerramento já iria começar, este foi o combinado dentro do ônibus. Sendo assim, a guarda desceu e foi começando a cantoria girando pela comunidade, como que convidando os Arturos para o rito na Capela. Dentro da Capelinha, primeiro cantou o Congo, depois o Moçambique e por fim o Candombe. Os dois primeiros ao fim dos seus cantos e danças deixavam suas bandeiras e seus instrumentos no pé do altar. Para o Candombe, buscaram os três tambores sagrados que ficam guardados embaixo do altar e a cantoria que vi realmente possuía uma qualidade única, indescritível. Esta foi a primeira vez que vi e ouvi o Candombe sendo cantado ao vivo. A força que pude perceber neste rito como um todo era plena da sensação de dever cumprido, mas sem conforto ou comodismo, ela trazia o sentido e a necessidade de poder fazer cada vez melhor. A emoção daqueles corpos reunidos em sua Capelinha simples, mas carregados de uma força ancestral, irrompe da realidade cotidiana e o humano se torna divino. Não existe luxo, entretanto a força do afeto e da unidade em prol daquela tradição se sobrepunha a tudo e a todos. A felicidade pela obrigação cumprida durante aquele ano marcava cada rosto daqueles que ali estavam e carinhosamente se abraçavam, denotando relações humanas sinceras e com grande noção de coletividade. Neste ritual, de natureza mais interna, a maioria

dos visitantes são amigos próximos, para não dizer familiares, e termina com um café coletivo na casa paterna, ao lado da Capelinha. Todos naquele ano foram convidados para o festejo do dia seguinte, o João do Mato, que começaria bem cedo.

Festa do João do Mato – 09 de dezembro de 2012:

Esta é uma festividade de natureza agrária diretamente ligada ao cuidado com a terra, com a plantação e a colheita. No ano de 2012 houve uma enorme comoção e empenho, pois há mais de dez anos a Festa do João do Mato não era realizada na Comunidade do Arturos. Antigamente esta festa estava ligada à limpeza das plantações que havia nas terras da comunidade, ela sempre acontecia antes das chuvas de verão e um grande mutirão era organizado para que, com o espirito de solidariedade, juntos pudessem manter as pragas e ervas daninhas fora das plantações. Para tanto, uma figura fantástica faz parte do rito: o João do Mato. Ele simboliza uma espécie de praga ou peste que se apossa das plantações, que ficam sujas e cheias de mato até o dia 23 de dezembro. Sendo assim, o dono de uma plantação ou de uma roça que não limpasse seu terreno plantado até esta data perderia tudo o que plantou para o João do Mato.

O rito é mais profano, com uma ludicidade incrível. Todos brincam, cantam, fazem chacotas uns dos outros enquanto seguem carpindo e limpando a roça plantada. Hoje na Comunidade dos Arturos não existe plantação coletiva, os tempos mudaram, as pessoas trabalham fora e o tempo para cuidar da terra se tornou cada vez mais escasso. Apesar disso, a obrigação com os ritos tradicionais da comunidade é levada muito a sério. Soube, inclusive, que as pessoas mais envolvidas com os festejos dos Arturos já têm acordado com seus empregadores certas datas durante o ano nas quais precisam se ausentar do trabalho para realizar as festas.

Como dito anteriormente, a Festa do João do Mato há muito não era feita, mas no ano de 2012 eles decidiram retomar o festejo e o foco da ação estaria na limpeza de uma grande área verde, uma espécie de pequena reserva ambiental dentro das terras dos Arturos. Esta área é muito usada como pasto para algumas cabeças de gado de pessoas da comunidade ou é alugada como maneira de tirarem alguma renda coletiva. Acontece que este pasto precisava ser roçado, para a própria

segurança da comunidade. A grande porção de terra herdada por Arthur Camilo, hoje está mais para um tipo de chácara urbana do que uma fazenda, pois a cidade de Contagem cresceu muito e os Arturos estão localizados no meio de um de seus bairros. Desta forma, considerando o fator segurança, naquele ano houve um pedido para que a área fosse limpa. Assim, surgiu uma grande oportunidade de retomar a festa do João do Mato.

Foto 4 — Mutirão realizado por ocasião da Festa do João do Mato de 2012, quando fizeram a limpeza do pasto da Comunidade dos Arturos.

A ação começaria bem cedo naquele domingo, dia nove de dezembro. Antes da capina, a comunidade receberia a visita da prefeita de Contagem que estava terminando o mandato naquele ano. Findado esse momento, seguiram todos para o pasto, o João do Mato iria começar. Um grupo de homens seguia na frente levando foices, enxadas, facões e instrumentos para afiar e melhorar o corte das ferramentas. Atrás deles um grupo de crianças, munidas de chapéus e botas, com pequenas ferramentas e sorriso no rosto. Os homens iam carpindo e cantando músicas que, como indicam Gomes e Pereira (1988, p. 244), “são quadras populares que revivem os temas do amor, as artimanhas do namoro, a saudade marcando a perda, os quadros da vida rural”. Há também, segundo esses autores, os cantos de

devoção a Nossa Senhora do Rosário que surgem, justamente, nos momentos em que as lembranças e a resistência vêm com mais força nos corpos dos trabalhadores. Nessa cantoria uma pessoa puxava um verso, outros dois respondiam e todo mundo terminava a cantoria junto. As mulheres ficaram na cozinha preparando o famoso almoço do João do Mato, um angu feito à moda mineira com frango. Também um grupo menor de mulheres e alguns jovens carregava biscoitos assados, café, água e cachaça, logo atrás. Já no pasto, eles se separaram em grupos menores e se dividiram pelo espaço. O objetivo era roçar todo o pasto, que não era tão pequeno assim.

Rapidamente os pequenos grupos haviam se espalhado. Tinha gente roçando por todos os lados que eu olhava. No meio disso tudo, começa a cantoria, o som vem de todos os lados, um chama e os outros respondem. Também tem o lado da brincadeira, são piadas, implicâncias com o chapéu de um, com a enxada do outro. Tudo termina em risadas. Parece um grupo de crianças, é tudo muito leve, alegre, que ao mesmo tempo acalanta um trabalho duro. O sol ia esquentando cada vez mais, o terreno é íngreme, tinha uma parte em que o mato estava realmente bem alto. Afora algum bicho peçonhento que poderia aparecer e as muitas caixas de marimbondos escondidas, estas acabavam rendendo uma correria desenfreada no meio do pasto. Os filhos e netos também queriam participar, principalmente as crianças menores, daí pude acompanhar belos momentos nos quais os pais ensinavam a pegar na foice e afiar o corte, assim os pequenos eram guiados através da brincadeira do João do Mato.

Vez ou outra surgia uma brincadeira que comovia a todos, ora a correria do outro grupo por causa de marimbondos, ora uma pessoa que chega com a roupa rasgada e dizia ter apanhado de um coelho, e outras tantas. Pausa para um café embaixo do pequizeiro, conversas sobre as lembranças dos antepassados, sobre as árvores que foram plantadas ali. A pausa é rápida, pois ainda tem muito pasto para roçar. Segui com os homens mato adentro, eles não me ofereceram nenhum instrumento para ajudar, pensando bem, eu também não pedi. Mas foi curioso que mesmo seguindo atrás deles eu ia me sentindo dentro do grupo, escutando suas histórias e piadas, vez ou outra buscando uma água ou servindo uma cachaça.

Foto 5 — Chegada do grupo que estava limpando o pasto na frente da Casa Paterna.