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Análise dos Espetáculos do Método BPI: 1990 –

DIANTE DOS OLHOS:

Pesquisa de campo: Realizada em 25 Terreiros de Umbanda da região de Campinas – SP

Com uma polifonia de sons dá-se o início do espetáculo. No escuro, os sons que lembram o centro de uma cidade grande criam uma profusão de imagens abrindo e ampliando os sentidos e as sensações do espectador. O espaço cênico vai se revelando e de início causa um enorme estranhamento, pois o palco é cercado por uma tela de arame trazendo a impressão de algo que está separado, apartado, distante da realidade social, como uma jaula, uma gaiola, um galinheiro que, ao mesmo tempo, guarda, protege, segura, domina cerceando um mundo do outro. Dentro deste espaço cercado está a personagem Maria das Dores, enquanto do lado de fora está Janaína. Com este quadro ou situação a questão apresentada no programa do espetáculo vai sendo sublinhada: “Diante dos Olhos é tudo aquilo que vemos e não ousamos tocar. Repudiamos a realidade nua e crua da miséria que nos assalta”.

Dentro do espaço cercado a personagem Maria das Dores forra o chão com jornais e ela tem pressa, tem certa urgência em sua ação, seus movimentos são diretos e fortes. No meio do espaço forrado de jornal há um símbolo pichado com tinta vermelha indicando que algo por ali é proibido. Do lado de fora, contornando todo o cercado, Janaína vai caminhando e se desvencilhando dos obstáculos e do espaço estreito numa dinâmica mais fragilizada e imprecisa. Em determinado momento, ela olha através da tela de arame, algo lhe chama a atenção, seu olhar é amedrontado e ela parece querer muito sair dali. Dentro do cercado, Maria das Dores se movimenta com grande intensidade afastando algo que está no ar e os jornais que estavam no chão.

Janaína avança em sua caminhada até o público e se revela uma vendedora ambulante tentando vender suas flores de lata. Ela grita a plenos pulmões oferecendo seu produto, ao mesmo tempo em que comenta, sussurrando para si — para dentro — algo sobre si mesma. De dentro do cercado, a outra personagem parece ouvir o barulho da feira e escutar a voz de Janaína que ecoa pelo espaço. O som da feira, um camelódromo, se amplia. Maria das Dores faz todo o percurso como se estivesse perseguindo ou sendo puxada pelo som até chegar à feira. Ela abandona o espaço cercado que passa, também, a ganhar o sentido de esconderijo. As duas personagens ocupam o espaço público — do público — enquanto Janaína tenta vender suas flores, Maria das Dores pede dinheiro sem ter nada para dar ou vender. O som de feira, ou ainda, de centro de cidade, aumenta e as duas personagens que não se relacionaram diretamente vão parar dentro do cercado. Elas parecem ter sido dragadas pelo espaço. Janaína está assustada, pois, não reconhece aquele lugar. Já Maria das Dores, parece contemplar aquele que é, ou se parece com o seu habitat. Janaína se desloca como quem quer encontrar uma maneira de sair dali. Maria das Dores, colaborando com o medo da outra, reage bruscamente a cada movimento de Janaína fazendo, assim, com que ela fique mais acuada e amedrontada. A atitude de Maria das Dores, entretanto, não deixa transparecer se ela está ou não incomodada com a presença da outra.

Neste embate, elas acabam por se aproximarem como as partes opostas de um imã. Janaína assustada, então, oferece à Maria das Dores uma de suas flores de lata e o que era uma atitude hostil se transforma num reconhecimento diante de uma situação estranha. Maria das Dores brinca e corre pelo espaço com a flor de lata,

sua atitude dura e bruta dá lugar a uma leveza pueril, talvez porque ninguém nunca deve ter lhe dado nada na vida.

A aproximação vai se transformando em cumplicidade diante do inexplicável e da liberdade, a priori, cerceada. Janaína tira da sua bolsa um rádio à pilha, coloca uma música e dança com suas flores. Maria das Dores se junta à companheira e dança com sua capa. Os movimentos das duas se complementam e possuem intensidades contrárias, mas ambas parecem ter o mesmo objetivo de se mostrar para alguém. Elas dão a impressão de que dançam para uma plateia que as observa através de uma vitrine. Algo que se aproxima das exibições de bizarrices em feiras, pois elas estão cercadas, enjauladas, apartadas de tudo e todos. Alguma coisa parece oprimir fortemente as duas, elas são perseguidas e encurraladas. Em determinado momento, elas parecem ser espancadas e a violência aumenta ostensivamente, enquanto um som muito alto de sirenes ecoa pela paisagem instaurada.

O espaço se transforma por dentro, os jornais fazem um monte, como uma pilha de lixo, num dos cantos no fundo do espaço cercado. Elas se apoiam uma na outra para se levantar e se locomover pelo lugar. O espaço cercado, agora, oprime ainda mais. Alguma coisa mudou e o que era protegido e protetor perdeu esse aspecto, o espaço ficou mais vulnerável e elas ficaram mais expostas. Entretanto, cada vez mais, as duas personagens se complementam em suas forças e dinâmicas. O olhar dos outros, daqueles que estão do lado de fora, parece ir ficando mais opressor e distante, como se fosse deixando de enxergar a vida das personagens. O olhar alheio vai tirando a dignidade e com isso a humanidade daquelas figuras que estão excluídas da sociedade. Mas elas percebem que para sobreviverem precisarão juntar suas forças, elas se irmanam e buscam lutar contra a tentativa de fazê-las desaparecerem. Elas não serão esquecidas.

O fogo surge como uma necessidade de transformação, de aquecerem seus corpos. Ao se aproximarem do fogo, seus corpos se nutrem de mais vida, de força para seguirem. O fogo vai iluminando cada canto daquele lugar trazendo pulsão de vida para elas se renovarem, reacendendo nelas a vontade de viver, reavivando a fagulha de vida que ainda existia nelas. Soltando, assim, as amarras que sucumbem e escondem o corpo. O espaço se refaz, o corpo se refaz, os sentidos são reorganizados e a vida se transforma. Cada personagem traz à tona suas imagens

para fortalecer toda àquela paisagem. Elas se unem em prol de suas sobrevivências, para resistirem juntas a opressão e ao abandono.

As imagens construídas denotam a polarização que as duas personagens estabelecem entre elas. Elas não são contrárias no sentido de negação, mas sim complementares. Surgem figuras metamorfoseadas e paradoxais, como a imagem de uma Iansã molhada em Janaína, ou então, uma Iemanjá ventada em Maria das Dores. Com essas duas figuras corporificadas as personagens dão passagem a um momento mais fluido e menos bombardeado de sons e imagens violentas. Como se, ao se unirem, ao se irmanarem, aspectos das identidades das personagens se misturaram, como um meio ou artifício para que elas se mantivessem vivas, ou ainda, um modo de resistirem. Agora elas passam a compartilhar as suas existências, elas selam este grande feito partilhando o pouco alimento que ainda lhes resta. Numa última tentativa, Janaína vai uma vez mais até o público e lhes oferece o mesmo fruto, como se estivesse buscando novos olhares, novos afetos e novos sentidos.

As personagens partilham o alimento e se elevam. Ao comerem o fruto, Janaína e Maria das Dores voam, voam bem alto e para longe, se libertam de todo o sofrimento e rancor, se transformam e se transmutam. Teriam morrido? Teriam se iluminado? Teriam se salvado? Para onde foram? Quem são elas e onde estarão agora? Transformaram a dor, elaboraram o abandono e se elevaram à aquilo que ainda restava de sentido em suas vidas.

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VIANDEIRAS:

Pesquisa de campo: Corte de Cana em Assis – SP

É ainda madrugada, mas a lida dos que trabalham com o corte de cana já começou. O canavial é muito grande e os trabalhadores se perdem dentro dele, faz parte do oficio deles. Num canto, uma mulher, Madalena, se prepara para sua lida, ela pede proteção e faz suas preces invocando seus santos protetores. Um grande fogo é aceso e a mulher dança como se estivesse investida de uma força: metade Iansã e metade Ogum. Ela dança girando a sua saia pelo espaço abrindo o trabalho árduo e pesado daquele dia. Ela empunha um foião (facão utilizado no corte da

cana) e traz em seus movimentos as matrizes dinâmicas desses dois orixás, empurrando o ar e abrindo os espaços.

Essa figura mítica parece abrir os caminhos e receber os trabalhadores para a lida daquele dia. Serena, a outra personagem, toma seu lugar no canavial. Ela vai entrando por entre as canas, abrindo o espaço com o corpo. Seus primeiros movimentos de chegada são acompanhados pelo som da Usina que vai processando, amassando, espremendo a cana e descartando seu bagaço. É preciso, antes de mais nada, afiar o corte dos foiões, afia-se a ferramenta e o próprio corpo para que juntos possam executar o trabalho árduo, mas necessário. Madalena e Serena seguem juntas, lado a lado, cada uma no seu espaço dentro do canavial. Elas cortam a cana com movimentos precisos. Seus movimentos juntam corpo e foião, até que o próprio corpo passa a cortar a cana. A dureza da lida transforma o corpo na sua própria ferramenta. O corpo segue preciso cortando cana pelo canavial a dentro. O tempo se dilata e o corpo vai cortando sem fim o espaço e o tempo até se perder no meio daquele espaço cana. Por fim, o corpo já é a própria cana — plantada, cultivada, ceifada e processada.

Por vezes, o corpo cessa para buscar um pouco mais de fôlego, de ar. O corpo faz uma pausa para poder se lembrar, ainda que por um segundo, que é gente e não cana. Olha para o lado e reconhece sua condição humana ao ver a outra companheira. São corpos talhados na dureza e na crueza da realidade vivida. Eles são corpos vincados, marcados e sulcados pelo esforço físico e pelo sol. Mas o tempo para a pausa é curto e as comadres, Madalena e Serena, precisam voltar para a labuta. Elas se paramentam novamente, escondendo e protegendo seus corpos, abraçam o canavial e retomam o corte.

Os movimentos de Madalena e Serena se misturam com a cana. Elas parecem abandonar a cada golpe tudo aquilo que as oprime. Nos caminhos que cada uma vai traçando pelo canavial, vez ou outra, elas se encontram e dividem o corte e/ou o monte de cana. Elas trabalham juntas, são parceiras na lida, tanto com a cana, como com a vida. O dia passa, a fome chega e amarga a boca. A comida é pouca, é mínima, mas ainda assim pode ser compartilhada. Elas comem juntas a marmita de Serena. Talvez seja um acordo e, diante da realidade difícil, cada uma compartilha a comida de cada dia. E mesmo a fome sendo muita, a amizade fala mais alto.

O dia escurece, mas não é noite ainda é só nuvem pesada que vai despencar. O tempo muda e cai uma chuva para aliviar o cansaço de até então. Os corpos se deixam lavar e a chuva cai como bálsamo para o corpo desgastado. O frescor alivia o peso, traz um brilho novo, traz a festa e os corpos se deixam dançar, aliviam a sisudez do trabalho pesado. As duas mulheres liberam seus movimentos e sonhos. Os corpos brincam como crianças que dançam na chuva. Os desejos mais ocultos parecem vir à tona. A água da chuva vai desfazendo as couraças, liberando as cascas e vai lavando tudo aquilo que endurecia os corpos. Elas bailam trazendo o festejo pelo dever cumprido e se entregam a uma dança sutil, sensível e verdadeira.

Madalena traz uma lança toda adornada com retalhos. Ela dança dando vida à lança que guia e direciona seus movimentos, seu caminhar, sua vida. Serena também dança com a lança, mas sua dança é mais curta, dando a impressão de que isso a faz sair do momento de descontração. É como se a lança a conectasse novamente com o trabalho. A chuva cessou, o tempo firmou, é hora de voltar para o corte da cana. Serena se paramenta, enquanto sua comadre, já paramentada para retomar a lida desabafa: “Terra vermelha, terra melada e grudenta de sangue e de suor. Terra que a gente planta nosso sonho, que a gente planta nossa fé. Aí vai lá e corta tudo que plantou, só num corta o que tem raiz dentro da gente”.

As duas vão voltando para o canavial. No fundo a projeção de um caminho que, de tão grande, parece não ter fim.

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