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Parte I O Poder 1 Porto de abertura:

4. Coragem e medo:

A nova condição imposta pelo avanço de uma lógica produtiva estranha àquela da velha fazenda do interior do Brasil promove um importante ajustamento nas relações de poder. Como já foi dito, este novo arranjo mina as bases da relação de dependência e do princípio da dominação pessoal: em outras palavras, ele tanto abre os poros da fazenda econômico e politicamente – ferindo o poder autárquico do fazendeiro –, como coage a classe de homens livres despossuídos a figurarem como uma espécie de mão-de-obra para o exercício da violência. Esta mesma violência, por sinal, emerge como praticamente o único elemento de revolta possível ante a completa desagregação do mundo que o sertanejo conhecia. Explica Maria Sylvia Franco (cf. FRANCO, 1997, p.111) que, num universo permeado pelo princípio da dominação pessoal, no contexto da crescente dispensabilidade dos homens livres para a produção mercantil, o compromisso entre fazendeiros e dependentes era facilmente rompido pela parte dominante no mesmo momento em que tais compromissos iam de encontro aos interesses do proprietário. Neste sentido, o resíduo da ideologia que pregava a igualdade entre as partes ligadas por um pacto de lealdade e favores recíprocos fazia com que se tornasse extremamente difícil que estes conflitos assumissem proporções políticas mais amplas. Dito de outra forma, do mesmo modo que o proprietário afirmava sua superioridade de maneira completamente pessoal, com um pacto entre iguais (na relação de compadrio, por exemplo), também a quebra destes laços de lealdade – que tendencialmente ruíam para o lado de seu elo mais fraco – eram também entendidos como desavenças pessoais. Deste modo, como conseqüência imediata deste processo, aponta Franco:

Neste ponto, reaparece o sujeito de um mundo tosco, onde as relações entre homens e coisas são parcas e onde a pessoa emerge como o ponto de referência fundamental para pensar e agir: nesse mundo, o movimento reflexivo sobre si e o movimento em direção ao semelhante condicionaram a consciência que esse sujeito podia ter do mundo em que viveu e definiram os meios e os limites da transcendência possível, para ele, das situações adversas que experimentou. A mudança intentada circunscrevia-se à imediatez do movimento vivido e se realizava através dos predicados pessoais e da capacidade de organizá-los agressivamente:

a coragem e a violência reaparecem, com seu significado pleno, na vida do caipira (FRANCO, 1997, p.113, grifo meu).

É neste contexto de desestabilização das relações tradicionais que a violência e a valentia, partes constitutivas do tecido cultural sertanejo, despontam como elementos residuais num arranjo de relações diverso, quase como um lampejo da consciência do acuamento que a larga camada de homens dependentes sofria. A violência enquanto reação não-mediada surge, portanto, neste contexto, como componente restante de um pálido princípio de cordialidade, o qual já havia perdido em grande parte seu conteúdo e subsistia reproduzindo uma forma à qual já faltava seu lastro material. Em outras palavras, se antes o vínculo que unia proprietário e dependente era precisamente a lealdade entre sujeitos feitos iguais através de laços de dependência mútua, o processo de modernização gradativamente a empurra ao limite desta relação, forçando o rompimento deste laço.

A violência sertaneja aparece, então, precisamente como a irrupção da diferença em um contexto tradicionalmente marcado pelo tensionamento da indiferença através de uma rede de reciprocidades. Em termos de nexos de poder, ela pode ser considerada a dissolução de um vínculo cordial bastante específico do sertão – no qual as relações são trazidas para ‘perto do coração’ quando se aplainam as diferenças sob as vestes de uma necessária igualdade – em benefício do recrudescimento daquele que talvez seja o modelo clássico de dominação cordial, muito bem caracterizado no comentário de Roberto Schwarz sobre a poesia de Francisco Alvim:

Depois de uma vida de serviços prestados, o faz-tudo continua em dívida, ao passo que seu protetor não lhe deve nada e muito menos sente

obrigação ou humilhação. É uma versão de nosso ‘double bind’ entre dependentes e proprietários, onde a dívida dos primeiros é da ordem da obrigação pessoal e infinita, e não do dinheiro, ao passo que a dos segundos é da ordem da conveniência e do cálculo, já que estes últimos circulam em dois mundos e podem ir e vir, à escolha, entre os papéis de fiel protetor e de indivíduo desobrigado e objetivo (SCHWARZ, 2002, p.9).

Assim, como se disse, a irrupção da violência pessoal do sertanejo dependente pode ser considerada um feixe de luz sobre os deslocamentos que têm lugar no princípio de cordialidade; por sua vez, a cooptação da mão de obra sertaneja enquanto ‘bate-paus’ violentos funciona como uma espécie de estabilização do segundo princípio de cordialidade, que mais se aproxima dos modelo clássico cristalizado pela teoria de Gilberto Freyre: mais do que isto, trata-se propriamente da ressignificação da coragem e da lealdade do dependente, menos funcionando como força adstringente de relações recíprocas e mais como peça articulatória do poder cordial. Em outras palavras, a consolidação da cordialidade como o ‘double bind’ entre dependentes e proprietários inclina a lealdade à configuração enquanto referência necessária para que o vínculo entre desiguais seja aproximado ou afastado ao sabor do interesse do proprietário, que tem, neste momento, em suas mãos os meios para instrumentalizar a violência.

Neste sentido, é interessante notar o comentário de Walnice Nogueira Galvão acerca do episódio em que a noção de coragem ganha maior relevo em Grande sertão: veredas. Sobre a cena em que os jovens Riobaldo e Diadorim empreendem a travessia do rio de- Janeiro, a crítica diz:

A experiência da coragem, que é o fundamental no episódio, gera em Riobaldo um sentimento de submissão e dependência para com o Menino. Vê-se como é, membro da plebe rural, pobre e sem pai, mal vestido, tirando esmola para pagar promessa, agregado dos outros: o Menino não é agregado de ninguém, é de família proprietária e filho do ‘homem mais valente deste mundo’, em suas próprias palavras (GALVÃO, 1986, p.94).

Como se verá mais à frente, a idéia de coragem, no romance, ganhará outros sentidos para além deste reivindicado pela crítica. Mas, neste ponto da análise, é fundamental assinalar o nexo reclamado pela autora entre coragem e dependência. É curioso que o atributo característico do dependente seja reconhecido como qualidade daquele que é um proprietário soberano. Há, à primeira vista, nesta identificação imediata entre coragem e

independência, uma ligeira miopia, uma vez que ela não se aplica a todos os proprietários

do romance, como é o caso de Selorico Mendes, além de não pertencer à gama de atributos historicamente vinculados à classe proprietária. Mas, em uma análise mais cuidadosa, sabendo-se que o pai do Menino é Joca Ramiro, é possível perceber que a reflexão de Galvão guarda uma profícua intuição acerca do mito na obra: a coragem não é propriamente atributo de qualquer proprietário, mas do proprietário mitificado.

Neste ponto, a já comentada vergonha, que surge em ambos Riobaldo e Diadorim no episódio da travessia, pode servir como a marca de contraste necessária para que se compreenda a função das noções de coragem e medo na gestação do mito em Grande

sertão. Com efeito, a vergonha das duas personagens tem uma raiz comum: o

constrangimento gerado no antigo princípio cordial de cessão de terras e a subseqüente fratura do núcleo ético que organizava as relações entre agregados e fazendeiros. Deste modo, a coragem escapa como resíduo da reversão operada no princípio de cordialidade: transformada em vínculo de obrigação e não mais de reciprocidade, ela se torna signo de um outro tipo de dependência, este muito mais moderno que o primeiro. Este novo nexo cordial se caracterizaria pelo rebaixamento do jagunço enquanto sujeito e pela instrumentalização de sua violência, agora disponível para venda como mão-de-obra; do lado do proprietário, mais livre para avançar e recuar na relação com seus dependentes de acordo com seus interesses econômicos, mas ao mesmo tempo tolhido de sua auto- suficiência e acossado por novas forças públicas, resta o medo como qualidade daquele que passa a sentença mas não movimenta a espada. Talvez por isto, o mecanismo mitificante de

Grande sertão: veredas faça oscilar os atributos coragem e medo em torno das diversas

figuras dos proprietários: a distinção e distribuição destes atributos entre as personagens da trama estaria, assim, intimamente ligada à maneira como funciona o mito no romance.

Através deste prisma no qual as forças históricas, mobilizadas em parte na construção de Grande sertão: veredas, colocam-se em movimento, é possível entrever um significado interessante à revolta de Riobaldo que, quando sabe das insinuações que se lhe são feitas a respeito de sua possível ligação filial com Selorico Mendes, foge com raiva e afirma sua linhagem materna: “Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso, gritei. Mas

aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve sendo maior” (GS:V, p.140, grifo

meu). A notícia de que Selorico poderia ser seu pai representa, para Riobaldo, não apenas uma ligação congênita com aquele patriarcalismo transformado que ele identificara; tratava-se de lançar luz sobre seu escuro nascimento e descobrir, neste local, a coabitação de fios que o ligavam, simultaneamente, ao medo e à coragem: pontos de saída e de chegada do fio roto de dominação pessoal, manifestações antitéticas de um mesmo processo de transformação da cordialidade. Por isso, não obstante a tentativa consciente de se ligar à linhagem da mãe – ou seja, à linhagem dos despossuídos, àqueles cuja expressão violenta da valentia significava um momentâneo vislumbre das relações cordiais distendidas –, o sentimento que lhe resta é o de vergonha, marca indelével da habitação de forças contrárias num mesmo locus.