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Parte II A Lei 1 Estado de natureza ou a ‘vida burra': 1 Estado de natureza ou a ‘vida burra':

4. A lei liminar:

A cruzada travada pelos soldados do governo contra os jagunços é um sinal inegável de um esforço modernizante que, desde Os Sertões, fez-se tema presente e marcante na literatura brasileira (cf. BOLLE, 2004). Por trás deste gesto está sem dúvida o intento de expandir a esfera de influência do direito abstrato, que, no regulamento das relações sociais sertanejas, está em evidente antinomia com o princípio de balizamento cordial dos conflitos. No entanto, para além de uma mera passagem de uma coisa a outra, é preciso que se olhe para este tectonismo jurídico de modo a nele identificar os traços que o ligam ao acesso à vigência de uma lei propriamente moderna. Neste contexto, é interessante pensar como Guimarães Rosa, talvez como nenhum outro escritor brasileiro, tenha apagado as fronteiras entre o centro e a periferia do país: nem mesmo a luta entre soldados e jagunços parece uma batalha entre o que está dentro contra o que está fora do sertão: pelo contrário, o sertão de Rosa parece engolfar ambos em sua complexidade.

No entanto este paradoxal movimento, no qual o limite é transferido para o centro, tornando-se ele mesmo limiar, vai ao encontro do movimento que o filósofo Giorgio

Agamben identifica como curso moderno por excelência da soberania. Sua tese baseia-se, grosso modo, numa oposição basilar entre as democracias moderna e clássica. No centro desta oposição está o instituto do homo sacer, conceito que, derivado de uma antiga e obscura figura do direito romano, representa a vida que é capturada pelo poder soberano no momento de suspensão da lei por meio de uma maldição (sacer esto), que a torna um ser matável, porém insacrificável, transformando-a assim em mera polia que reconecta direito e vida. Assim, trata-se de uma entidade que sempre exercera seu papel nos rearranjos soberanos ao longo da história. Os contornos que dão forma a este conceito são fornecidos por uma outra oposição, desta vez entre dois termos gregos que hoje aglutinam-se em torno da palavra vida: seriam eles “zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2002, p.9). Torna-se claro, portanto, no argumento do autor, que a relação com a zoé – apreendida nos espaços vazios do direito, ou estados de exceção – sempre fizera parte do mecanismo de movimentação jurídica. O que caracterizaria, no entanto, a soberania propriamente moderna

não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente de cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno,

bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção

(Idem, p.16, grifos no original).

É trilhando este caminho que Agamben chega à crítica da modernidade política:

Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma

vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé

Desta forma, ao trazer para o centro da política este espaço juridicamente vazio, no qual poderia acontecer tudo o que o soberano considerava necessário – ou seja, ao trazer ao cerne aquilo que deveria constituir a margem da política –, tem-se como principal conseqüência o completo embaralhamento ético, uma completa indistinção entre aquilo que deve ser mantido dentro ou fora do ordenamento jurídico. Em outros termos, quando vida e política, divididos em sua origem e articulados entre si através da zona de suspensão do direito, na qual habita o homo sacer, tendem a identificar-se sem reservas, então toda vida converte-se em sacra (e conseqüentemente maldita) e toda política transforma-se em exceção. Em outros termos, a grande contradição da política moderna residiria precisamente na tentativa de encontrar a consistência da lei através da mais pura inconsitência ética.

A esta discussão liga-se claramente uma visão da política na modernidade que, ao lado de inúmeros esforços teóricos, enxergam no moderno uma era de crise28. A particularidade da crise aqui reivindicada é que se coloca, enquanto evento que define, o deslocamento de um espaço de inconsistência ética para o centro da vida política da modernidade. Dito de outra forma, seria possível afirmar que tanto a crise do sagrado, quanto a crise do sujeito e, em última instância, a crise da palavra literária diriam respeito a uma profunda crise ética que, em si, traz as marcas de uma também profunda crise da lei. Esta crise teria raízes em um duplo movimento que marca a constituição moderna dos parâmetros soberanos: o primeiro movimento consistiria no alçamento da vida ao patamar sagrado. O segundo, como clara decorrência do primeiro, vincular-se-ia à tendência normativa moderna, que intenta cobrir com a norma todos os aspectos da vida29. Isto significaria, em verdade, a transferência daquele que poderia ser considerado o resíduo do direito em seus momentos de crise – a vida transformada sagrada por uma maldição, que a captura na esfera jurídica – no princípio mais alto que rege a vida humana na polis.

                                                                                                               

28 Esta pode ser considerada uma extração teórica de vastíssimo alcance. Dentre os teóricos que influenciaram de forma decisiva este trabalho, podem-se destacar, além de Giorgio Agamben, Friedrich Nietzsche (1998, 2007), Sigmund Freud (1953, 2010), Walter Benjamin (1989, 1994, 2011) e Theodor Adorno (1985, 2003). 29 Ambos os movimentos, coligidos na obra de Agamben, não escondem suas raízes nos trabalhos de Michel Foucault (1988) e Walter Benjamin (2011).

A uma lei que, ao mesmo tempo, tenciona abranger tudo e almeja-se universal, resta a necessidade de operação contínua do mecanismo que dá consistência à sua mediação. Isto é, uma lei só pode ser universal se mediada: mais ainda, esta mediação só terá algum valor jurídico se à letra da lei for atribuída sua devida força de lei. Neste sentido se vislumbra o paradoxo que se estabelece no coração do direito moderno: o mesmo direito que se pretende mais neutro e imparcial é aquele que traz em seu centro o vulto de uma pura violência sem logos, da qual a norma necessita para fazer-se valer. Ou, em outros termos, o mesmo direito que se mostra extramente frio e racional é o mesmo que carrega como valor mais precioso as marcas de um estado de natureza, inteiramente irracional e monstruoso. Neste sentido se compreende que não há nenhum artifício na representação do oficial da lei sob as formas excessivamente monstruosas do delegado Javezedão.

Assim se percebe como, no fundo, a guerra entre jagunços e soldados, no contexto do romance, não é uma guerra lateral. Ela, com efeito, fixa os parâmetros para o próprio entendimento da violência na obra e, em última medida, de seu próprio caráter moderno. Isto porque, como se disse, em Grande sertão: veredas, ao se fazerem coincidir de forma praticamente sem resíduos uma guerra que confunde centro e periferia ao já observado quadro de dissolução ética dos modos de vida sertanejos, Guimarães Rosa parece apontar para a própria justaposição de um processo de modernização local sobre o curso moderno da soberania. Isto porque, sobretudo no contexto social do sertão do Brasil, a luta pela

mediação da lei se fez em meio a um completo desarranjo dos fios éticos tradicionais.

Neste sentido, talvez se possam vislumbrar os porquês da famigerada característica da obra rosiana: o local é universal somente na medida em que a obra se coloca precisamente no ponto de mediação entre vida e lei, no espaço vazio da exceção, no qual não se atesta nada senão a própria inconsistência ética da modernidade.

O acompanhamento deste tema elucida em parte a fragilidade ética a que está sujeito Ribaldo em Grande sertão: veredas. De fato, como já foi visto, não são raros os momentos de mistura e ambigüidade de valores, quando não de reversão e de transformação morais. Esta inconstância é uma das coisas que mais incomoda a mente hesitante do narrador que, talvez no trecho em que melhor explicite esta temática, diz:

Que isso o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim rúim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (GS:V, p.237)30.

O sertão de Grande sertão: veredas é, portanto, esta zona que é, ao mesmo tempo, centro e margem, eterno limiar: é o topos em que a palavra maldita se transforma em bendita, e vice-versa; é, por fim, o local em que o mal não pode ser banido, pois pouco a pouco se desfaz de suas máscaras míticas e revela-se como própria articulação das relações éticas. Desta forma, antes de considerar esta ambigüidade e inconstância como traço de um arcaísmo pré-contratual – condição à qual o sertão retratado por Rosa estaria submetido no sentido da ausência de uma lei comum e universal que serviria de parâmetro para todos –, percebe-se que não se trata de reconhecer a tendência à dissolução como marca de um estágio a ser superado pela lei: pelo contrário, o estado de natureza, que habita o centro da lei moderna, escorrega subrepticiamente sob o solo do sertão, corroendo qualquer tipo de fixidez ética que possa existir, manchando de cinza as relações sociais.