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Capítulo III Em busca de uma performance

3.1. O corpo em cena: uma escritura corporal

Devido ao caráter dionisíaco do teatro de Suassuna e, mais especificamente, da peça Uma mulher vestida de sol, o corpo do leitor e/ou espectador assume uma importância fundamental.

Em seus estudos acerca da performance, Zumthor relaciona-a com a recepção, e designa-a como o “momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma percepção sensorial – um engajamento do corpo” (ZUMTHOR, 2007, p. 18). No entanto, apesar de ligadas, o pesquisador enfatiza que recepção e performance são coisas diferentes, pois considera a performance como “um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido”. (p. 50). Já a recepção envolve uma duração mais longa, histórica, sociológica.

Nossa pesquisa enfatiza a inscrição corporal do leitor no texto Uma mulher vestida de sol, ou seja, busca apreender como o texto é construído, de forma a levar em conta o corpo do leitor e a recepção da obra no momento da performance (leitura ou representação cênica). Sobre o papel do corpo na leitura e percepção do literário, afirma Zumthor:

O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno,

de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa representação de si próprio. (ZUMTHOR, 2007, p. 23-24)

O estudioso afirma ainda que o corpo realiza a leitura e percebe o literário por meio de

elementos não informativos, que têm a propriedade de propiciar o prazer, o qual emana de um laço pessoal estabelecido entre o leitor que lê e o texto como tal. Para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes único, de poeticidade (literariedade). Com efeito, pode-se dizer que um discurso se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura que é praticada por tal indivíduo. (ZUMTHOR, 2007, p. 24-25)

Se pensarmos na estruturação da peça Uma mulher vestida de sol, conforme analisamos no capítulo anterior, percebemos que seu método de construção atinge a “poeticidade” e “literariedade” do texto, e, consequentemente, provoca o prazer no leitor. Este prazer é intencionalmente buscado por Suassuna, conforme revelou na entrevista:

Olhe, enquanto houver no mundo uma pessoa que goste de contar histórias, seja por escrito, seja oralmente, e você tenha duas ou três pessoas que gostem de ouvi-lo ou de lê-lo, a literatura está presente, não sei se com tanta repercussão, mas o problema da repercussão para mim é secundário. O fundamental é o problema da expressão e o prazer da leitura. A expressão por parte do escritor e o prazer da leitura por parte do leitor. Não é verdade? Pronto.

Suassuna ressalta a importância da “expressão”, ou seja, da elaboração do texto visando ao Belo, ao poético e literário, associado ao prazer da leitura. Entendemos que tal “expressão” é responsável pelo prazer do leitor, pela “fruição” como diria Barthes (1987).

Zumthor afirma que o leitor considera tal prazer muitas vezes como único critério de poeticidade e literariedade do texto. No entanto, entendemos que o verdadeiro prazer está diretamente ligado à elaboração estética do objeto literário, ao que faz dele uma obra de arte, ainda que o leitor inicialmente não se dê conta disso.

Roland Barthes, em seu livro O prazer do texto (1987), assim como Zumthor, também associa o prazer, mais precisamente a fruição despertada pelo texto literário, à escritura da voz e à provocação da sensorialidade do corpo:

Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, cumpriria incluir nela: a escritura em voz alta. Esta escritura vocal (que não é absolutamente a fala), não é praticada, mas é sem dúvida ela que Artaud recomendava e Sollers pede. Falemos dela como se existisse. Na Antiguidade, a retórica compreendia uma parte olvidada, censurada pelos comentadores clássicos: a actio, conjunto de receitas próprias para permitirem a exteriorização corporal do discurso: tratava- se de um teatro da expressão, o orador-comediante “exprimia” sua indignação, sua compaixão, etc. A escritura em voz alta não é expressiva; deixa a expressão ao fenotexto, ao código regular da comunicação; por seu lado ela pertence ao genotexto, à significância; ela é transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entonações maliciosas, os acentos complacentes, mas pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e de linguagem, e pode portanto ser por sua vez, tal como a dicção, a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo (daí sua importância nos teatros extremo-orientais). Com respeito aos sons da língua, a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética; seu objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela procura (numa perspectiva de fruição), são os incidentes pulsionais, a linguagem atapetada de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofoniada carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem. (1987, p. 84-85)

Barthes relaciona o prazer do texto a uma “escritura vocal”, que não é exatamente a fala, mas inscreve a voz. A escritura vocal movimenta tanto o corpo do intérprete (no caso do teatro) como o do espectador.

Uma certa arte da melodia pode dar uma idéia desta escritura vocal; mas, como a melodia está morta, e talvez hoje no cinema que a encontraríamos mais facilmente. Basta com efeito que o cinema tome de mui perto o som da fala (é em suma a definição generalizada do “grão” da escritura) e faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade, a respiração, o embrechamento, a polpa dos lábios, toda uma presença do focinho humano (que a voz, que a escritura sejam frescas, flexíveis, lubrificadas, finamente granulosas e vibrantes como o focinho de um animal), para que consiga deportar o significado para muito longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do ator em minha orelha: isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui. (1987, p. 85)

Por intermédio da escritura vocal, o leitor percebe pelos sentidos sua implicação no texto, fato que lhe propicia a fruição do literário. Tal experiência dá-se na leitura da peça Uma mulher vestida de sol.

Pelo menos, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar (ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance, encontraremos sempre um elemento irredutível, a ideia da presença de um corpo. Recorrer à noção de performance implica então a necessidade de reintroduzir a consideração do corpo no estudo da obra. (ZUMTHOR, 2007, p. 18)

Zumthor retoma Barthes ao pensar o teatro, afirmando que este inscreve o corpo em sua complexidade, pois integra a voz que carrega a linguagem a um grafismo traçado por um ser humano. Por isso, o teatro caracteriza-se como “o modelo absoluto de toda poesia oral” (1997, p. 58).

Ao tratar do texto escrito, Zumthor considera-o como de grau performancial mais fraco (numa escala de performance), porém não menos importante. De acordo com o estudioso, as reações provocadas pela performance, no caso da leitura relacionam-se com o desejo e o envolvimento do corpo do leitor: “Minha hipótese de partida poderia se exprimir assim: o que na performance oral pura é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo. Nos dois casos, constata-se uma implicação forte do corpo (...)” (2007, p. 35)

Ao ser representada, a performance se realiza de forma plena. No entanto, Zumthor enfatiza que constitui um preconceito aproximar apenas a performance da oralidade. Além disso, descreve a performance que se realiza no processo de leitura:

(...) a leitura é a apreensão de uma performance ausente-presente; uma tomada da linguagem falando-se (e não apenas se liberando sob a forma de traços negros no papel). A leitura é a percepção, em uma situação transitória e única, da expressão e da elocução juntas. (2007, p. 56)

A leitura da peça Uma mulher vestida de sol inscreve o corpo do leitor principalmente por meio da elaboração textual que incorpora a voz poética como memória, tanto dos elementos pertencentes ao universo da sonoridade e da musicalidade, quanto das imagens visuais que carregam forte valor simbólico. Ressaltamos algumas destas imagens.

A primeira imagem que aparece para o leitor é a do próprio título: “uma mulher vestida de sol”, presente também na citação bíblica que “abre” e “fecha” a peça. A figura da mulher, segundo Chevalier e Gheerbrant (1996), remete-nos ao “feminino”,

cuja simbologia liga-se à transcendência, desejo sublimado, à alma do mundo, às primeiras forças elementares. Além disso, segundo Chardin (apud Chevalier e Gheerbrant,1996), a mulher manifesta o significado do amor, como a grande força cósmica; nela a aspiração humana e transcendência fundem-se. De acordo com Jung (apud Chevalier e Gheerbrant,1996), o feminino personifica a anima, a qual envolve o inconsciente, as intuições proféticas, a capacidade de amar e de sentir a natureza. As duas principais imagens femininas da peça consistem na imagem de Nossa Senhora e na de Rosa. A primeira pertence a uma dimensão mais espiritual, transcendente e aparece indiretamente na citação bíblica de Apocalipse, proclamada por Cícero no início e no final da peça:

CÍCERO – E viu-se um grande sinal no Céu, uma Mulher Vestida de Sol, que tinha a Lua debaixo dos seus pés, e uma Coroa de doze Estrelas sobre a sua cabeça; e, estando prenhada, clamava com dores de parto, e sofria tormentos por parir. (p. 37; p. 194)

Também, no desfecho da peça, literalmente aparece a figura de Nossa Senhora, que se aproxima do corpo de Rosa:

“Junto ao corpo de Rosa, aparece a figura de Nossa Senhora, com os braços abertos como se estivesse a envolvê-la com sua infinita bondade” (p. 194).

A Virgem-Mãe, Nossa Senhora, é a mais perfeita encarnação desse tema. “O Feminino autêntico e puro é, por excelência, uma Energia luminosa e casta, portadora de coragem, de ideal e de bondade: a bem-aventurada Virgem Maria. Ele a saúda como a Pérola do Cosmos... a verdadeira Deméter“. (LUEF, apud apud Chevalier e Gheerbrant,1996).

A segunda imagem feminina pertence a uma dimensão mais corpórea e humana: a figura de Rosa, que carrega consigo a simbologia do desejo, do inconsciente, a capacidade de amar. No entanto, o amor de Rosa por Francisco e deste por ela faz com que ambos ignorem o perigo de morte que os ronda, resultando no infortúnio dos mesmos, lembrando que a anima pode representar também “um sonho quimérico de amor, de felicidade e de calor maternal (o ninho) – um sonho que leva o homem a ignorar a realidade” (JUNG, apud Chevalier e Gheerbrant,1996).

A imagem de Rosa unida à de Nossa Senhora, no final da peça, integram as duas dimensões do feminino: humano e sagrado.

Além disso, o feminino remete-nos mais uma vez ao caráter dionisíaco do teatro suassuniano. A imagem da mulher do título e da passagem bíblica mostra-se “vestida de sol”. Se recorrermos ao Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, (1996), observaremos que o sol consiste na manifestação da divindade e da fecundidade. Maria, na passagem bíblica, está “prenhada”, ou seja, grávida, e sua gravidez tem ligação com o divino. Também Rosa, quando morre, está grávida.

O sol, ao mesmo tempo que traz luz, calor e vida, pode queimar, destruir e matar, pois é o princípio da seca. A força destruidora do sol mostra-se ao longo da peça, marcando o espaço do sertão com seu calor intenso e com a seca, que provoca o êxodo de retirantes, os quais muitas vezes acabam morrendo. Eis alguns exemplos:

O JUIZ - Aqui é o sertão, um tabuleiro de serra do sertão. O sol de fogo de dia e o frio da noite, pedras, bodes, Cabras e lagartos, com o Sol por cima e a terra parda embaixo. Mas nem por isso os homens que aqui vivem estão subtraídos ao poder da lei. (p. 38) (grifo nosso)

Note-se, nesta passagem, o uso de maiúscula na palavra sol, de modo a personificá-la e a reforçar seu simbolismo.

“MARTIM - Do jeito que as coisas estão, com esse sol quente, essa poeira, o velame e a malva ressecados pelo sol, qualquer faísca isso aqui pega fogo! Que lugar!

CAETANO - O sol está vermelho e a terra treme na vista!” (p. 42) (grifos nossos)

A passagem de Apocalipse, da qual depreendemos “uma mulher vestida de sol”, mostra-nos uma mulher com a Lua debaixo dos pés, o que nos permite pensar no domínio do divino sobre os ciclos da vida (nascimento-morte), já que a Lua tem seus ciclos. A Coroa de doze Estrelas remete-nos à simbologia do número doze:

É o da Jerusalém celeste (12 portas, 12 apóstolos, 12 juízes etc.). É o do ciclo litúrgico do ano de 12 meses e de sua expressão cósmica, que é o Zodíaco. Num sentido mais místico, o três diz respeito à Trindade, o quatro à criação, mas o simbolismo do doze continua o mesmo: uma realização do criado

terrestre por assunção no incriado divino... (CHAS, apud Chevalier e Gheerbrant,1996).

Suassuna, ao inserir tal imagem, coloca sua obra em diálogo com o sagrado, o transcendente. Por isso, as dores do parto, ao mesmo tempo que nos lembram a dor e o sacrifício humanos, também nos colocam frente à esperança de renovação da vida.

No decorrer da peça, aparece muito a cor vermelha e fala-se de sangue, criando uma espécie de “pintura” da morte e do Trágico:

“DONANA – E quem pode? Ninguém podia olhar para ela direito, era como uma onça ou como o sol. E a casa, com ela viva, era como o jardim, ela cobria tudo de rosas e papoulas vermelhas.” (p. 53)

“CÍCERO - E talvez seja você também, que pode morrer de tiro ou de faca, porque você é desses cujo sangue tem vontade de queimar, no sol. Joaquim Maranhão está? Ouvi dizer que estava na Espinhara.” (p. 57)

No entanto, contrapondo-se às imagens trágicas, temos a imagem do Circo, ligada à figura de Francisco:

“ROSA - É mentira! O que se fala é que ele anda viajando com um Circo.” (p. 50) Suassuna assistiu a muitos espetáculos populares em sua infância em Taperoá, dos quais ele ressalta a importância do circo:

Tinha três diversões quando menino: a caça, a leitura e o circo. Vocês não podem imaginar a felicidade quando chegava a notícia: “Chegou o circo!” Então tinha aquela preparação toda, o palhaço saía pelo meio da rua escanchado no jumento, de costas, e um bando de meninos atrás. (SUASSUNA, 2007a, p. 18)

A lembrança do circo está ligada à vivência das brincadeiras, do riso, da magia, do colorido, dos jogos de cena, posteriormente transportados para o teatro suassuniano.

Percebemos, através da exemplificação de algumas imagens presentes no texto, que o mesmo inscreve o corpo do leitor, por intermédio da ativação de sua memória consciente ou inconsciente e mítica, de maneira a vibrar seus sentidos e emoções.

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