• Nenhum resultado encontrado

Uma mulher vestida de sol: uma tragédia contemporânea

Capítulo II O teatro de Ariano Suassuna: marcas dionisíacas

2.2. Uma mulher vestida de sol: uma tragédia contemporânea

Uma mulher vestida de sol (2006) constitui uma tragédia em três atos, marcada pela rivalidade entre duas famílias habitantes do sertão nordestino e pelo amor de dois jovens, cada qual pertencente a uma das famílias, assim como no drama shakespeariano Romeu e Julieta. Uma das famílias é centrada na figura de Joaquim Maranhão, “Senhor da Jeremataia”, fazendeiro que ficou viúvo, após ter matado a mulher por causa de ciúmes, e tido na região como perigoso. Mora com sua filha Rosa e com sua sogra Donana. Além disso, vive sob a proteção de dois “cabras”: seus sobrinhos pobres Martim e Gavião. Já a outra família tem como eixo a figura de Antônio Rodrigues, “Senhor das Cacimbas”, cunhado de Joaquim, fazendeiro que vive com a mulher Inocência a espera do filho Francisco, que partira há algum tempo e, segundo dizem, encontrava-se trabalhando em um circo. Recebe proteção de Caetano e Manuel. Posteriormente, quando Francisco retorna à fazenda, reencontra Rosa e casa-se às escondidas com ela. Após saber que Rosa e Francisco casaram-se por intermédio de Cícero, o pai trama contra a filha e o genro, provocando a morte deste último. Em seguida, Rosa vinga a morte de Francisco, colaborando para o assassinato do próprio pai. Ao término da trama, Rosa suicida-se com uma faca que ganhara de presente de seu amado.

A respeito desta peça, Ariano Suassuna afirma:

(...) foi esta a primeira peça, do ciclo atual da dramaturgia nordestina, a tratar do problema camponês em tom não dirigidamente político (que não me interessava então, nem me interessa agora, que está na moda), mas que procurava ser total e humano e que, por isso mesmo, compreende inclusive o político. (2006, p. 27-28)

Segundo Mesquita (2003), pode-se conceituar o enredo como o

arranjo de uma história: a apresentação/representação de situações, de personagens nela envolvidos e as sucessivas transformações que vão ocorrendo entre elas, criando-se novas situações, até se chegar à final – o desfecho do enredo. Podemos dizer que, essencialmente, o enredo contém uma história. É o corpo de uma narrativa. (2003, p. 07)

No entanto, a autora enfatiza que enredo e fábula são coisas distintas, sendo o primeiro “a elaboração estética do que diz a fábula, mediante uma instância narrante” (MESQUITA, 2003, p. 22), e a segunda compõe “um conjunto de vivências de personagens, em suas conexões internas, em sua seqüência temporal, causal” (MESQUITA, 2003, p. 22). Dessa maneira, a fábula tem a ver com a história em si, que pode até não ter sido criada pelo autor; já o enredo é o tratamento literário dado a esta história.

Além disso, segundo Mesquita (2003), o enredo é parte constitutiva não apenas de um romance, de um conto ou de uma novela, mas também de uma peça de teatro. A esse respeito, ela recorre a Wellek e Warren (apud MESQUITA, 2003, p. 77): “À estrutura narrativa de uma peça, um conto ou de um romance têm-se tradicionalmente chamado ‘enredo’ e provavelmente há que manter este termo”.

Segundo Almeida Prado (2005), o enredo assume no teatro uma importância muito maior do que no romance, pois se deve buscar a ação, a qual não se confunde com movimento, mas pode envolver o silêncio, a omissão, postos de maneira dramática. Além disso, o teatro prima pelos episódios significativos, pelos incidentes característicos, os quais fixam de modo objetivo a psicologia da personagem.

Para tratar da conceituação de enredo, recorre-se a Aristóteles, que, ao tratar da tragédia em sua Poética, diz:

Toda tragédia tem um enredo e um desfecho; fatos passados fora da peça e alguns ocorridos dentro constituem de ordinário o enredo; o restante é o desfecho. Entendo por enredo o que vai do início até aquela parte que é a última antes da mudança para a ventura ou desdita, e por desfecho o que vai do começo da mudança até o final [...] (2005, p. 38)

Uma mulher vestida de sol pertence ao gênero tragédia, como pensou Aristóteles, pois apresenta seus principais elementos.

Afirma Aristóteles (2005, p. 24): “É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções.”

A ação grave em Uma mulher vestida de sol tem a ver com a peleja entre as duas famílias; inspira-nos piedade a extrema dificuldade de concretização do amor entre Rosa e Francisco e, no tocante ao temor, deparamo-nos com a possibilidade de morte dos protagonistas.

Aristóteles (2005) descreve os seis elementos da tragédia, dos quais depende sua qualidade: fábula, caracteres, falas, ideias, espetáculo e canto. A fábula consiste na reunião das ações; os caracteres são as qualidades das figuras em ação; as falas compõem as interpretações por meio de palavras, seja em versos, seja em prosa; as ideias são os termos que empregam para argumentar ou para manifestar o que pensam; o espetáculo consiste na encenação e o canto é o maior dos ornamentos. Além disso, o autor da Poética ressalta:

A mais importante dessas partes é a disposição das ações; a tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter, as pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa. (2005, p. 25)

São, portanto, as ações das personagens os elementos mais importantes da peça. No caso de Uma mulher vestida de sol, as ações dos fazendeiros revelam-nos o caráter de cada um deles, bem como as ações dos protagonistas revelam o caráter e a heroicidade dos mesmos.

Ao abordar a importância das ações, Aristóteles (2005, p. 26) destaca duas partes da fábula: as peripécias e os reconhecimentos, os quais considera “os mais importantes meios de fascinação das tragédias”. Reforça ainda que uma fábula que apresente peripécias e/ou reconhecimentos mostra-se complexa, diferentemente da fábula que não apresente tais elementos, a qual se mostra simples.

Tais elementos compõem a fábula e originam-se da mesma por necessidade ou por verossimilhança, que consiste não em contar o que aconteceu, mas coisas possíveis de acontecer. No caso da peça Uma mulher vestida de sol, a rivalidade entre duas famílias sertanejas, que juram de morte uma a outra, é algo ainda recorrente no espaço do sertão e compõe a verossimilhança externa do texto. Já a

verossimilhança interna fica por conta da coerência e lógica textuais, presentes nos três atos.

Aristóteles (2005, p. 30) conceitua peripécia como “uma viravolta das ações em sentido contrário” e o reconhecimento como “a mudança do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita”.

A peripécia, na peça Uma mulher vestida de sol, está no casamento de Rosa e Francisco, realizado por Cícero. Por meio do casamento, Rosa e Francisco acreditavam que ficariam juntos e nada mais impediria isso. No entanto, foi justamente o contrário: o casamento provocou a ira de Joaquim, pai de Rosa, fazendo com que este preparasse uma armadilha para prender Rosa e assassinar seu marido. A moça é enganada pelo pai e em seguida Francisco é assassinado. Por fim, Rosa descobre a emboscada em que caíram ela e seu amado, dando-se o reconhecimento:

ROSA – Estava descarregado? O rifle? Então era isso! Agora eu compreendo tudo, o que Francisco me disse, o que me mandou fazer, porque obedeceu em tudo a meu Pai! Meu Pai faltou à palavra, meu Tio! Passou a cerca, entrou na sua terra com Gavião e me tirou daqui à força. Quando Francisco quis reagir, disse que atirava na minha cabeça. Foi aí que Francisco deve ter descarregado o rifle e passado a cerca. Coitado, queria me convencer para que eu não morresse! Quando eu voltei, Francisco, certamente combinado com meu Pai, me disse que ia ficar vivo! Ah, Francisco, por que você fez isso? Ele sabia que, se não dissesse assim, eu não aceitaria! (p. 183)

Ao dar-se conta das terríveis armações do pai, Rosa fica chocada e surpresa. Acontece, então, o reconhecimento da melhor espécie, segundo Aristóteles (2005), pois provém das ações e respeita a verossimilhança.

Em consequência do descumprimento da palavra de Joaquim, que provocou a morte de Francisco, Rosa decide vingar seu marido. Atrai, então, o pai para perto de Antônio e Inácio, os quais atiram nele. Passado um tempo, Rosa se despede de todos e põe fim à própria vida, com o punhal que havia ganhado de Francisco. Esta sequência de traições, vinganças e mortes constitui o que Aristóteles (2005, p. 31) chamou de patético, parte da fábula que “consiste numa ação que produz destruição ou sofrimento”.

Segundo Suassuna, em Iniciação à estética (2007c, p. 124), o Trágico constitui essência de todas as tragédias. Apesar disso, uma tragédia pode conter ou não todas as características do Trágico, o que não faz dela uma “obra de arte imperfeita”, mas apenas uma tragédia incompleta. Além disso, ressalta Ariano, “uma coisa é a pureza das essências estudadas pela Estética – o Trágico, o Dramático etc. e outra coisa é a obra de arte, complexa e ‘impura’ por natureza”.

Em uma tragédia, segundo Aristóteles (2005), os personagens são “seres superiores”, com grandeza e caráter elevado, com características boas e ruins; porém diferentes da maioria dos homens, pois suas ações têm uma motivação de ordem maior, filosófica ou existencial.

Suassuna, na entrevista que se encontra no apêndice deste trabalho, afirma que Uma mulher vestida de sol é uma tragédia incompleta, pois falta uma de suas características, a presença de personagens superiores:

(...) a peça pode ser considerada uma tragédia, se bem que na minha opinião uma tragédia que não é perfeita, não estou usando aqui como um pejorativo não, não é perfeita porque falta uma das características. No Trágico você tem sempre um personagem, pelo menos um personagem, que é um personagem superior, elevado, e é exatamente essa superioridade dele que faz com que ele entre em conflito nos acontecimentos que lhe rodeiam e que termina lhe levando ao seu destino infortunado e doloroso, o Trágico, então há uma predominância e isso em Uma mulher vestida de sol não acontece. Os dois personagens são mais dramáticos do que trágicos. Porque a diferença entre o personagem dramático e o trágico é a seguinte: o personagem trágico é o personagem superior, como eu disse, e é essa superioridade que o leva ao seu destino trágico. O personagem dramático é uma pessoa comum, a quem por circunstâncias, por vezes até alheias a sua vontade, termina acontecendo um destino terrivelmente infortunado e doloroso. Entendeu a diferença? Então ele, o personagem trágico, é o personagem excepcional. O dramático é uma pessoa a quem acontece um destino excepcionalmente doloroso e triste.

A esse respeito, vale a pena ainda ressaltar:

Há, porém, outros pensadores contemporâneos que acham que a verdadeira tragédia moderna se passa com o homem comum: aí, é uma questão de terminologia. A meu ver, estão esses pensadores identificando tudo o que é doloroso com o Trágico. Os atos humanos que saem do domínio do indiferente, têm dois grandes campos que interessam à Arte e à Estética – o do doloroso e o do risível. No campo do doloroso, as duas categorias mais importantes são o Trágico e o Dramático. Na nossa opinião, as “tragédias do homem comum” ficam compreendidas dentro do Dramático: no Trágico, os personagens nunca são comuns. E que uma tragédia possa ser escrita nos tempos de hoje, isto é

provado, e bem provado, pelas três maiores peças de Frederico Garcia Lorca, Bodas de Sangue, Yerma e A casa de Bernarda Alba. (SUASSUNA, 2007c, p. 131-132)

Em Iniciação à estética (2007c, p. 137), Suassuna conceitua o personagem dramático como “menos elevado que o trágico (...) porém, mais vivo e mais humano”. No entanto, enfatiza que não há uma hierarquia entre o personagem trágico e o dramático e que este último não é inferior ao primeiro, mas situa-se entre as categorias do Trágico e do Cômico.

Francisco e Rosa são, portanto, como o próprio Suassuna ressaltou, ao abordar a peça em entrevista, personagens dramáticos. Isso porque, assim como os personagens shakespeareanos Romeu e Julieta, eles são dois jovens apaixonados marcados por um destino doloroso, porém suas ações não possuem grandes motivações existenciais, místicas ou filosóficas.

A linguagem trágica, no entender de Aristóteles (2005), é “ornamentada”, pois agrega “ritmo, harmonia e canto”, podendo manifestar-se em prosa ou verso, mas com predomínio da imagem e da metáfora. A esse respeito, comenta Suassuna (2007c, p. 127) : “É evidente, então, que para Aristóteles a linguagem trágica tem que ser é poética, e não necessariamente em versos isto é, uma linguagem com predominância da imagem e da metáfora sobre a precisão e a clareza”.

Na peça, uma das personagens assume a função de um dos principais elementos da tragédia clássica: o coro. É Cícero, “velho com rosários e cajado”, espécie de profeta do sertão, homem de fé e de sabedoria. Ele entoa grande parte dos cantos, ou mesmo faz uso de versos e de rezas, desde o início até o término da peça, encadeando os episódios através de prenúncios, reflexões e lamentos.

Segundo Prado,

o coro da tragédia que, se por um lado era pura expressão lírica, por outro desempenhava funções sensivelmente semelhantes às do narrador do romance moderno: cabia a ele analisar e criticar as personagens, comentar a ação, ampliar, dar ressonância moral e religiosa a incidentes que por si não ultrapassariam a esfera do individual e do particular.

[...]

o coro, a seu modo, também é personagem – fundem-se a tal ponto que somente uma análise um tanto artificial poderia dissociá-los. Daí o caráter ambíguo do coro e a tendência do teatro a eliminá-lo [...] (2005, p. 87)

Nesse sentido, Cícero cumpre muito bem o papel desempenhado pelo coro na tragédia clássica. De acordo com Suassuna, na já referida entrevista, Cícero pode ser comparado ao personagem Tirésias da tragédia grega de Sófocles, cego “condutor dos acontecimentos, do enredo e um condutor do fio trágico que permeia a peça toda”. Ademais, a sabedoria de Cícero equivale à de Tirésias.

Suassuna afirma que o Trágico é “a categoria fundamental das tragédias”, mas não a única categoria da Beleza presente nas mesmas. Outra categoria, como o Cômico, também pode se fazer presente. Uma mulher vestida de sol é uma tragédia e, como tal, nela predomina a essência do Trágico. No entanto, em alguns momentos, também aparecem marcas do Cômico e da Ironia, o que não faz da peça um texto híbrido nem tragicômico. A respeito disso, afirma Suassuna na entrevista:

(...) não estou me comparando a Shakespeare, apenas é um problema da linhagem, se você reler o Hamlet, você vai encontrar momentos de puro cômico, às vezes até meio obscenos, não é? Mas predomina, é claro, que é uma tragédia, predomina o Trágico, o doloroso, não é? É, ao mesmo tempo acontece com Uma mulher vestida de sol, quer dizer, você tem alguns momentos de comicidade, mas há uma predominância do doloroso, do Trágico, no total, então a peça pode ser considerada uma tragédia (...)

O humor e a ironia de alguns personagens e situações fazem o contraponto à atmosfera trágica que predomina na peça. Nesse ponto, ela assemelha-se às peças da tradição clássica elisabetana, como o Hamlet, de William Shakespeare. Tal fato é reforçado por Hermilo Borba Filho:

E aqui ainda o autor da Mulher obedece fielmente à tradição clássica elisabetana quando joga, dentro da atmosfera trágica, a comicidade do Bacharel Orlando de Almeida Sapo e do Delegado de Polícia, figuras ridículas e chãs, mesmo poéticas, em contraste com a estrutura dos demais personagens; e, quando, também, alterna o uso da prosa e do verso. (BORBA FILHO, 2006, p. 19)

A presença de elementos irônicos e da esfera do Cômico presentes em Uma mulher vestida de sol, também reforçam sua dimensão de “tragédia dionisíaca”. A riqueza de personagens, com características diversas, como o Bacharel Orlando de Almeida Sapo e o Delegado de Polícia, mais cômicas, ao contrário de outras, como Francisco e Rosa, mais dramáticas, concede mais verossimilhança à peça, pois

aproxima-a do possível, do plausível. Tal ideia vai ao encontro do pensamento de Suassuna, que afirma:

(...) quero fazer teatro como os clássicos faziam e não se faz mais hoje: teatro feito com gente, para gente, com histórias de gente, que tenham princípio, meio e fim. Um teatro que tenha coragem de juntar personagens diferentes, investindo contra um falso entendimento da unidade de estilo. Na vida também há diversidade: personagens da tragédia e de farsa misturados numa só história. (SUASSUNA, 2008, p. 47-48)

No prefácio da peça, Suassuna (2006, p. 26) afirma que na escritura da mesma utilizou-se de “elementos clássicos e românticos – principalmente o humorismo romântico, marcado pela demência e pela morte”. A imagem da morte perpassa toda a peça e é marca importante da ironia do texto. Logo no início da peça, o leitor depara-se com a fala de Cícero, a qual retoma uma passagem bíblica do livro de Apocalipse:

CÍCERO: E viu-se um grande sinal no Céu, uma Mulher Vestida de Sol, que tinha a Lua debaixo dos seus pés, e uma Coroa de doze Estrelas sobre a sua cabeça; e, estando prenhada, clamava com dores de parto, e sofria tormentos por parir. (p. 37).

Tal passagem é fundamental para a compreensão da peça, pois se relaciona diretamente com o título da mesma: Uma mulher vestida de sol. Podemos associar esta mulher à figura de Maria, como expressão da dimensão do sagrado feminino; da grande Mãe, aquela que gera e possibilita o início da Vida. A imagem da mulher grávida também nos remete à simbologia dionisíaca relacionada com o feminino; à mulher que carrega em si a explosão da vida, a força dionisíaca e o mistério do nascimento.

Esta aparição no início da peça também nos faz pensar na origem do texto, da escritura: a peça tem como ponto de partida o mito. Segundo Eliade,

o mito conta uma história sagrada; ele retrata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora

e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ‘sobrenaturalidade’) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (2006, p. 11)

Nesse sentido, a figura de Maria compõe este Ente Sobrenatural de que fala o texto. Além disso, a passagem bíblica proclamada por Cícero, presente em Apocalipse 12, 1-2, alude ao fim do mundo, ao combate entre as forças antagônicas do Bem e do Mal e, consequentemente, à morte, a qual antecede a paz e a alegria perfeita no reino celeste. A personagem de certa maneira profetiza os acontecimentos que se seguirão no decorrer da peça.

Após a fala de Cícero, presenciamos uma conversa entre o delegado e o juiz da região, que se dirigiram para as fazendas de Joaquim Maranhão e Antônio Rodrigues, a fim de resolverem a disputa travada pelos fazendeiros pela possessão de terras. Esta chegou ao ponto de as pessoas ligadas a uma família não poderem ultrapassar os limites de suas terras, de modo a pisar nas terras da outra família, sob pena de serem mortas.

Os personagens do delegado e do juiz são construídos de forma irônica, desde o nome do juiz: Bacharel Orlando de Almeida Sapo, que já leva o leitor a uma caricatura deste homem, representante da lei. Esta não é respeitada no sertão, onde prevalece a força, calcada no poderio econômico e na valentia, e tanto o juiz quanto o delegado sabem disso e são coniventes com tal situação. No entanto, fazem questão de exibir pomposamente suas vestes e seu vocabulário rebuscado e permeado de expressões

Documentos relacionados