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4. O Corpo para Lacan

4.4. Corpo e desejo

Em Freud, o desejo diz respeito ao desejo inconsciente e na teoria do sonho, na qual essa noção se define mais precisamente, como sublinha Freud (1916 [1915-16] ), a “realização de desejo tornou-se o verbete para a nova teoria dos sonhos” (CD-ROM).

Retomando Freud, Lacan problematiza longamente a questão do desejo, recolocando essa noção no primeiro plano de sua teoria analítica. Para isso, segundo Laplanche & Pontalis (1983), Lacan é levado a distingui-lo da necessidade: “o desejo nasce do afastamento entre a necessidade e a exigência; é irredutível à necessidade, porque não é fundamentalmente relação com um objeto real, independente do indivíduo, mas com o fantasma (fantasia)” (p.160).

Para Lacan (1960a), o desejo assinala uma alteridade constitutiva, pois “o desejo do homem é o desejo do Outro, onde o de fornece a determinação chamada pelos gramáticos de subjetiva, ou seja, é como Outro que ele deseja (o que dá a verdadeira dimensão da paixão humana)” (1998, p.829). Ele está, ao mesmo tempo, diretamente articulado à linguagem, já que, como Chemama (1995) explicita, “o termo que nomeia o objeto faltante deixa aparecer essa falta, o próprio lugar do desejo. A falta é um efeito da linguagem: ao nomear o objeto, o sujeito necessariamente o perde” (p.43).

Pujó (1995, p.23) lembra que, na teoria lacaniana, o desejo está no centro da prática psicanalítica, “como causa, objetivo e motor da sua ação”, sendo “atingível só pelo caminho indireto da interpretação”. Assim, articulado nas formações do inconsciente (sonhos, lapsos, sintomas), “o desejo se fixa no fantasma e dá conta tanto da angústia e da inibição, quanto do conceito de ato em Psicanálise, constituindo a referência essencial da sua ética (...)”. Em extensão, é ele que organiza também o estabelecimento da transferência e o modo, especificamente analítico, de abordá-la. Esse autor refere-se ainda à singularidade da noção de desejo, tal como enfatizada na teoria lacaniana, lembrando que

Lacan acentua desde o início a dimensão de extravio que o desejo humano manifesta perante qualquer tendência natural, na relação que o homem estabelece e mantém com os objetos de seu mundo. A

paradoxal, desviante, errático, excêntrico, inclusive escandaloso, pelo qual se diferencia da necessidade. (p.23).

Lacan (1957-1958) aponta o aspecto paradoxal do desejo, afirmando que ele não é situável no campo da necessidade natural. Ao mesmo tempo, estabelece uma articulação entre o desejo e a demanda, afirmando que

o desejo articula-se necessariamente na demanda, porque só podemos aproximar-nos dele por intermédio de alguma demanda. A partir do momento em que o paciente nos aborda e vem a nosso consultório, é para nos pedir alguma coisa, e já vamos muito longe no compromisso e no rigor da situação quando lhe dizemos, simplesmente: _ Estou à sua

escuta. (1999, p.341).

Mais exatamente, Lacan (1957-1958) situa o desejo em uma “zona intermediária”, ou seja, em um “jogo de oscilação entre os significantes (...) da necessidade (...) e o que resulta (...) da presença constante do significante no inconsciente”. Isso significa que

é nessa zona intermediária que se situa o desejo, o desejo do homem como aquele que é o desejo do Outro. Ele está para além da necessidade, para além da articulação da necessidade à qual o sujeito é levado pela exigência de valorizá-la para o Outro, para além de qualquer satisfação da necessidade. Ele se apresenta em sua forma de condição absoluta e se produz na margem entre a demanda de satisfação da necessidade e a demanda de amor. O desejo no homem, para ele, tem sempre de ser buscado no lugar do Outro como lugar da fala, o que faz com que o desejo seja estruturado nesse lugar do Outro. (1999, p.454).

Chemama (1995) considera que o fato de que o desejo, em termos lacanianos, não se refere à ordem da satisfação instintiva, possibilita pensar

que a falta é uma marca da linguagem, “pois é um corte simbólico, que desde logo separa o sujeito de um objeto supostamente perdido” (p.46). Além disso,

a excitação real do sujeito cerca um objeto que parece inatingível e constitui a pulsão. A existência do sujeito desejante, em relação ao objeto de seu fantasma, é uma ascenção, que procede da inscrição da falta no desejo da mãe, pois cabe primeiro à mãe, e depois ao pai, inscrever, para o filho, essa falta, uma falta não natural, mas própria da linguagem. (p.45).

Não se acha, então, esse objeto que completa a falta e é causa do desejo. O destino humano é esse de ter que se confrontar com a própria castração. Se o sujeito quer um lugar “que não a dessa infinita dor de existir, (...) ou da morte real; seu desejo, por uma necessidade de linguagem, não pode senão passar pela castração” (p.44).

Lacan (1955-1956) aponta o aspecto inapreensível do objeto, destacando que, no que se refere ao humano e à “existência”, trata-se sempre de “reencontrar um objeto”. Para ele:

Toda apreensão humana da realidade está submetida a essa condição primordial – o sujeito está na busca do objeto de seu desejo, mas nada o conduz a ele. A realidade, na medida em que ela está sub-tendida pelo desejo, é no início alucinada. A teoria freudiana do nascimento do mundo objetal, da realidade tal como ela é expressa no fim da Traumdeutung por exemplo, e retomada a cada vez que se trata dela essencialmente, implica que o sujeito fique em suspensão com respeito ao que constitui seu objeto fundamental, o objeto de sua satisfação essencial. (1988, p.101).

Retomando a formulação freudiana de uma “dialética de dois princípios inseparáveis (...): o princípio do prazer e o princípio de realidade”, Lacan

o sujeito não tem de encontrar o objeto de seu desejo, ele não é levado a isso por canais, trilhos naturais de uma adaptação instintiva mais ou menos preestabelecida, e aliás mais ou menos tropeçante, tal como a vemos no reino animal, ele deve ao contrário reencontrar o objeto, cujo aparecimento é fundamentalmente alucinado. É claro, jamais o reencontra, e é precisamente nisso que consiste o princípio de realidade. O sujeito não reencontra jamais, escreve Freud, senão um outro objeto, que corresponderá de maneira mais ou menos satisfatória às necessidades de que se trata. Jamais encontra senão um objeto distinto, pois que deve por definição reencontrar alguma coisa que é de empréstimo (...).(1988, p.101-102).

Assim, o corpo na teoria lacaniana é o corpo de desejo, marcado pela dimensão de extravio que o desejo humano manifesta. Essa constatação possibilita repensar de forma importante a questão da satisfação e a relação que o homem mantém com os objetos de seu mundo.

4.5. SEXUALIDADE E SEXUAÇÃO

Freud introduz nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade a definição do estádio pré-genital (oral, anal) e genital, em função da evolução do sujeito e de sua relação com as zonas erógenas do corpo. Como assinalam Roudinesco & Plon (1998, p.193), “o estádio foi definido, nessa época, como uma modalidade de relação com o objeto” (p.191). Os autores ressaltam que a noção de estádio fálico, apesar de já estar presente em um adendo nos Três

ensaios, surge mais claramente em 1923, com A organização genital infantil.

Lacan conserva essa terminologia freudiana, por exemplo com o estádio do espelho, dando-lhe, entretanto, um estatuto mais fenomenológico e estrutural. Ao mesmo tempo, ele critica a perspectiva desenvolvimentista dos