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4. O Corpo para Lacan

4.3. O Simbólico e o corpo

imaginárias.

Lacan (1953) propõe que “a intenção imaginária que o analista descobre ali [na análise] não seja por ele desvinculada da relação simbólica em que ela se exprime” (p.252). Nesse sentido, o fazer analítico passa pelo “despontar permanente da assunção que o sujeito faz de suas miragens” e “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas úlimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas” (1998, p.253).

Mesmo assim, há um progresso possível na condução da cura, já que segundo Lacan (1953), “nada deve ser lido nisso, no que concerne ao eu do sujeito, que não possa ser reassumido por ele sob a forma do [eu], isto é, na primeira pessoa”. (1998, p.252).

No que se refere ao tratamento, há todo um trabalho a ser realizado em torno do imaginário e das identificações. Ele consiste em fazer o sujeito reconhecer que ele se fala inicialmente a partir de suas construções imaginárias sobre si mesmo. Daí falarmos em um primeiro esvaziamento do imaginário e de suas associações abundantes. Essa seria a condução necessária para que o sujeito venha a deparar-se com o próprio desejo, que lhe escapa.

Tendo em vista uma alienação primordial, é passando do registro do Imaginário ao registro Simbólico, por meio do trabalho com o significante que o analista permite que advenha o sujeito, enquanto sujeito desejante.

4.3. O SIMBÓLICO E O CORPO

Presente na teoria lacaniana desde suas primeiras elaborações, o registro Simbólico, entretanto, só fica plenamente estabelecido em 1953. Segundo Roudinesco & Plon (1998):

Embora tenha surgido desde 1936, no comentário de Jacques Lacan sobre a noção de estádio do espelho, tomada de empréstimo do psicólogo Henri Wallon (1897-1962), o termo “simbólico” só foi conceituado a partir de 1953. Lacan então o inscreveu numa trilogia, ao lado do real e do imaginário. (p.714).

Os autores assinalam ainda que o Simbólico, termo extraído da Antropologia, é utilizado por Lacan para designar um “sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia” (p.714). Além disso, o Simbólico, conforme empregado por Lacan, possibilita fundamentar a eficácia de um tratamento que se apóia na fala.

Como se pode ler em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan (1953) estabelece a linguagem como o fundamento da prática analítica. Ao mesmo tempo, critica a “depreciação crescente de que a fala tem sido objeto na teoria e na técnica” (1998, p.255) e os seguidores de Freud que abandonam os fundamentos da fala.

Lacan (1953) considera que o afastamento do campo da linguagem “motiva mudanças de objetivo e de técnica” (1998, p.243) na Psicanálise, sendo responsável pela “deterioração do discurso analítico” (p.245). Ao mesmo tempo, sustenta que o analista corre o risco de equivocar-se ao enveredar por outros campos da experiência que, no entanto, não são idênticos à investigação do inconsciente freudiano, ou seja:

Trata-se da tentação que se apresenta ao analista de abandonar o fundamento da fala, justamente em campos em que sua utilização, por confinar com o inefável, exigiria mais do que nunca seu exame: a saber, a pedagogia materna, a ajuda samaritana e a mestria / dominação dialética. Torna-se grande o perigo quando, além disso, ele abandona sua linguagem, em benefício de linguagens já instituídas e das quais ele

conhece pouco as compensações que elas oferecem à ignorância. (1998, p.244).

Diferenciando a Psicanálise de qualquer tipo de ajuda samaritana, maternagem ou pedagogia, Lacan (1953) busca uma retificação no campo, afirmando que os descaminhos só podem ser corrigidos por um “retorno ao estudo, no qual o psicanalista deveria tornar-se mestre / senhor, das funções da fala”. (1998, p.245).

O autor também propõe que se resgate na experiência psicanalítica a ênfase no inconsciente e na sexualidade, termos que considera eclipsados pela difusão nos EUA da noção psicológica do Behaviorismo, absolutamente em desacordo a seu ver com a inspiração freudiana. Nesse sentido, Lacan (1953) analisa que,

de qualquer modo, evidencia-se de maneira incontestável que a concepção da Psicanálise pendeu ali [nos EUA] para a adaptação do indivíduo ao meio social, para a busca dos patterns de conduta e para toda a objetivação implicada na noção de human relations, e é realmente uma posição de exclusão privilegiada com respeito ao objeto humano que se indica na expressão, nascida lá mesmo, human engineering. (1998, p.247).

Afirma ainda que, “quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a Psicanálise dispõe apenas de um meio: a fala do paciente”. (p.248), recomendando a releitura do texto freudiano, pois:

a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada, (...) quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala. (1998, p.247).

Define-se, assim, a originalidade do método psicanalítico. Lacan (1953), estabelece ainda os elementos que constituem esse campo, situando que:

seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real. (1998, p.259).

Ao mesmo tempo, o que distingue o campo psicanalítico, é o fato de, através do discurso, operar sobre o inconsciente. Segundo ele:

O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. (p.260).

Nota-se também que o corpo como suporte do significante, porta-voz do sintoma histérico, “monumento” no qual o inconsciente se escreve, aí está incluído. Lacan (1953) localiza o discurso inconsciente e a verdade a ser resgatada :

-nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;

-nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência;

-na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter;

-nas tradições, também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história;

-nos vestígios, (...) cujo sentido minha exegese restabelecerá. (1998, p.260-261).

Afirmando o caráter essencial e de certa forma pré-existente da linguagem na constituição do sujeito, Lacan (1955-1956) considera que tudo que diz respeito ao sujeito, “ao comportamento do ser humano (...) e ao que quer que seja que ele se realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser submetido às leis da fala” (1988, p.100).

Onde situar então o aspecto animal e natural do humano?

Para Lacan (1955-1956), no que se refere à sexualidade, “as vias de acesso à regulação e à normalização no homem [estando atravessadas pela lei e pela linguagem] são mais complexas, e diferentes, em relação ao que observamos nos mamíferos e nos vertebrados em geral” (1988, p.100).

Em oposição ao pensamento de autores como Reich, que, como vimos, acredita na possibilidade de resgate do natural no homem, Lacan (1955-1956) critica as tentativas de se conceber o homem em seu aspecto animal, original. Para ele, não há nada de natural no sujeito. Em termos lacanianos, o humano nasce imerso na linguagem, marcado pelo registro Simbólico, no qual a Lei ocupa um lugar central desde o princípio, pois:

Se Freud insistiu a tal ponto no complexo de Édipo, que chegou até a construir uma sociologia de totens e tabus, é patentemente porque para ele a Lei está ali ab origine. Não se trata por conseguinte de se colocar a questão das origens – a Lei está justamente ali desde o início, desde sempre, e a sexualidade humana deve se realizar por meio e através dela.

Essa Lei fundamental é simplesmente uma Lei de simbolização. É o que o Édipo quer dizer. (1988, p.100).

Lacan (1955-1956) identifica uma etapa na qual o Simbólico se organiza no sujeito. Além de ser um momento da gênese do eu, ele pensa a própria introdução do sujeito na dimensão simbólica como testemunha da pré- existência da linguagem, pois,

a primeira etapa não é uma etapa que vocês têm de situar em alguma parte na gênese. Eu não nego, é claro, que o que se passa ao nível das primeiras articulações simbólicas, a aparição essencial do sujeito, não nos questione, mas não se deixem fascinar por esse momento genético. A criancinha que vocês vêem brincar fazendo um objeto desaparecer e tornar a aparecer, e que se exercita assim na apreensão do símbolo, mascara, se vocês se deixam fascinar por ela, o fato de que o símbolo já está ali, imenso, englobando-o por toda a parte, de que a linguagem existe, enche bibliotecas, transborda, rodeia todas as suas ações, guia-as, suscita-as, de que vocês estão engajados, que ela pode soliscitá-los insistentemente a todo o momento para que vocês se desloquem e sejam levados a alguma parte. Tudo isso vocês esquecem diante da criança que está se introduzindo na dimensão simbólica. Portanto, coloquemo-nos ao nível da existência do símbolo como tal, enquanto nós aí estamos imersos. (1988, p.98).

A ordem simbólica, portanto, pré-existe ao sujeito. Além de marcar o sujeito, ela permanece, ou seja, “subsiste como tal fora do sujeito”(p.115). Dessa forma, antes do nascimento do corpo biológico e da criança, o Simbólico já está presente no discurso e nas expectativas dos pais e do social. Paradoxalmente, após a morte, para além do corpo biológico, permanece o nome vivificado pelo símbolo. Como se pode ler no mesmo Seminário 3, Lacan (1955-1956) esclarece que

a ordem simbólica deve ser concebida como alguma coisa de superposto, e sem o que não haveria vida animal possível para esse sujeito estrambólico que é o homem. (...) A cada vez, com efeito, que encontramos um esqueleto, nós o chamamos humano se ele está numa sepultura. Que razão pode haver para pôr esses restos num recinto de pedra? Já é preciso para isso que tenha sido instaurada toda uma ordem simbólica, que implica que o fato de que um senhor tenha sido o Senhor Fulano na ordem social necessita que seja indicado na pedra dos túmulos. O fato de que ele se chamou Fulano ultrapassa em si sua existência vital. Isso não supõe nenhuma crença na imortalidade da alma, mas simplesmente que seu nome nada tem a ver com sua existência viva, ele a ultrapassa e se perpetua além. (1988, p.115).

Tendo em vista o papel do Simbólico na constituição do humano, Lacan (1953) especifica ainda que o cerne da função da fala na análise, “não é informar, mas evocar” (p.301). Afirma-se, assim, a importância do outro, como ouvinte fundamental, pois,

o que busco na fala é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta. Para me fazer reconhecer pelo outro, só profiro aquilo que foi com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele deve assumir ou recusar para me responder. (1998, p.301).

Nesse processo, o analista tem uma responsabilidade na medida que formula, por meio de sua fala, uma resposta, cuja função é, mais que aprovar ou rejeitar o discurso do sujeito, “reconhecê-lo ou aboli-lo como sujeito” (1998, p.301).

Ao mesmo tempo, ainda que o discurso se apresente de forma contraditória, a escuta do analista deve discriminar a fala vazia da fala plena. Lacan (1953) assinala que,

mesmo que não comunique nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo que negue a evidência, ele afirma que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, ele especula com a fé no testemunho. (1998, p.251).

Cabe ao analista, portanto, escutar em que parte desse discurso está o termo

significativo. O analista deve operar, justamente,

tomando o relato de uma história cotidiana por um apólogo que a bom entendedor dirige suas meias-palavras, uma longa prosopopéia por uma interjeição direta, ou, ao contrário, um simples lapso por uma declaração muito complexa, ou até o suspiro de um silêncio por todo o desenvolvimento lírico que ele vem suprir. (1998, p.253).

O analista pontua e dá sentido ao discurso do sujeito. Essa pontuação

oportuna, ele eventualmente pode fazer com a suspensão da sessão. Para

Lacan (1953, p.253), entretanto, a suspensão não é indiferente à trama do discurso. Ao contrário, ela “desempenha aí o papel de uma escansão que tem todo o valor de uma intervenção, precipitando os momentos conclusivos”.

Buscando a fala plena, Lacan (1953) propõe que se restitua à ela “seu pleno valor de evocação” (p.296). Ele não desconhece que o discurso pode veicular resistências, deslocamentos ou ser “objeto de uma erotização”. Lacan observa que a fala pode até mesmo “tornar-se objeto imaginário ou real do sujeito e, como tal, degradar sob mais de um aspecto a função da linguagem” (p.303). Mesmo assim, ele afirma que seria um erro excluir a linguagem da relação analítica, pois “esta perderia com isso sua própria razão de ser”, já que “a análise só pode ter por meta o advento de uma fala verdadeira e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação com o futuro” (1998, p.303). Assinala-se ainda que, mesmo enfatizando nesse momento de sua elaboração teórica o aspecto simbólico da linguagem, Lacan (1953) faz

referência ao corpo, ao sintoma, e à materialidade da linguagem, afirmando que

a fala, com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penis-neid, representar a torrente de urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento. (1998, p.302).

Assim, as articulações lacanianas possibilitam situar que o corpo, em sua vertente simbólica, é o corpo marcado pelo significante, no qual o inconsciente também se escreve e pode ser decifrado. Como sugere Nasio (1993), o corpo pensado a partir da linguagem é o “corpo falante”, isso significa que,

o corpo que interessa à psicanálise não é um corpo de carne e osso, mas um corpo tomado como um conjunto de elementos significantes. O corpo falante pode ser, por exemplo, um rosto, na medida em que um rosto se compõe de linhas, expressões (...). O adjetivo “falante” não indica que o corpo fale conosco, mas que ele é significante, ou seja que comporta significantes que falam entre si. (...) Quando um rosto suscita um sentimento, ele é um corpo-imagem; mas, quando o mesmo rosto desperta um dizer imprevisto [na análise], ele é um corpo-significante. (p.149).