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Recomendações técnicas: livre-associação e neutralidade

2. O corpo para Freud

2.6. Recomendações técnicas: livre-associação e neutralidade

LIVRE-ASSOCIAÇÃO E NEUTRALIDADE

Como dissemos, no que se refere à técnica, Freud percorre um longo caminho, abandonando o método catártico e a hipnose até fundar propriamente o campo psicanalítico. Ao mesmo tempo, estabelecendo a livre-associação como regra fundamental, ele funda a Psicanálise como um novo método de investigação do inconsciente e dos processos da vida mental.

Freud abandona as práticas médicas tradicionais, o exame do paciente, a hipnose, etc., nas quais o médico toca literalmente o corpo do paciente, passando a operar por meio da linguagem e do relato. A livre-associação

define, portanto, que o campo sobre o qual o analista incide é, através da palavra, o inconsciente.

A nova estratégia clínica impõe, portanto, precisões. Ao paciente é sugerida a livre-associação e ao analista cabe escutar, interpretar, mas também preservar a neutralidade no setting analítico.

Freud (1910 [1909] ) sublinha que, para a sondagem do inconsciente, um dos recursos técnicos é realmente a livre-associação de idéias. Ele indica que se deve pedir ao paciente que renuncie a qualquer crítica, “sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente” (CD-ROM).

Laplanche & Pontalis (1983) referem-se à livre-associação como “a regra que estrutura a situação analítica” (p.565). Tomada como regra fundamental, ela conduz à posição de neutralidade analítica.

Freud (1912) indica uma série de regras para o psicanalista que “se destinam a criar (...) uma contrapartida à regra fundamental da psicanálise estabelecida para o paciente” (1976, p.154). Algumas delas são: manter a atenção uniformemente suspensa diante do relato do paciente, não procurar registrar integralmente o material durante as sessões analíticas, evitar a ambição terapêutica e não se deixar guiar por valores, inclinações e expectativas pessoais.

A neutralidade do analista traz como conseqüência a abstinência como princípio e regra de seu trabalho. Em contrapartida, também existem medidas para exigir do paciente um certo estado de abstinência. Freud (1914b) indica a importância de fazer o paciente

prometer não tomar quaisquer decisões importantes que lhe afetem a vida durante o tempo de tratamento, por exemplo, não escolher qualquer profissão ou objeto amoroso definitivo, mas adiar todos os planos desse tipo para depois de seu restabelecimento. (1976, p.200).

Mas é no artigo Observações sobre o amor transferencial que Freud (1915 [1914] ) trata a questão da abstinência de forma explícita:

a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isto. Em vez disso, fixarei como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar mudanças. (CD-ROM).

Anos mais tarde, Freud (1919 [1918] ) retoma a proposição de que “o tratamento analítico deve ser efetuado, na medida do possível, sob privação – num estado de abstinência” (CD-ROM). Especifica, no entanto, que por abstinência,

não se deve entender que seja agir sem qualquer satisfação – o que seria certamente impraticável; nem queremos dizer o que o termo popularmente conota, isto é, abster-se da relação sexual; significa algo diferente, que tem muito mais conexão com a dinâmica da doença e da recuperação. (CD-ROM).

Considerando que “foi uma frustração que tornou o paciente doente”, e que “seus sintomas servem-lhe de satisfações substitutivas”, Freud (1919 [1918], CD-ROM) observa que o paciente “meio recuperado” pode fazer uma “escolha imprudente”, trocando a neurose por um casamento infeliz ou refugiando-se, por exemplo, na doença física. Nestas situações, recomenda que “a atividade por parte do médico deve assumir a forma de enérgica oposição a satisfações substitutivas prematuras”. Ele alerta ainda para o fato de que,

o paciente procura as suas satisfações substitutivas sobretudo no próprio tratamento, em seu relacionamento transferencial com o médico; e pode até mesmo tentar compensar-se, por esse meio, de todas as outras privações que lhe foram impostas.

Segundo Freud, algumas concessões podem ser feitas ao paciente, “em maior ou menor medida, de acordo com a natureza do caso e com a individualidade do paciente”, contudo, elas não devem ser excessivas, pois não se trata de oferecer ao paciente uma forma de “refugiar-se das provações da vida”, mas sim de “dar-lhe mais força para enfrentar a vida e mais capacidade para levar a cabo as suas verdadeiras incumbências nela”. Posto isso, Freud (1919 [1918], CD-ROM) finalmente defende uma “condição de privação” na análise afirmando:

no que diz respeito às suas relações com o médico, o paciente deve ser deixado com desejos insatisfeitos em abundância. É conveniente negar- lhe precisamente aquelas satisfações que mais intensamente deseja e que mais importunamente expressa.

Laplanche & Pontalis (1983), retomando as indicações de Freud, escrevem, de forma clara e concisa, sobre o chamado princípio (ou regra) de abstinência:

princípio segundo o qual o tratamento analítico deve ser conduzido de tal modo que o paciente encontre o menos possível de satisfações substitutivas para os seus sintomas. Implica para o analista a regra de se recusar a satisfazer os pedidos do paciente e a desempenhar efectivamente os papéis que este tende a impor-lhe. O princípio de abstinência pode, em certos casos e em certos momentos do tratamento, especificar-se em indicações relativas a comportamentos repetitivos do

indivíduo que dificultam o trabalho de rememoração e de elaboração. (p.23).

Esses autores lembram que, em Freud, a justificação da regra é de ordem essencialmente econômica, pois

o analista deve evitar que as quantidades de libido libertadas pelo tratamento se não reinvistam imediatamente em objetos exteriores; elas devem ser tanto quanto possível transferidas para a situação analítica. A energia libidinal acha-se ligada pela transferência, é-lhe recusada qualquer possibilidade de descarga diferente da expressão verbal. (p.24).

Mas existe também uma justificação do ponto de vista dinâmico. Segundo Laplanche & Pontalis (1983, p.24), “o fator propulsor do tratamento tem a sua origem na existência de um sofrimento por frustração”. Sendo o próprio motor do tratamento e da mudança, a frustração não deve ser atenuada por intervenções não analíticas que podem levar à “estagnação do tratamento”. Basicamente, segundo esses autores, “a noção de abstinência está implicitamente ligada ao próprio princípio do método analítico, enquanto este faz da interpretação o seu ato fundamental, em lugar de satisfazer as exigências libidinais do paciente”.

A questão do princípio de abstinência suscita discussões, já que pode ser equivocadamente considerada como um conjunto de medidas repressivas e pedagógicas do analista. Ela, entretanto, permite delimitar mais exatamente qual é o campo sobre o qual o analista incide, situando o enquadre que se propõe ao analisante.

Freud (1913), entretanto, chama as regras que indica de “recomendações” e não pretende “reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas”. Segundo ele:

A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz. (1976, p.164).

Além das condições de privação do paciente que devem ser mantidas durante o tratamento, Freud (1919 [1918]) acrescenta, ao “repertório de atividade desejável por parte do médico”, algo que considera extremamente importante. Apontando a dimensão ética do analista, ele afirma:

Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que isso é bom. (CD-ROM).

Laplanche & Pontalis (1983, p.24) ressaltam que para melhor encaminhar as discussões em torno da noção de abstinência,

parece que haveria interesse em distinguir nitidamente, por um lado, a abstinência como princípio e regra que se impõe ao analista – simples conseqüência da sua neutralidade – e, por outro, as medidas ativas pelas quais se exige ao paciente que se mantenha a si mesmo num certo estado de abstinência. (p.24).

Em relação ao analista, eles notam que a exigência de neutralidade “não implica nem garante uma soberana objetividade de quem exerce a profissão de

psicanalista” (p.405). Entretanto, esse profissional “que fornece interpretação e suporta a transferência deveria ser neutro, quer dizer, não intervir enquanto individualidade psicossocial; evidentemente que se trata aqui de uma exigência limite” (p.406).

Nota-se assim, como em Freud, o campo sobre o qual o analista incide é, através da livre-associação e da interpretação, o campo da palavra. Por mais que nele estejam incluídas as intensidades das demandas e dos desejos em jogo, trata-se de “não ceder” e de manter o motor da análise, fazendo operar uma postura essencialmente analítica.

Reich, como veremos, ao tocar o corpo real e buscar uma técnica mais

ativa na clínica, não segue de forma estrita as recomendações técnicas

freudianas. Preocupado com uma série de impasses que se observavam na condução das análises e buscando uma nova forma de trabalhar com seus pacientes, ele não privilegia a livre-associação, nem preconiza neutralidade, rompendo nesses pontos com os princípios fundamentais freudianos. Dessa forma, revê conceitos e dá origem ao novo campo da Psicoterapia corporal, no qual o manejo clínico da questão do corpo, das demandas do paciente e do próprio tratamento se distingue em vários pontos da perspectiva psicanalítica original.

Lacan, por sua vez, retomando Freud, aborda o problema da neutralidade em vários momentos de sua obra, reafirmando-o em sua perspectiva ética. Segundo Roudinesco & Plon (1998),

Se Freud se mostrava prudente quanto à possível obtenção de uma satisfação posterior pelo paciente, fruto de sua renúncia a um prazer imediato, Lacan pretendeu-se mais radical, questionando a fantasia de um “bem supremo” cuja realização marcaria o fim da análise. (p.5).

ela tem um alcance quanto à relação imaginária do analisando com o analista. Ser neutro, (...) seria, para o analista, evitar entrar no tipo de relações que em geral todos mantêm de forma voluntária, relações nas quais a identificação sustenta tanto o amor como a rivalidade. Todavia, o analista não pode evitar por completo que o analisando o instale nesse lugar, e precisa avaliar suas conseqüências, em vez de se contentar em preconizar a neutralidade. (p.147).

Sem dúvida, a questão da neutralidade é repensada a partir das teorias lacanianas do desejo e do significante. Para Chemama (1995, p.147), “se o desejo, por exemplo no sonho, aparece ligado a significantes privilegiados, (...) ou se o sujeito persegue ou evita os objetos e situações organizadas pelos significantes de seus sonhos”, não compete ao analista responder às bifurcações que o desejo comporta. Segundo ele, “a tarefa do analista é (...) permanecer mais no nível da questão”.

Isso não significa que o analista deva ser passivo, ou como coloca observa Chemama (1995, p.148), “que basta deixar que surjam os sonhos e as associações, sem de nenhuma forma imiscuir-se neles”. Para esse autor, o termo neutralidade talvez não tenha sido bem escolhido e a leitura que se fez dessa conceituação em Freud comporta mal-entendidos. É por isso que

se oporá à idéia de uma neutralidade do analista (ou mesmo de uma

neutralidade benfazeja, segundo uma forma que se impôs, mas que não

está em Freud), a de um ato psicanalítico, que explicaria melhor a responsabilidade da análise na direção do tratamento. (p.148).