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O outro na instauração do circuito pulsional

4. O Corpo para Lacan

4.2. O Imaginário e o corpo

4.2.2. O outro na instauração do circuito pulsional

Conforme visto, a imagem corporal tem um papel fundamental na constituição do sujeito, já que é a imagem especular que permite à criança estabelecer a relação de seu corpo e de seu eu com a realidade que a cerca.

Entretanto, o que há de mais essencial na assunção da imagem do corpo no espelho, é que a criança obtém nesse momento a autentificação e o reconhecimento desta imagem como de um sujeito.

Se há um processo de identificação no campo especular, na medida em que a criança assume determinada imagem de si mesma, ele não se reduz a isso, “pois nunca é com seus próprios olhos que a criança se vê, mas sempre com os olhos da pessoa que a ama ou detesta” (Chemama, 1995, p.58).

Portanto, para se constituir, é preciso que a criança seja objeto do olhar e tenha um lugar no campo do Outro, cujo reconhecimento, na medida em que a nomeia, permite seu acesso ao registro Simbólico.

Ao abordar as questões colocadas pela “clínica de uma não instauração da relação especular”, seja no autismo ou em quadros de carência materna parecidos com o de hospitalismo, Laznik-Penot (1991), na esteira de Lacan, alerta para a importância do olhar do Outro na instauração da imagem do corpo e na constituição de um psiquismo.

Fazendo referência ao olhar do Outro, papel normalmente sustentado pela mãe, Laznik-Penot (1991) se refere ao olhar no sentido de uma presença, “o olho signo de um investimento libidinal, muito mais que o órgão suporte da vista” (p.32).

Dessa forma, os acidentes na instauração do eu e do registro do Imaginário estão relacionados à não instauração de uma relação Simbólica fundamental. Segundo a autora,

esses casos clínicos que se acham confrontados com uma não-instauração da relação especular permitem (...), colocar em evidência patologias que traduzem certamente uma não instauração da relação simbólica fundamental – a presença/ausência materna – mas não por falha do tempo de ausência (como é freqüente na clínica de outros estados psicóticos), mas sobretudo por uma falha fundamental da própria presença original do Outro, tendo como conseqüência a impossibilidade da instauração do tempo constitutivo do imaginário, e então do eu, através da relação especular com o Outro. (p.33).

Além disso, Laznik-Penot (1991) aborda o fracasso da instauração da imagem do corpo e da relação especular como “fracasso do circuito pulsional”. Nesse sentido, pensar o enlaçamento do sujeito à dimensão do Outro e admitir que o sujeito do inconsciente se constitui no campo do Outro, implica pensar em um sujeito do inconsciente articulado e proveniente de um enlaçamento pulsional. Segundo a autora:

Em Lacan, desde então, a pulsão não é tanto mais um conceito limítrofe entre o biológico e o psíquico, mas articula bem de preferência significante e corpo. O corpo não é o biológico, é (...) uma construção que implica uma imagem totalizante i(a), na composição do qual o Outro como olhar tem um lugar fundamental. (p.42).

Nesse sentido, é através do Outro que a criança aprende a se reconhecer. Isto implica em pensar que seu desejo, tal como seu corpo, não é inicialmente vivido como seu, mas projetado e alienado no Outro. A criança inicialmente é o desejo da mãe. Assim, o grande impasse da relação dual

imaginária é esse de que não há o reconhecimento de dois desejos, dois sujeitos, mas de um desejo alienado no desejo do outro.

A saída para essa alienação é a entrada do Simbólico, pois é através dele que há o advento do sujeito, sujeito do próprio desejo, ali onde antes havia apenas o desejo da mãe.

De fato, o Imaginário como registro da identificação especular interpela e surpreende o sujeito à todo momento, não se limitando àquilo que devemos simplesmente fazer esgotar a partir do Simbólico.

Para Garcia-Roza (1988), há uma maior precisão possível ao se pensar o registro Imaginário como um momento subordinado à ordem Simbólica, pois, “diante dos três registros a que Lacan se refere – o imaginário, o real e o simbólico - , este último é que deve ser tomado como determinante” (p.213). Segundo ele:

Quando dizemos que a fase dual que caracteriza o imaginário é anterior ao acesso ao simbólico por parte do ‘infans’, isso não quer dizer que o simbólico esteja ausente. Apesar de a criança não ter ainda acesso à sua própria fala, ela é falada pelos outros, ela já surge num lugar marcado simbolicamente. Ela mesma não dispõe ainda de uma função simbólica própria, no entanto é, desde o seu nascimento e mesmo antes dele, “simbolizada” pelos outros. O imaginário não é, pois, autônomo em relação ao simbólico, mas um momento subordinado à Ordem Simbólica.(p.213).

Procurando situar o Imaginário em relação ao Simbólico, Quinet (1994) verifica que “ao simbólico corresponderá o furo, pois só existe a falta a partir do simbólico. Na ordem do imaginário, não é possível se falar nem em falta nem em furo – trata-se da totalização e portanto da ordem da ausência do furo” (p.46). Como no campo do Imaginário não há nenhuma saída possível pelos meios próprios ao imaginário, o processo analítico, tal como Lacan o entende,

é o lugar onde um sujeito pode aprender a se desprender de suas construções imaginárias.

Lacan (1953) propõe que “a intenção imaginária que o analista descobre ali [na análise] não seja por ele desvinculada da relação simbólica em que ela se exprime” (p.252). Nesse sentido, o fazer analítico passa pelo “despontar permanente da assunção que o sujeito faz de suas miragens” e “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas úlimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas” (1998, p.253).

Mesmo assim, há um progresso possível na condução da cura, já que segundo Lacan (1953), “nada deve ser lido nisso, no que concerne ao eu do sujeito, que não possa ser reassumido por ele sob a forma do [eu], isto é, na primeira pessoa”. (1998, p.252).

No que se refere ao tratamento, há todo um trabalho a ser realizado em torno do imaginário e das identificações. Ele consiste em fazer o sujeito reconhecer que ele se fala inicialmente a partir de suas construções imaginárias sobre si mesmo. Daí falarmos em um primeiro esvaziamento do imaginário e de suas associações abundantes. Essa seria a condução necessária para que o sujeito venha a deparar-se com o próprio desejo, que lhe escapa.

Tendo em vista uma alienação primordial, é passando do registro do Imaginário ao registro Simbólico, por meio do trabalho com o significante que o analista permite que advenha o sujeito, enquanto sujeito desejante.

4.3. O SIMBÓLICO E O CORPO

Presente na teoria lacaniana desde suas primeiras elaborações, o registro Simbólico, entretanto, só fica plenamente estabelecido em 1953. Segundo Roudinesco & Plon (1998):