• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1. UM OLHAR SOBRE O CORPO: O CORPO QUE FOMOS, O CORPO QUE SOMOS

2. REPRESENTAÇÕES DO CORPO – DO CORPO FÍSICO AO CORPO SOCIAL

2.1. O corpo físico

“O facto de ‘os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão’ serem os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias à sobrevivência do organismo, ou ainda o facto de que um sentimento depende da actividade num determinado número de sistemas cerebrais específicos em interacção com uma série de órgãos corporais, mais premente tornam a distinção entre aqueles fenómenos humanos referenciados como tais à actividade mental de um corpo expressivo de relacionações e as operações e componentes neurobiológicas da somaticidade de um corpo- relacionamento.”

(Prata, 1996)

Independentemente daquilo que somos, somos também corpos materiais que têm o seu lugar e o seu tempo. O corpo é definido usualmente em termos de corpo humano, a armação material do homem, visto como uma realidade orgânica.

Primeiras teorias sobre o corpo

O interesse na temática do corpo já remonta ao início da filosofia grega e a interesses que se alargam a domínios não fisiológicos. Maria João Cunha (2004), no seu trabalho sobre a imagem corporal, faz uma breve síntese destes primeiros olhares sobre o corpo. De facto, é no tempo dos primeiros filósofos que o corpo é celebrado, com as Olímpiadas, “que exaltam a saúde, a

energia e o equilíbrio corporais. Simultaneamente, desenvolvem-se teorias sobre um corpo limitado, encarcerador do espírito e carrasco do desenvolvimento do pensamento livre.” (Cunha, 2004, p. 21). Assim, o corpo era já central para Platão e Aristóteles, apesar da divergência de opiniões. Platão com uma concepção ascética e dualista, com uma filosofia de um corpo inimigo e desvalorizado, defendendo que até as próprias guerras e discussões seriam causadas pelo próprio corpo e pelos seus apetites. Aristóteles, por seu lado, não apoia uma ideia dualista, não distinguindo entre corpo e alma, distanciando-se, deste modo, de uma visão religiosa ou moral do corpo, encarando-o de forma ontológica. As primeiras abordagens do corpo culminam com o pensamento de Descartes, sendo o corpo para este filósofo uma afirmação da mente. O homem cartesiano estabelece a sua existência e os limites físicos através da existência e limites dos seus sentidos. “Penso, logo existo” articula o self identificando os seus sentidos, através dos sentidos do corpo. A biomecânica cartesiana vê o corpo como uma máquina que Deus criou para ser o mais útil possível, sendo impossível imaginar a interacção entre corpo e alma.

Uma outra área onde autores clássicos investiram desde cedo nesta temática é a Antropologia. E dentro desta podemos evidenciar uma vertente mais centrada em aspectos de natureza física (nas características inatas) e outra mais inserida nas Ciências Sociais. De facto, no séc. XIX a Antropologia surge embuída num contexto caracterizado por um positivismo metodológico, o que fez com que se valorizasse mais a questão das ‘medidas’ e menos a dos ‘significados’ que viria a ser mais desenvolvida já no século XX (e que será abordada mais à frente).

Primeiras abordagens do corpo como objecto de estudo

As primeiras tentativas de estudo do corpo enquanto objecto psicológico tiveram as suas raízes no domínio da Neurologia e Neuropsicologia, que se centraram no estudo das percepções corporais distorcidas causadas por danos cerebrais (Fisher, 1990; Grogan, 1999). Estes estudos partiram de inventários e classificações das diferentes formas de distorção da percepção corporal, tais como a negação da existência de partes do próprio corpo, dificuldades em distinguir o lado esquerdo e direito do corpo, atribuição de novas partes ao corpo, que eram apresentadas por pacientes portadores de danos cerebrais (fenómeno conhecido como o membro fantasma). Inicialmente, foram propostas relações lineares entre estas percepções distorcidas e lesões de zonas específicas do cérebro, que, embora não tenham sido muito bem sucedidas, contribuíram para chamar a atenção da investigação para a imagem corporal e as

suas repercussões na vida dos indivíduos. De acordo com as correntes neurológicas, tanto o agir como o sentir o corpo estão intimamente ligados à integração de uma série de aferências que dão ao corpo a sua unidade e lhe permitem criar um modelo. Este modo de conceber a vivência humana leva à valorização dos sistemas anatomo-fisiológicos identificando certas regiões cerebrais claramente localizadas (onde a lesão produz desorganizações na esfera corporal). A escola francesa deixou a sua contribuição com os estudos de Bonnier, o qual, em 1905, descreveu um distúrbio presente nos indivíduos com danos cerebrais, os quais sentiam que todo o seu corpo desaparecia (“esquematia” in Fisher, 1990). Witkin (1954 in ibidem), concluiu que a capacidade para fazer julgamentos espaciais e para separar um objecto do seu contexto perceptivo, estaria, de algum modo, ligada à percepção do corpo como uma entidade diferenciada. Wapner e Werner (1965) demonstraram como a percepção do objecto é influenciada pelas atitudes corporais e como a percepção do corpo é modificada consoante o contexto em que se situa. O trabalho destes autores contribuiu para um conhecimento mais detalhado acerca da percepção do tamanho do corpo, da capacidade em separar o corpo enquanto objecto perceptivo, diferenciado dos outros objectos, e acerca da relação existente entre a percepção do corpo e as diversas fases de desenvolvimento.

De entre diversos autores dessa altura, destaca-se o neurologista Henry, do London Hospital (1926 in Fisher, 1990), pelo seu contributo ao introduzir o conceito de esquema corporal e por ter sido o primeiro a construir uma teoria relativamente elaborada acerca de como as percepções corporais são integradas e unificadas. Para Head, o esquema corporal consiste num modelo construído pelo self, constituindo um padrão a partir do qual cada postura e movimento corporais são julgados, demonstrando que qualquer alteração postural pode mudar o esquema corporal. Considera, ainda, que o funcionamento deste esquema seria, em grande parte, inconsciente. Apesar de existir pouca especificação e clarificação acerca deste conceito, de como ele é organizado e como funciona, este foi amplamente generalizado, servindo como modelo explicativo em diversos domínios.

Uma abordagem aos estudos da Neurologia ficaria incompleta se não se enfatizasse o interesse recorrente do estudo do fenómeno do “membro fantasma”. Vários autores se têm debruçado neste domínio (ex. Head, Pick, Lhermitte ou Schilder), reforçando a existência de uma imagem cerebral do corpo. Estes referem que quando as pessoas continuam a experienciar um membro amputado como se ele lá estivesse, seria devido à existência de uma imagem central que ainda não se teria adaptado à perda e distorcia o significado dos estímulos por forma a negar essa

perda de alguma parte do corpo. Se a área cerebral responsável pela criação de uma determinada imagem do nosso corpo fosse alterada, a ilusão do membro fantasma seria abolida. Assim, se o indivíduo pode focalizar a atenção somato-sensorial numa parte do corpo (mesmo que seja ‘fantasma’ ou esteja completamente paralisada), sente-a como sua. Se, por outro lado o indivíduo não foca a atenção somato-sensorial, pode abdicar dessa parte do corpo, apesar desta ser visível, palpável.

O fascínio destes investigadores pela localização de locais centrais para a experiência corporal, numa dada região delimitada no cérebro, tem persistido e continua a encontrar expressão no trabalho de alguns neurologistas contemporâneos. Além disso, estes estudos têm tido importantes implicações no estudo e compreensão da experiência corporal; permitindo o inventário e classificação de distorções da percepção corporal, tornaram o estudo do fenómeno da imagem corporal cientificamente aceitável, encontrando um esquema cerebral responsável pela construção da imagem do corpo, pelas percepções corporais e a sua integração, propuseram relações lineares entre diferentes classes de percepções corporais distorcidas relacionadas com determinadas partes do cérebro. No entanto, deram pouca ou nenhuma consideração à forma como a experiência corporal estaria relacionada a variáveis da personalidade ou mais psicodinâmicas (com a excepção do neurologista Paul Schilder, do qual falaremos mais à frente neste capítulo).

De salientar, no entanto, que foi a partir da sensório-motricidade da organização tónica do homem que, por exemplo, Piaget e Wallon estabeleceram as bases das suas teorias. De facto, estes e outros autores, consideram os primeiros meses de vida não só como o ponto de partida para a realidade complexa que é a personalidade individual, mas também o período em que se modelam as actividades, as competências e a capacidade de interagir com o meio físico e humano. Este período é igualmente caracterizado pelo desenvolvimento de um esquema corporal progressivamente mais complexo e integrado, isto é, a criança vai adquirindo níveis básicos da experiência corporal, que envolve a percepção do corpo como um objecto no espaço. Para Wallon, 1934 (in Ajuriaguerra, 1977) o conhecimento é uma consequência da organização do sistema emocional e não se pode compreender senão através da relação com o outro e esta relação encontra as suas primeiras expressões nas reacções tónico-emocionais. Para Krueger (1990), por exemplo, o esquema corporal é a base do desenvolvimento do self e ocorre em três estádios do seu desenvolvimento; partindo das primeiras experiências sensório-motoras indiferenciadas da mãe; passando por uma consciência precoce da imagem corporal, com a

consciência das experiências internas e externas ao corpo, fase esta que coincide com o quarto estádio sensório motor de Piaget (1970), no qual a criança começa a desenvolver a sua capacidade imagética, o que lhe permite compreender o carácter distintivo do corpo em relação aos objectos e desenvolver a consciência da existência do espaço para além do corpo, incluindo o corpo dos outros; finalmente um terceiro estádio de definição e integração do self corporal, por volta dos 18 meses as experiências corporal e imagens corporais são organizadas e integradas num todo conceptual.

De facto, como refere Prata (1996), o ‘diálogo tónico’ é de resto a linguagem principal da afectividade, é nas relações com os outros, connosco próprios e com o mundo físico das coisas da nossa percepção, como são também o nosso corpo e o dos outros (enquanto corpos-objectos de percepção, com funções somáticas ou sociais) que nos desenvolvemos.

O corpo como objecto psicológico começou, desta forma, a ganhar importância nos ciclos convencionais da psicologia quando foi introduzido no contexto dos fenómenos percepcionais clássicos. A investigação neste âmbito, tem-se distribuído por diversas áreas, nomeadamente num conjunto de investigadores que se centraram nos aspectos desenvolvimentais da percepção espacial, como por exemplo, o já mencionado Piaget (1970), a definição de papéis sexuais (ex. Kohlberg, 1966), os padrões de atractividade (ex. Lerner, 1972), a maturidade corporal (Koff, Rierdan & Silverstone, 1978), a percepção de atracção do próprio corpo/ importância da aparência (ex. Cash, 1990; Cash & Labarge, 1996) ou a abordagem psicodinâmica do corpo iniciada com Freud, do qual falaremos mais à frente neste capítulo. Estas contribuições resultaram numa maior aceitação por parte dos psicólogos desenvolvimentais do papel do corpo no desenvolvimento e na vida das pessoas.

O estudo da aparência física

Quando observamos um corpo humano, o que os nossos sentidos captam é um objecto físico. O estudo científico acerca de como as nossas formas e atributos físicos, incluindo as nossas percepções somáticas, afectam as nossas vidas, tem proliferado bastante nos últimos anos. De facto, a psicologia tem-se debruçado na importância da aparência, como uma parte importante daquilo que somos para nós próprios e para os outros. Segundo Cash (1985), a psicologia da aparência física pode ser dividida em duas perspectivas distintas: uma é a “visão do exterior” – a visão das pessoas como objectos sociais – esta perspectiva tem avaliado as influências da

atractividade física nas percepções sociais, nas relações interpessoais e no desenvolvimento humano. A segunda perspectiva diz respeito à experiência individual e subjectiva dos próprios atributos físicos. Esta “visão do interior” engloba estudos do auto-conceito físico ou variáveis relacionadas com a imagem corporal.

Uma vez que neste ponto estamos a centrar a nossa análise num corpo físico e “exterior”, iremos rever alguns conceitos apenas relativamente à primeira perspectiva acima mencionada – como é que os outros percebem e reagem aos nossos atributos físicos e, num ponto seguinte deste capítulo, dedicado essencialmente às variáveis da imagem corporal, dedicaremos algum espaço a compreender como é que as pessoas percebem e reagem à sua própria aparência física. A aparência física é frequentemente a informação mais imediata que se tem acerca de uma pessoa e fornece informação básica acerca dessa pessoa, por exemplo, o sexo da pessoa, a raça, a sua idade aproximada e, possivelmente o seu estatuto socioeconómico ou profissão. Na realidade, nós criamos expectativas e agimos, muitas vezes, inconscientemente classificando as pessoas em determinadas categorias ou protótipos. Estes pressupostos implícitos medeiam, frequentemente, as relações interpessoais, através da maior ou menor proximidade e/ou comportamentos (Cash, 1990; Dion, Berscheid & Hatfield, 1972).

Muitos investigadores têm realizado centenas de estudos avaliando de que forma variáveis relacionadas com a aparência física, como a atractividade física, o peso, a altura, características faciais ou cuidados estéticos, são percebidas e afectam sistematicamente atitudes sociais, atribuições e comportamentos. A maioria da literatura focalizada nos estereótipos de aparência, centra-se no estereótipo social de que o “belo é bom” e o “feio é mau”. Por conseguinte, e porque nos encontramos numa sociedade regida pelos valores ocidentais de beleza, iremos contextualizar brevemente o desenvolvimento dos ideais de beleza física que a cultura ocidental tem sofrido ao longo do tempo, numa tentativa de situar a crescente preocupação com a aparência nos padrões culturais de magreza actuais e de que forma esses estereótipos de beleza se desenvolvem e se traduzem em comportamentos diferenciados.

Algumas destas questões serão analisadas nos próximos pontos, onde se procurará explorar a noção de um corpo subjectivo, o conceito de imagem corporal e a sua influência no desenvolvimento humano, alargando esta abordagem a um corpo não meramente físico, mas subjectivo e construído psíquica e socialmente.