• Nenhum resultado encontrado

O conceito de Imagem corporal – ontem e hoje

CAPÍTULO 1. UM OLHAR SOBRE O CORPO: O CORPO QUE FOMOS, O CORPO QUE SOMOS

3. IMAGEM CORPORAL: REUNINDO O BIOLÓGICO, PSICOLÓGICO E SOCIAL

3.1. O conceito de Imagem corporal – ontem e hoje

Implícita ou explicitamente a concepção de imagem corporal como hoje a entendemos já figurava fortemente nas noções psicanalíticas de subjectividade, psique ou soma. No entanto, apesar de uma longa tradição de investigação ou escrita (médica) sobre este tópico, é Paul Schilder, nos anos 20, que torna mais clara a noção de imagem corporal, integrando as noções fisiológicas, psicológicas e socais do ser humano num conceito único. Psiquiatra e neurologista, mas com interesses multidisciplinares, Schilder desde cedo se fascinou pela variedade de fenómenos invulgares associados ao corpo. Rapidamente decidiu que as disfunções da experiência corporal, associados a danos cerebrais necessitavam de ser analisadas não só em relação à fisiologia cerebral, mas também num quadro psicológico mais vasto. Na sua obra A Imagem do Corpo (1999; original de 1935 - “The Image and Appearance of the Human Body”), realça uma abordagem multifacetada ao fenómeno da imagem corporal, analisando a imagem corporal não só no contexto “orgânico”, mas também psicanalítico e sociológico. De facto o conceito de imagem corporal definido por Schilder é bastante eclético; inclui elementos conscientes e inconscientes, todas as variedades de sensações corporais, enfatiza a imagem corporal como um constructo não somente cognitivo, sendo também um reflexo de atitudes e interacções com os outros, introduzindo a ideia de que as variáveis relacionadas com a imagem corporal têm uma pertinência central não só para a patologia, mas para as situações diárias e habituais da vida (enfatizando o papel mediador do corpo desde as escolhas da roupa que usamos até à capacidade de empatizar com as emoções dos outros). Foi além das perspectivas neurológicas clássicas, considerando que as distorções da experiência corporal não podiam ser

analisadas apenas à luz da fisiologia cerebral, tendo que se estender a um quadro conceptual mais vasto, uma realidade psico-fisiológica em constante mudança. Pegou no modelo de corpo descrito previamente por Head e Holmes (1911-12), tornando-o num fenómeno psicológico, referente à unidade corpórea ou o corpo caracterizado pela Psicologia “normal”. Paul Schilder foi, sem dúvida, um grande percursor nesta área, na medida em que demonstrou curiosidade por quase todas as variáveis da experiência corporal, nomeadamente o impacto que a imagem corporal tem na socialização com os outros, a forma como se lida com o toque, o sentirmo-nos atraentes ou não, o rir ou chorar, a intimidade sexual, a forma de vestir, a forma como nos relacionamos com aqueles que nos são próximos, etc.

O conceito de corpo foi passando de um corpo estreitamente ligado à biologia para um corpo mais subjectivo, da psicologia e psicanálise. De facto, Schilder, tal como Freud, atribuiu uma grande importância aos sentimentos e primeiras sensações corporais com o mundo, no entanto, difere de Freud em dois pontos; por um lado, rejeitou a ideia de um instinto de morte que pretende a dissolução do corpo; por outro lado, coloca mais ênfase na imagem corporal como uma entidade em mudança (Fisher, 1990). Embora assumisse a centralidade das “zonas erógenas”, Schilder refere que à medida que as pessoas são confrontadas com novos estímulos e relações, a proeminência destas zonas muda, tal como os significados, tamanho e intensidade de outras áreas do corpo (ex. musculatura, vísceras) que considera serem importantes influências na imagem corporal. De facto, este autor abre caminho para a maioria das grandes linhas de investigação na experiência corporal mais recentes, nomeadamente a importância da percepção das formas corporais, da preocupação com a aparência e beleza físicas (mais tarde estudados por Secord e Jourard, 1953), a exploração dos efeitos do exercício e da dança na experiência corporal, a importância da cultura na construção da imagem corporal (embora Schilder não explore com muito detalhe o impacto da sociologia do corpo, pois esteve muito mais centrado na natureza dinâmica da construção da imagem corporal (Hanley, 2004) ou ainda abrindo caminho para a compreensão da formação da subjectividade na era pós-moderna, servindo de suporte para o pensamento fenomenológico.

A partir dos anos 40 e 50, o conceito de imagem corporal tem sido alvo de diversas nomenclaturas, no entanto, parece simplista uma noção unidimensional do conceito, sendo cada vez mais óbvia uma definição mais complexa e multidimensional (Cash & Pruzinsky, 1990). A utilização do termo “imagem corporal” começa a surgir e com ela algumas considerações a respeito de qual seria o termo correcto: esquema ou imagem corporal. Houve uma

predominância do termo ‘esquema corporal’ na neurologia e de ‘imagem corporal’ no âmbito da Psicologia, mais ligada à vivência afectiva do nosso corpo. Com efeito, as informações recebidas pelo nosso sistema proprioceptivo (receptores específicos localizados nos mais diversos pontos do corpo), obtidas nos sucessivos actos de percepção ecológica, são memorizadas, o que permite ao sujeito representar o seu corpo de diversas maneiras. O esquema corporal seria então uma dessas representações, uma espécie de representação cartográfica do corpo. Françoise Dolto (1984 in Ribeiro, 2003) precisa a este respeito que em iguais condições de idade e de clima o esquema corporal seria, em princípio, o mesmo para todos os indivíduos; pelo contrário, a imagem do corpo é própria de cada um, está ligada ao sujeito e à sua história.

Todavia, foi no âmbito das perturbações alimentares que o conceito de imagem corporal se tornou alvo de particular interesse, não só académico, mas também ao nível do sendo comum. Tem sido um importante e útil constructo para a compreensão das perturbações alimentares, sendo de salientar os trabalhos clássicos de Bruch (1962), Russell (1970) e Slade e Russell (1973), que se focalizaram na existência de uma imagem corporal distorcida como aspecto central da sintomatologia da anorexia nervosa (Thompson, Heinberg, Altabe, & Tantleff-Dunn, 1999). No entanto, a investigação tem evidenciado também a existência de distorções na imagem corporal em indivíduos sem perturbações alimentares, sendo já pervasiva a ideia de que a maioria das pessoas, especialmente mulheres se preocupam bastante com a sua aparência (ex. Cash, Winstead, & Janda, 1986; Thompson, & Thompson, 1986).

Esta focalização nas facetas “patológicas” e “normativas” da aparência, da imagem corporal, tem gerado bastante interesse, optando-se por um modelo continuum para conceptualizar a imagem corporal, com níveis de perturbação que vão desde nenhuma até ao extremo (onde se incluem as perturbações alimentares), com a maioria das pessoas a situarem-se no meio desta distribuição, experienciando preocupações e insatisfação moderadas com o seu corpo (Thompson et al., 1999).

Quando as pessoas pensam em imagem corporal, pensam em aspectos relacionados com a aparência e a beleza físicas, mas o conceito de imagem corporal é muito mais do que isso. Como referimos anteriormente, Cash (1985) divide o estudo da aparência em duas perspectivas, uma já abordada anteriormente, que diz respeito à visão do corpo como objecto social (“visão exterior”) e outra respeitante à dimensão subjectiva e “interior” da aparência, estudos esses associados à noção de imagem corporal. Deste modo, imagem corporal tem sido globalmente

aceite como a representação interna que temos da nossa aparência, a percepção única que temos do nosso corpo (Garner & Garfinkel, 1981; Garner, 1997). As imagens sociais de aparência não são idênticas às imagens corporais pessoais, as pessoas interagem com as suas próprias imagens, criando os seus significados, construídos na relação entre os contextos sociais e aqueles da esfera mais privada das relações com o seu self-corporal.

Garner (1997) define a imagem corporal como a representação mental de nós próprios; é o que nos permite contemplarmo-nos; influencia activamente muitos dos nossos comportamentos, a nossa auto-estima e o desenvolvimento de psicopatologias. Refere ainda que “As nossas percepções corporais, os nossos sentimentos e crenças, governam a nossa vida, planeiam quem conhecemos, com quem casamos, a natureza das nossas interacções, o nosso nível de conforto dia a dia. Com efeito, “o nosso corpo é o nosso cartão de visita, providenciando aos outros as primeiras e muitas vezes as únicas impressões.” (p.1). Esta definição remonta ao Gestaltismo que estuda fenómenos neurológicos e acredita que existe uma representação mental das informações corporais.

Este conceito de imagem corporal, como uma representação mental de informação com consequências processuais, tem sido equiparado por alguns investigadores ao conceito de uma estrutura cognitiva. Muitos estudos têm testado esta visão cognitivista de imagem corporal, relacionando as cognições que cada um tem de si próprio com as perturbações alimentares (Forston & Staunton, 1992; Strauman, Vookles, Berenstein, Chaiken, & Higgins, 1991), outros investigaram como é que os processos cognitivos ocorrem com informação ligada ao factor peso da imagem corporal (Cooper & Fairburn, 1992; Long, Hinton, & Gillespie, 1994; Markus, Hamill, & Sentis, 1987). Altabe e Thompson (1996) conduziram um estudo para averiguar de que forma é que a imagem corporal actua como uma estrutura cognitiva, verificando que a activação do esquema de imagem corporal parece criar uma mudança no humor, tendo consequências como a depressão ou a ansiedade. Outra propriedade desta representação mental é que a comparação social parece levar à activação de um esquema do corpo negativo, resultando em mudanças no humor. A terceira propriedade que estes autores apontam para o esquema de imagem corporal é a estabilidade, apontando para uma mudança de humor após um mês depois de ter sido activado. Estes estudos parecem suportar a interpretação da imagem corporal como uma representação mental, seguindo a teoria da Gestalt (uma representação global, influenciada por diversos factores).

A avaliação de cada um destes componentes conduziu à criação de metodologias que vão desde os questionários aos instrumentos laboratoriais, como o recurso ao vídeo ou ao computador.

Kevin Thompson e seus colaboradores no seu trabalho “Exacting Beauty” (1999) apresentam algumas das definições que têm sido utilizadas quando se fala em imagem corporal, oferecendo uma espécie de guião na compreensão da semelhança ou distinção destes conceitos. Assim, noções como preocupação com o peso, com a aparência e com o corpo podem ou não representar finalmente o mesmo tipo de imagem corporal, dado que, por exemplo, “aparência” tem um significado corporal mais extenso que “peso”. Além disso, esquema corporal e percepção corporal podem estar relacionados com definições mais específicas (estes termos são geralmente usados pelos investigadores interessados nos modelos de distorção do processamento cognitivo).

Finalmente, um outro domínio bastante associado ao conceito de imagem corporal é o de auto- conceito físico12, um constructo multidimensional, apresentando diversas facetas e definições

que, segundo alguns autores incluiria o conceito de imagem corporal, de entre outras dimensões como o esquema corporal e o conhecimento do corpo (Williams, 1983) ou a aparência e aptidão/competência físicas (Marsh, 1986; Faria, 2005).

A imagem corporal hoje…

Em suma, as contradições e as dificuldades no estudo da imagem corporal apontam para a necessidade de ampliar a nossa compreensão sobre o tema. A imagem do corpo condensa o “conjunto de representações, sentimentos, atitudes que o indivíduo elaborou acerca do seu próprio corpo ao longo da existência”, através de experiências não apenas sensoriais e cognitivas, mas também afectivas e sociais (Bruchon-Schweitzer, 1990, p. 173-174; Cash & Pruzinsky, 1990, 2004). Será, assim, uma construção biopsicossocial, parcialmente determinada por, mas não reduzida a, um corpo físico e objectivo (Rierdan & Koff, 1997), salientando-se a vivência dinâmica e emocional de um corpo emboído de significados, construídos ao longo do tempo e baseados nas experiências vividas. Com efeito, a imagem corporal não é um objecto concreto, mas uma abstracção intelectual, uma construção teórica em constante dialéctica com o

12 O auto-conceito físico será um dos domínios do auto-conceito global, que inclui diversas dimensões da existência, como a académica, a social e a física. Este tem sido definido em termos gerais como a percepção que o indivíduo tem de si próprio, as suas atitudes, os sentimentos e o auto-conhecimento acerca das suas capacidades, competências, aparência física e aceitabilidade social (Faria, 2005; Faria & Fontainne, 1990).

ambiente, onde podemos encontrar sinais de emoções pessoais, sociais e culturais (Lorenzi, Hardoy, & Cabras, 2000). O corpo não será conceptualizado como um mero veículo do self, mas como fazendo parte de uma dependência mútua corpo-self (Frank, 1998).

Assim, aqui imagem corporal não se cinge a uma imagem visual do corpo, mas sim à sua representação mental. O cerne das investigações a este respeito está, actualmente, em busca de informações sobre quais as regiões cerebrais que participam nos comportamentos complexos específicos e como estes podem ser decompostos em operações mentais mais simples para serem estudados (ex. ver o trabalho de António Damásio, 2004 que avança para uma neurobiologia da consciência). No caso da imagem corporal temos um fenómeno tão complexo que será difícil decompô-lo em operações mentais mais simples.

De facto, tudo se conecta a tudo. Neste sentido, um corpo possui uma identidade singular e é sempre um corpo humano existindo ao mesmo tempo em todos os seus aspectos (fisiológico, afectivo e social). Assim, cada estímulo existe para nós à medida que corporalmente o vivenciamos, de acordo com as nossas possibilidades fisiológicas, características pessoais e circunstâncias socais e ambientais (Tavares, 2003). A emoção será exactamente o meio pelo qual o corpo entende e se expressa. Este corpo possui memória e, consequentemente, história e identidade, sendo a representação dessa identidade corporal a que chamamos imagem corporal. Neste sentido podemos entender melhor Alferes (1987) quando refere que o corpo é aquilo que de menos biológico possuímos.

Considerando estas reflexões acerca do significado de imagem corporal, corpo e as suas relações, esperamos ter deixado claro o porquê de assumirmos o termo de imagem corporal em detrimento de tantos outros, como esquema corporal, consciência corporal, auto-imagem ou percepção corporal, aparência física que, frequentemente, são utilizados como sinónimos. Podemos afirmar na realidade que não existe uma entidade chamada de Imagem Corporal, uma vez que toda a investigação indica que a experiência corporal é multidimensional, além de que engloba aspectos que facilmente estão disponíveis na nossa consciência e outros que se escondem em níveis inconscientes. Adicionada a esta complexidade existem diferenças desenvolvimentais e de género importantes na forma como estas experiências corporais são organizadas. Neste sentido, podemos ficar satisfeitos ao entendermos a imagem corporal apenas de forma aproximada e limitada, reconhecendo que não alcançaremos a compreensão total e completa do tema, o que não diminui o mérito dos desafios e das novas descobertas.

4. O CORPO EM TRANSFORMAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA: O que nos diz a