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3 Dois anúncios e uma possível leitura

3.3 Cotejando os textos

Sabemos que os sons, as imagens, os ruídos, os textos verbais, a ilusão de movimento dos filmes recriam o mundo. E o mundo dos clientes dos estabelecimentos aqui analisados é totalmente diferente.

Por um lado, o universo dos consumidores da Casas Bahia representa a pressa e o movimento, o que é visto através das cenas em que as personagens se aglomeram numa busca para adquirir produtos com preço baixo. O texto reforça o ideal capitalista, mas maquiando-o, pois parece prometer que a loja nem terá tanto lucro assim devido às inúmeras promoções. A empresa promete ao espectador a possibilidade de ―tirar vantagem‖ de sua ―generosidade‖. E para isso, o espectador sabe que terá que se sujeitar a comprar em um lugar cheio de gente, o que, aliás, para esse auditório é um bom sinal – a grande demanda indica uma precificação acessível.

O shopping, por outro lado, cria uma ambiência de calmaria, voltada para o andar lento, de bicicleta, para a leitura, o conforto. O convite para frequentar o espaço de compras sobrepõe-se a um convite escancarado a comprar algo de lá. As compras ficam sutilmente sugeridas nas imagens das sacolas, como dissemos. A venalidade fica em segredo.

A Casas Bahia não mostra imagens da arquitetura da loja, pois não é isso que terá importância para seus clientes. O shopping sim. A valorização da aparência deste último faz diferença para seus frequentadores. A caracterização ―Único em São Paulo‖ vai de encontro com a expressão ―As

lojas estarão lotadas‖ da Casas Bahia. São muitas lojas, cheias, enquanto o shopping é único e tranquilo.

Para o público do shopping, a proximidade é tida negativamente como excesso de intimidade e envolvimento, deselegância. Já para o público da Casas Bahia essa aproximação – que produz efeitos da própria oralidade –, a descontração são tidas como positivas, justamente porque sugerem afetividade, sensorialidade, cumplicidade. De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros, esses efeitos de oralidade nas propagandas são empregados às camadas menos prestigiadas da sociedade ―a que o senso comum e as pesquisas de opinião atribuem sensibilidade mais aguçada aos valores emocionais e sensoriais‖ (2010, p. 13).

O vídeo do shopping não demonstra tensão. O da Casas Bahia é bastante tenso, tanto nas imagens de aglomeração e de pressa, como na competição entre quem chega primeiro para adquirir as mercadorias, o que é confirmado no hiperbólico texto verbal. Os excessos estão no plano da expressão – voz alta, muita gente ocupando o mesmo espaço, letras em caixa alta, quantidade de produtos e de caminhões – e chegam até o plano do conteúdo.

E como o discurso avalia positivamente ou negativamente as imagens, em ambos os textos, as imagens são eufóricas, já que estão de acordo com os julgamentos morais de cada discurso: a aglomeração e os excessos do vídeo da Casas Bahia são valorizados por seu público-alvo, são desejáveis, assim como a discrição, a ostentação, a privacidade do shopping são desejados por seu auditório.

O sujeito enunciador de ambos os textos apresenta-se como amigo, aquele que partilha crenças com o destinatário. No caso da Casas Bahia, a aparência de amizade é vista na maneira como o ator principal olha e se comunica com o enunciatário, no alerta sobre os preços bons da loja, no conselho para que se chegue cedo no dia do saldão. No discurso do shopping, o ethos amigo do enunciador é visto na preocupação em criar e ampliar um local que tanto agradará aos que admiram o luxo e o conforto.

O primeiro anúncio aqui analisado, assim como fazem tantos programas televisivos voltados para a classe popular, lança mão de recursos como a hipérbole, o andamento acelerado, o registro popular linguístico, construindo um ethos do enunciador franco. O segundo anúncio por nós observado funciona como nos programas voltados para classes economicamente mais abastadas: o figurino é de classe média alta, o ethos reforça a instituição familiar e tem, ainda, como valores essenciais a elitização, o savoir-vivre.

O modo de vida ressaltado no anúncio da empresa varejista é o do cotidiano; nele, valoriza-se o saber comum e predomina a função utilitária. O modo de vida destacado pelo shopping é o intelectual e artístico e predomina a função estética; valoriza-se o saber erudito. Isso pode ser visto nos termos: ―charme‖, ―qualidade de vida‖, ―casarão de época‖, ―patrimônio histórico e cultural‖, ―pólo cultural‖ e pelo uso do termo francês ―Boulevard‖, empréstimo que denomina um pátio com lojas. Observemos o que Antônio Sandmann considera sobre o uso de empréstimos linguísticos: ―Para vender o produto ou o serviço eles usam os meios considerados mais adequados, os que mais eficientemente atingem o alvo. Se griffe é mais chique, mais requintado, mais exótico do que marca, griffe vai ser usado‖ (2010, p. 51). É o que ocorre no anúncio em questão. Por esse uso, pressupõe-se que o público-alvo sabe o que é boulevard e, mais ainda, considera que esse nome é mais requintado.

Enquanto o texto verbal da Casas Bahia, condicionado pela classe social a que se dirige, visa à transparência e ao pouco esforço de leitura na recepção, com uma escolha lexical generalizada, considerada relevante para e pelos membros dessa comunidade linguística, o texto do shopping vale-se de um vocabulário compreendido e utilizado por um número reduzido de falantes. Sobre isso, Nelly de Carvalho considera:

O jogo é sempre o mesmo: no momento da comunicação, entender um signo é construir uma linha de demarcação entre os que compartilham o sentido evocado e os que ficam excluídos. O implícito (cultural) desempenha um papel decisivo, impondo uma fronteira eficaz e discreta entre os que compreendem e os que não compreendem o sentido total da mensagem. A fronteira cultural não é

apenas a das nações, nem sequer a da língua. No interior de uma língua, alguém pode se sentir estrangeiro. (2010, p. 98).

No comercial da Casas Bahia e na elitização do comercial do shopping fica escancarada a injustiça social. O leitor do primeiro anúncio provavelmente se sentirá um estrangeiro diante do outro vídeo.

As fronteiras culturais e econômicas de um público para outro e, consequentemente, de um anúncio para outro, fazem com que esses textos se utilizem de estratégias tão diferentes. E essa diferença é persuasiva, como afirma Aristóteles:

O maior e mais eficaz de todos os meios para poder persuadir e aconselhar com sabedoria é conhecer todas as constituições e distinguir seus costumes, instituições e tudo quanto traz vantagem a cada uma delas. Todos os homens se deixam persuadir pelo que é vantajoso. (ARISTÓTELES, s/d, p. 57).

Para os clientes da Casas Bahia, o vantajoso é o baixo preço e as condições facilitadas de pagamento e é exatamente isso que está sendo oferecido em seu texto. Já os frequentadores do Shopping Pátio Higienópolis consideram vantajoso ir a um lugar amplo, luxuoso, tradicional, sem grandes agrupamentos de pessoas. Como as imagens mostram que será exatamente isso que o local irá oferecer, o caminho para a persuasão está aberto.

Notamos que o primeiro anúncio aqui analisado não aparenta direcionar- se especificamente para um público feminino ou masculino. Ele é voltado para um espectador mais genérico nesse sentido, traçado muito mais pela condição econômica do que pelo sexo. O segundo anúncio enfatiza visualmente a mulher como público-alvo, mostrando a típica imagem feminina moderna, a mulher que vai às compras, que tem seu lugar no mercado de trabalho, que cuida da família e da própria aparência. Aliás, a aparência das mulheres neste vídeo não condiz muito com a diversidade de perfis femininos de uma

sociedade – aqui, elas são sempre belas, jovens, sorridentes, esbeltas –, mas condiz com os desejos da maioria das pessoas em ser eternamente jovem.

Considerações finais

A partir da observação desses pontos de análise, podemos depreender que a persuasão é instituída nos textos por meio de mecanismos variados, como o uso de diferentes linguagens, escolhidas e organizadas pelo enunciador, aparentemente, não para impor, mas para sugerir que os enunciatários atendam ao que se pede.

Esse arranjo dos vídeos não só existe para anunciar promoções ou para dizer que um shopping deve ser visitado. Ele é de tal forma argumentativo, que chega a ser capaz de levar os auditórios à conclusão de que a Casas Bahia é a melhor empresa para se comprar, e que o Shopping Pátio Higienópolis é o melhor de São Paulo. Os recursos retóricos desses textos não são apenas aqueles inerentes a qualquer linguagem; aqui, são indispensáveis, pois funcionam como ferramenta de persuasão. De fato, como se trata de textos publicitários, que têm como finalidade maior elevar as vendas dos anunciantes, isso não poderia ser diferente.

O processo criador é, pois, visto como uma atitude axiológica, em que há uma empresa que sabe o que é esperado por seu público-alvo e que, portanto, cria seu texto para persuadi-lo.

Ambos os anúncios pressupõem recompensas muito desejadas por seus auditórios. A ida ao shopping é fantasiosa, explora a utopia, o mundo ―perfeito‖, fazendo esquecer a dura realidade da vida – principalmente em uma cidade como São Paulo, em que o trânsito e a insegurança, por exemplo, permeiam todas as atividades –; promove o prazer, a tranquilidade. É como se esses problemas milagrosamente não existissem mais. Eles desaparecem retoricamente. O texto cria necessidades psicológicas de status, de poder gastar. Poder gastar está implícito no anúncio.

O anúncio da Casas Bahia pressupõe o contrário; o que está implícito é que o público não pode comprar. E é aí que entra a empresa anunciante, como ―salvadora‖, detentora da solução desse ―problema‖, pois ela, com todas as

suas promoções, fará com que seja possível a obtenção de mercadorias, antes quase impossíveis de serem adquiridas.

As imagens de pessoas saudáveis, alegres e que podem comprar – seja o que for e sejam quais forem as condições e/ou quantidade – coincidem com os anseios da sociedade de consumo e os dois textos remetem a essa possibilidade.

Na orquestração de elementos argumentativos, a persuasão permeia todo o discurso publicitário. Pela análise, verificamos o quanto esse tipo de discurso é autoritário: não permite interpretações variadas, não deixa espaço para que se pense em não ter o que as demais pessoas têm; não admite que se creia que os anunciantes não sejam bons. É um discurso que confirma as estereotipias já postas na sociedade. E pode ser, também, elitista, como nos mostra o anúncio do shopping, que deixa bem marcada a divisão entre os que compreendem o sentido total da mensagem e os que não compreendem.

Soma-se a isso a didaticidade proposta pelo meio em que são veiculados, a TV, que facilita o entendimento dos valores propagados nas escolhas, nos comportamentos e no modo de ver o mundo dos espectadores. Nesta conjuntura, a porta está aberta para que se perpetuem diversos valores coletivos perversamente cristalizados, mas que a magia do discurso publicitário mascara, sobrepondo às diferenças sociais uma retórica que elege um auditório, que se sente privilegiado em atender o principal objetivo desses textos: o de fazer fazer, o de aumentar as vendas dos anunciantes.

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