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Ideologia e propaganda: muito além da relação compra/venda

2 O discurso publicitário

2.7 Ideologia e propaganda: muito além da relação compra/venda

As propagandas apresentam aquilo que oferecem como necessidades inquestionáveis. Elas tentam aumentar nossa dependência pelos produtos, em vez de nos livrarem deles – o que às vezes é necessário, é mais saudável. Mascaram até sensações de dor, como por exemplo cólicas, depressão, para dizer que um absorvente resolve todos os problemas da mulher. Produtos de beleza negam totalmente as características de determinadas pessoas: oferecem algo para alisar os cabelos de uma mulher negra, impedindo-a de aceitar sua aparência. Vestergaard e Schroder compreendem a ideologia na propaganda da seguinte maneira:

Ao nosso ver, os processos semânticos da redução dos problemas e a imposição de uma normalidade de comportamento são os mecanismos de maior conteúdo ideológico da propaganda, desde que por ideologia compreendamos as estruturas de significado que desfiguram os fenômenos, estados e processos da nossa cultura ou

que afirmam ou pressupõem a naturalidade e a inevitabilidade desses fenômenos, estados e processos. (2004, p. 223).

É fazendo com que determinados comportamentos pareçam normais e aparentando reduzir os problemas que a ideologia se instaura sutilmente em nossos pensamentos e ações. E quanto mais sutil for esse processo, mais penetrante ele parece ser, pois passa como imperceptível e condizente com o que é comum e aceito por todos. Para Vestergaard e Schroder, os processos ideológicos mais ―prejudiciais‖ são aqueles que impõem um fenômeno, uma crença, como algo muito natural: ―as mensagens que, envoltas por uma aura de puro ‗senso comum‘, não só procuram deter ou reverter a mudança social em andamento como pressupõem que semelhante mudança é impossível‖ (ibidem, p. 226). Eles ainda acrescentam: ―[...] a ideologia pertence ao domínio do senso comum e, por sua vez, o conceito do senso comum nos permite alcançar a essência da ideologia como aquilo que é ao mesmo tempo visível para todos e invisível por seu caráter óbvio‖ (p. 227).

Nas propagandas expõe-se como inquestionável que toda boa mãe é aquela que ajuda no sustento da casa, cuida bem dos filhos, do companheiro, de si própria; está sempre magra, bem arrumada, feliz, sorridente etc. Não há abertura para outros tipos de boas mães: aquelas que não cuidam de si, as que não ajudam no sustento da casa, entre tantos outros tipos comuns na sociedade. As que não se encaixam perfeitamente no mundo ideal dos filmes publicitários terão a tendência de se ver como seres sempre em falta com a família e consigo mesmas.

A ideologia da propaganda é nefasta porque reforça as tendências que procuram tornar estática a sociedade – não no sentido de evitar o desenvolvimento de novos produtos e a criação de novas oportunidades de lazer, mas no de retardar ou impedir a revisão dos princípios básicos da ordem social, quer no nível macro (‗democracia‘), quer no nível micro (‗papel dos sexos‘). (p. 227).

A propaganda evita mostrar o trabalho, os fenômenos ligados à produção, talvez como um escapismo para agradar os espectadores. A propaganda se interessa pelos produtos após a comercialização deles. Fica como que implícito que o modo de organização do trabalho de hoje é inquestionável, irrelevante. Como não se mostra o processo desigual de produção, é deixado no ar que ele é normal, que não tem nada de novo para ser mostrado. A propaganda não mostra o processo penoso e explorador de produção dos produtos que apresenta.

Aprofundando essas ideias, Vestergaard e Schroder citam Berger, que comenta que:

A publicidade transforma o consumo num substituto da democracia. Escolher o que se vai comer (ou vestir, ou dirigir) assume o lugar de uma opção política significativa. A publicidade ajuda a mascarar e a compensar tudo o que é antidemocrático dentro da sociedade. (apud VESTERGAARD; SCHRODER, 2004, p. 229).

A propaganda e o consumo simbolizam, pois, a liberdade de escolha. E isso é significativo, principalmente se pensarmos na sensação de poder e de superação que eles prometem aos espectadores. Ao pensar que pode escolher, o consumidor sente-se importante, único. E já que ele também quer se sentir parte de um grupo, em que todos usam um produto, por que ele vai ficar de fora?

Para chegar a agir sobre as formações ideológicas do público-alvo, a publicidade trabalha criando grupos de consumidores com interesses em comum. Muito além de separar homens de mulheres, as peças distinguem-nos entre: os homens que gostam de frequentar bares, os estressados, as mulheres que prezam uma alimentação saudável etc. São vários grupos pequenos e, aparentemente, sem muita representatividade, mas que possibilitam uma identificação imediata entre o espectador e o anúncio, o que intensifica a probabilidade de se chegar à persuasão.

Refletindo mais, pensemos no quanto a natureza, as coisas naturais são importantes símbolos na propaganda. O natural é valorizado em detrimento do artificial. Se bem que essa diferença entre natural e artificial é negada na publicidade, uma vez que as peças não explicitam que para se ter um cabelo com brilho ―natural‖, por exemplo, há que se usar vários produtos artificiais.

As mulheres aparecem bem diferentes do modo como a natureza as fez: cabelos pintados, sobrancelhas cortadas, corpo depilado, mas os anúncios passam a mensagem de que a beleza delas é natural por causa de algum produto que usaram – procedimento que nega o natural, como dissemos. Instaura-se um jogo de ideias em que os conceitos não são claramente delineados e a retórica da persuasão manipula, por sua vez, de tal sorte o espectador que cria uma opacidade com a intenção de obliterar o significado dos signos e dirigir o entendimento do consumidor para o sentido pretendido.

E como o natural é um valor positivo em nossa sociedade, ele é explorado de diversas maneiras. Vestergaard e Schroder apontam quatro maneiras de explorá-lo nos comerciais (2004, p. 245-250):

1. Dizer que a matéria-prima do produto mostrado é natural e isso é um diferencial dele em relação às outras marcas. Isso também pode ser visto em comerciais de alimentos que, por serem naturais, proporcionam benefícios;

2. Dizer que o produto é um aperfeiçoamento da natureza, é superior à fonte natural, já que melhora o que a natureza nos deu;

3. Contrariar o natural em nome do natural. Essa estratégia é vista, por exemplo, em um anúncio de tinta para cabelo, ao dizer que ela devolve o aspecto natural, como se ter cabelo branco ou grisalho não fosse natural, como já comentamos;

4. Colocar a natureza como referente a produtos que não têm nenhuma conexão com ela. Em algumas propagandas de carro, o veículo aparece

numa paisagem natural deslumbrante, sendo que esse produto causa danos à natureza.

Diante do exposto, sentimo-nos encorajados a pensar que somos muito mais influenciados por esses textos do que imaginamos: ―Ao vincular nossas relações e sentimentos a mercadorias, a publicidade estabelece os limites de tais relações e sentimentos, cerceando nossa espontaneidade‖ (ibidem, p. 266, 267). As mensagens ideológicas da propaganda vão muito além do interesse, do impacto comercial.

Fundamentados nestes pressupostos teóricos, passemos à análise do corpus.

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