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O Diversificado Universo Cultural da População Mato-Grossense na Segunda Metade do Século

1.2 O Cotidiano Cultural das Elites

Entendemos que o universo das elites mato-grossenses era constituído por todo o segmento ligado à burocracia provincial e municipal, Presidentes de Província e respectivos assessores, Deputados, Magistrados, profissionais liberais, pelo Clero e ainda pelos grandes comerciantes e proprietários, militares, em suma, por todos os dirigentes político- administrativos que, a partir de 1870, encetaram o ambicioso projeto de modernização de Mato Grosso. Tal projeto contemplava a execução no cenário regional, de inúmeras transformações ao nível das infraestruturas básicas, nomeadamente: o fornecimento de água e eletricidade, a implementação de um adequado sistema de comunicações, cuidados de higiene e de saúde primários, etc., os quais exigiam, simultaneamente, a sensibilização e preparação das populações para receber e adequar-se aos benefícios dessa modernidade, através de uma alfabetização que se revelava indispensável para a aquisição de novos hábitos e para uma profunda mudança de atitudes, no sentido de as levar a entender os inúmeros benefícios que tais mudanças introduziriam no seu cotidiano.28

De acordo com Siqueira, a Corte, instalada no Rio de Janeiro foi, indubitavelmente, o laboratório por excelência onde todas essas alterações foram pensadas, testadas e difundidas para as diferentes províncias, incluindo Mato Grosso, através dos seus governantes que, ávidos da mudança que o novo modelo implicaria nos cenários onde atuavam, o aplicavam no terreno, difundindo, dessa forma, por todo o território imperial os resultados de um novo paradigma.29

A conexão direta com as repúblicas circundantes e com o litoral brasileiro que a abertura do Rio Paraguai veio proporcionar, intensificou também a circulação de ideias, movimento de que resultou um precioso contributo para o rápido crescimento de todas as atividades subjacentes à produção escrita e aos correspondentes meios de comunicação, com particular relevância para os jornais que se assumiram como principal veículo da produção

28

Ibidem, p. 89.

cultural e como palco privilegiado para a propaganda e para o debate político. Foi deveras significativo o impulso que a partir de 1870 se operou nos meios culturais da Província, influenciado, obviamente, pelas camadas alfabetizadas de então e que se traduziu por uma larga produção de materiais escritos, com particular destaque para os livros, jornais, panfletos políticos e propaganda.

A imprensa propriamente dita, surgiu em Mato Grosso nos finais da primeira metade do século XIX, tendo o jornal goiano A Matutina Meiapontense funcionado até à década de 30, como principal veículo de divulgação de todas as causas mato-grossenses. Este jornal reservava a Mato Grosso duas colunas, A Província de Mato Grosso e Miscelânea

Cuiabanense, sendo através destas seções que o governo da província fazia publicar os seus

atos oficiais e a realização de debates políticos, respectivamente na primeira e na segunda.30

O primeiro ensaio para a criação da imprensa oficial em Mato Grosso foi mal sucedido e em pouco tempo abandonado devido ao aparecimento, em 1839, do jornal Themis

Matogrossense, em plena governação de Pimenta Bueno. Só em 1842, três anos mais tarde,

surgiu o jornal Cuiabano Oficial, a que se seguiu, em 1847, A Gazeta Cuiabana, dirigida pelo então educador e, mais tarde, Inspetor Geral dos Estudos, Pe. Ernesto Camillo Barreto. Um ano depois surgiu ainda o Echo Cuiabano. Na década de 50, A Imprensa Cuiabana, dirigida pelo Pe. Camillo Barreto, mereceu particular destaque e na década de 60 surgiram quatro novas publicações, nomeadamente, A Voz da Verdade (1860), O Cuiabano (1867), O Popular e A Situação, ambos criados em 1868. Porém, foi nas décadas de 70 e 80 que se registrou uma maior proliferação de jornais, não apenas em Cuiabá, mas também noutras cidades como Corumbá e Cáceres, também estas beneficiadas com a abertura da navegação pelo Rio Paraguai. Entre 1870 e 1889, foram editados em Mato Grosso mais de 40 periódicos, sendo a sua maioria localizada na Capital, Cuiabá.31

Visando contrariar algum isolamento das populações mato-grossenses, sentido e criticado pelas elites da época, surgiram em Cuiabá a partir de meados do século XIX, diversas associações ligadas particularmente à política e às artes, sendo a mais antiga, a

30

Ibidem, p. 90.

Sociedade União dos Militares, fundada a 22 de maio de 1853 e organizada pelo segmento

militar da população, presente em território mato-grossense desde o Período Colonial, com o objetivo de reunir e associar as numerosas famílias de militares, cuja expressão era muito significativa no cenário regional.

A presença constante de elementos ligados à Instrução Pública, tenham sido eles professores ou Inspetores/Diretores Gerais, foi um dos aspectos que mais se destacou na análise das diversas sociedades mato-grossenses. No caso da União dos Militares, vemos entre outros, na primeira diretoria, a figura do médico Dr. José Antônio Murtinho, estreitamente ligado à Instrução Pública de então.32

Ainda no âmbito da instrução pública, a expansão do mundo letrado propiciou a fundação do Gabinete de Leitura, primeira biblioteca pública de Cuiabá, instituída em 1872, sob direção do Inspetor Geral dos Estudos, Manuel José Murtinho e implementada decorridos dois anos, tendo como principal objeto apoiar todos aqueles que desejassem ampliar os seus conhecimentos.

Em 1877, mais precisamente a 23 de maio, foi criada uma nova instituição na Capital, esta designada de Sociedade Dramática Amor à Arte, que, à semelhança da Sociedade União

dos Militares que, segundo Siqueira, incluía também na sua direção, ilustres figuras da alta

sociedade mato-grossense, com forte ligação à Instrução Pública, nomeadamente o Dr. Dormevil José dos Santos Malhado, médico de profissão, mas que ao longo de vários anos foi Diretor Geral da Instrução Pública.33 Tal como a sua designação deixava antever, o trabalho no âmbito das artes, principalmente do teatro, era o principal objetivo desta associação. Criada por e para as elites que nos camarotes do Teatro daquela companhia assistiam aos espetáculos, as representações artísticas destinavam-se apenas aos associados, sendo aquele espaço vedado aos não sócios, durante as representações.

Já na década de 80, mais precisamente em 1886, uma nova sociedade militar, denominada de Sociedade Dramática União Militar, viria a ser fundada, esta mais voltada

32

Ibidem, p. 91.

para as atividades cênicas, mas não circunscrita apenas a estas, uma vez que para além da sua preocupação com a arte, se assumiu como um relevante meio de educação e instrução. O Jornal Cuiabano A Tribuna, ao publicitar a representação do drama Díscolo e das comédias

Ressonar sem Dormir e O mundo torto, finalizava o seu artigo enaltecendo o caráter

pedagógico de tais espetáculos, com a consideração seguinte:

As representações teatrais que têm por fundamento a distração popular, são também as melhores escolas de ensinamento moral onde as famílias vão colher os mais salutares exemplos de virtude e dos bons costumes, assim como os mais nocivos e degradantes germes de vício e da torpeza, portanto são relevantes os serviços que prestam à sociedade as associações dramáticas quando bem dirigidas, merecendo a existência das mesmas todo o alento e apoio do meio social em que são estabelecidas.34

Ainda nos anos 80, o professor José Estêvão Corrêa, Lente do Liceu Cuiabano e ex- aluno do Seminário da Conceição, reunia os seus alunos para a representação de peças teatrais e festas de caráter cívico. Recordando esse período, Firmo Rodrigues conta o seguinte:

[…] era o professor José Estêvão Corrêa quem, com uma turma de alunos do Liceu Cuiabano, realizava espetáculos e festas cívicas. Era trabalho de paciência, porque os amadores não eram pontuais aos ensaios; nessas ocasiões ele ficava irritado, zangava-se, mas na noite seguinte, lá estava no teatro dirigindo a indisciplinada troupe.35

Foi o mestre Estêvão que, ano após ano, manteve o teatro Amor à Arte ativo, evitando o seu desaparecimento, o que só veio a ocorrer em 1894, altura em que o edifício onde se instalava aquele teatro, então designado por Teatro Minerva, desabou. Estava nesse dia programada a apresentação de uma companhia teatral espanhola que, obviamente, não chegou a concretizar-se.

34 Jornal A Tribuna. “Espectaculo da União Militar”, nº 148, p. 1-2. Cuiabá, 14 de setembro de 1888. APMT –

Acervo de Jornais.

35

RODRIGUES, Firmo. Figuras e coisas da nossa terra. Cuiabá: Escola Técnica Federal de Mato Grosso, 1959, p. 73.

O teatro foi, no século XIX, um importante fator de socialização e o recinto por excelência onde se discutiam assuntos como política, hierarquia, formas de tratamento, gestos ou mesmo moda, assumindo-se como um excelente instrumento civilizacional de particular relevância, porquanto se tratava da época mais marcante do delineamento da formação da cidadania do povo brasileiro.36

Fundado a 14 de março de 1882, em Cuiabá, o Clube Literário tinha como objetivo principal, entre outros, permitir a realização de palestras literárias bimensais cuja organização decorria das propostas ou orientações fornecidas antecipadamente pelos sócios que aí quisessem discursar, sendo todos os trabalhos literários apresentados, difundidos numa Revista publicada quinzenalmente. A sua criação, amplamente anunciada pela imprensa de então, mereceu uma festividade inaugural prestigiada pela elite cuiabana:

[…] assistiram ao ato os Exmos. Srs. Conselheiro Pádua Fleury, Presidente da Relação, Desembargadores Gomide e Brusque e os Drs. Alfredo José Vieira e Silva Carvalho, Diretor da Instrução Dormevil José dos Santos Malhado, Antônio Correia da Costa Filho e João Carlos Munis e Coronel José Clarindo Queirós.37

A relação estreita entre a arte e a educação com o universo cultural das elites destacou-se, pela presença do médico Dormevil José dos Santos Malhado que, durante parte da década de 70 dirigiu a Instrução Pública. Porém, algumas sociedades tiveram uma existência muito curta devido ao fato de terem na base da sua fundação interesses marcadamente partidários. São disso exemplo a Sociedade Recreio Cuiabano e a Terpsícore

Cuiabana, ambas fundadas no ano de 1883, a primeira por iniciativa do Partido Conservador e

a segunda fundada e dinamizada pelo Barão de Batovi, então Presidente da Província e pertencente ao Partido Liberal. A inauguração da Terpsícore Cuiabana compreendia diversas atividades, nomeadamente, discursos, palestras e música, sendo encerrada com um grande baile. À semelhança das demais sociedades, a Terpsícore integrava na sua diretoria um

36 Sobre a história do teatro em Cuiabá, ver: MORAES, Edmilson Marques de. O Teatro em Cuiabá: 1826-1894.

Monografia apresentada ao Departamento de História. UFMT/ICHS. Cuiabá, 1997.

elemento ligado à administração da Instrução Pública, na circunstância, o Dr. João Carlos Munis, Diretor Geral, na categoria de Vice-Presidente daquela entidade.38

A estrutura inicial dos eventos implementados na Terpsícore Cuiabana mantinha-se inalterada quando Steinen, viajante alemão de passagem por Cuiabá, assistiu a uma das suas apresentações por norma constituídas por uma declamação introdutória dinamizada por um dos sócios, seguida de outras manifestações culturais, nomeadamente, sessões de piano, canto em dueto e banda de música. Estes eventos terminavam com um baile onde se dançavam:

[…] rondós e quadrilhas, sendo que esta última parece ter sido inventada para os climas quentes. Seria erro acreditar-se que se dançava aqui com mais calor e paixão do que em nossa terra. Ao contrário, a eterna monotonia da quadrilha e da polca raramente era interrompida por uma valsa ou uma ‘habanera’.39

Para além da função lúdica subjacente aos espetáculos teatrais presentes no quotidiano cultural das elites, estes constituíam-se também como fator educativo, dado que as famílias, jovens e adultos, eram o seu público privilegiado e apreendiam os valores por aqueles veiculados, tendendo a imitá-los.

As condutas exemplares eram retratadas por representações que tinham como primordial propósito funcionar como aulas e as comédias tinham como objetivo central o escárnio de práticas e procedimentos afastados dos padrões considerados normais. Em tal contexto, o teatro propunha-se, essencialmente, proporcionar momentos de meditação, retratar comportamentos considerados civilizados em que o espectador se revisse, em suma, funcionava como modelo. Assim sendo e considerando o significado pedagógico que teve no século XIX, o teatro permitia, efetivamente, estimular as aprendizagens. Assim sendo, os palcos dos teatros mato-grossenses, constituíam-se como espaços privilegiados onde o culto do civismo e da educação poderia ser amplamente exercitado pela população, através da realização constante de atividades cívicas.

38 SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit., p. 96. 39

STEINEN, Karl von den. O Brasil Central. Trad. Catarina Baratz Cannabrava. São Paulo: Nacional (Brasiliana – Biblioteca Pedagógica Brasileira, Série Extra, Vol. 3), 1942, p. 82.

A abertura da navegação fluvial, através do estuário do Rio da Prata, proporcionou uma maior proximidade ao universo artístico e musical de origem europeia, permitindo, dessa forma, que em Mato Grosso se desenvolvesse o gosto pela música instrumental e o consequente acesso aos mais variados instrumentos musicais que aí aportavam, vindos diretamente da Europa. O piano passou a abundar na capital, sendo, na segunda metade do século XIX, o instrumento musical privilegiado pelas elites cuiabanas, sendo a música um ingrediente considerado indispensável nas suas festas, onde abundava também a bebida, com particular destaque para os vinhos e as cervejas importados de Montevidéu e do Rio de Janeiro.

Do Clube de Instrução e Recreio, fundado a 20 de Junho de 1883, nasceu a

Associação Literária Cuiabana, que tinha, como objetivo central, estimular o gosto pela

leitura e acumulou, ao longo dos seus 41 anos de existência (1883-1924), um número significativo de obras, acervo que, ao encerrar a sua atividade, foi doado por aquela Associação, ao Centro Mato-Grossense de Letras, fundado em 1921 e que mais tarde assumiu a designação de Academia Mato-Grossense de Letras, Instituição que ainda hoje mantém a sua atividade. O empenho pela expansão da leitura e da escrita era então muito expressivo, junto das entidades culturais mato-grossenses, das elites, dos grupos intelectuais e das personalidades que lhes estavam subjacentes, em paralelo com a atividade dos estabelecimentos de ensino que iam proliferando pela Província, evidenciando assim um esforço continuado no sentido de alcançar os ideais da modernidade no panorama provinciano.

Despontavam, no conjunto de valores que caracterizavam o universo cultural da população de Mato Grosso, óbvios sinais de instabilidade entre o viver obsoleto herdado das gerações passadas e o que à data se entendia por modernidade, dado que “o homem de Mato Grosso se acha num estado intermédio pouco favorável, pois, um dos seus pés se firma no passado e o outro toca o futuro”.40