• Nenhum resultado encontrado

4. O PRATO PRINCIPAL: apresentação e análise dos resultados

4.2 COZINHAR COMO PRÁTICA

4.2.1 Aprendizagem e conhecimento sensível do cozinhar à luz de Strati

4.2.1.2 Cozinhado com os olhos

A faculdade perceptiva-sensorial da visão foi utilizada durante o cozinhar como prática principalmente como medida. Ao olhar, a comunidade de cozinheiros faz uso não das medidas científicas como balança e termômetro enquanto cozinham, mas fazem uso dos olhos como uma medida: essa é a simples expressão do conhecimento sensível. Pelo olhar aprendeu-se a julgar a quantidade certa de determinado ingrediente para determinada comida; pelo olhar, se julga o tamanho “padrão” de determinado ingrediente; pelo olhar, se julga se o prato foi realizado da maneira correta.

Em muitos momentos durante a imersão em campo foi possível fortalecer essa percepção, o que demonstra que é parte integrante do cozinhar como prática a utilização da faculdade perceptiva da visão como uma medida. Como pode ser evidenciado por meio de trechos das observações: A porção de batata é colocada para fritar só olhando (NOTAS DE CAMPO, JULHO, 2014). O queijo de coalho que acompanha a carne de sol não é porcionado. A fatia do queijo é tirada com base no olho pelo Júlio. A pesquisadora pergunta ao Júlio “como você sabe quanto de queijo de coalho precisa tirar?” Ele responde “eu olho assim, e já sai a fatia certa, porque já me acostumei” (NOTAS DE CAMPO, SETEMBRO, 2014). O Júlio está acostumado a realizar o trabalho, é esse “costume” que habilita o seu olho a tirar a medida correta. Essa medida com os olhos é compartilhada com o grupo de trabalho, dado que em nenhum momento é questionada.

Em outras observações, é possível fortalecer a mesma impressão: a Daniela vai fazer o suspiro, prepara a massa e começa a colocar na assadeira. Enquanto a pesquisadora observa, pergunta:

Pesquisadora: como você sabe o tamanho do suspiro, Daniela? Daniela: porque é assim!

Pesquisadora: mas como assim, é assim?

Daniela: porque é o padrão daqui! (NOTAS DE CAMPO, AGOSTO, 2014).

A Daniela aprendeu o padrão, mas a pesquisadora observa que nem todos os suspiros estão do mesmo tamanho. Mesmo assim a Daniela conseguiu manter o padrão baseada na faculdade perceptiva da visão e no seu juízo estético, que é compartilhado

coletivamente e afirma que o suspiro está dentro do padrão. Desta forma, é possível perceber que quando o jeito de fazer está dentro da prática, ele faz parte da reprodução social e é reconhecido e legitimado como uma atividade do grupo, existe concordância social, o que evidencia o cozinhar como prática (GHERARDI; NICOLINI; ODELLA, 1998; GHERARDI, 2006; STRATI, 2007a, 2007b; GHERARDI, 2014a).

Mateus fez todo um Rubacão. Quando o prato estava pronto, foi colocar a porção na tigela de servir. A pesquisadora, que já conhece alguns detalhes do trabalho, observa que a porção está maior que o normal. Saiu bem maior do que a quantidade normal que o restaurante faz. Todos na cozinha olham para o prato e Flávia exclama: “tá muito cheia!” O Mateus olha para Flávia e pergunta “Tá muito cheia?”. Flávia responde “Tá!”. Um garçom olha e exclama: “esse tá no capricho!”. “Mas não pode, amanhã o cliente vai voltar e querer um igual, só que esse tá errado, tá fora do padrão”, diz Flávia. Artur se aproxima e diz: “tira isso daí!”. Mateus pergunta: “mas vai desmontar o prato?”. Artur responde: “vai!”. Ele se aproxima do prato já montado, pega um recipiente, coloca as carnes em um lugar reservado e tira a parte de baixo. O prato é desmontado e recolocado de acordo com a porção padrão do restaurante (NOTAS DE CAMPO, JULHO, 2014).

Tudo isso foi regulado pelo conhecimento como prática e estético. Em nenhum momento o prato foi pesado, em nenhum momento se procurou pela ficha técnica do prato. O cozinheiro e a auxiliar de cozinha olharam os pratos, fizeram o juízo estético coletivo e afirmaram que estava fora do padrão do restaurante. O conhecimento sensível mediou toda a relação juntamente com o julgamento estético. Aqui entra algo importante para a prática: a sustentação das normas. As normas foram reproduzidas e sustentadas por meio do juízo estético. Assim, todos na cozinha concordaram com a mudança no prato pois perceberam como fora do padrão, todos os atores responderam de maneira apropriada às normas consideradas corretas para a prática (GHERARDI, PERROTTA, 2011; GHERARDI, 2014a).

Em outra observação, a pesquisadora percebe como é confeccionada a tábua de frios e pergunta a Flávia “Como você sabe a quantidade que precisa colocar de cada ingrediente?” “Eu não sei, eu estou aprendendo” (ela fica insegura ao responder a pergunta, porque trabalha na empresa há nove meses), “Artur me diz aqui qual a quantidade que é para colocar na tábua de frios de cada coisa?”. A pesquisadora, buscando investigar melhor, pergunta (enquanto isso Artur se aproxima): “Artur, como você sabe a quantidade que precisa colocar de cada ingrediente?” “Com a prática ao longo dos anos a gente aprende. São 150g de cada ingrediente, como o queijo já tá porcionado, olhando para o queijo consigo ver a quantidade que preciso colocar de cada ingrediente” diz Artur. “É porque faz pouco tempo

que estou aqui e ainda estou aprendendo a como faz cada coisa e quantidade de cada coisa, eu ainda não sei de tudo”, diz Flávia. Quando Artur terminou a tábua de frios, disse: “fica bonito, né?” e mostra a tábua de frios para a pesquisadora. A pesquisadora respondeu “É, sim, muito bonito!”.

Neste caso, existem questões da prática que estão apoiadas em um juízo estético. Artur vê o queijo (que já foi anteriormente porcionado) e, após, coloca mais ou menos a mesma quantidade dos demais ingredientes, e assim prepara toda a tábua de frios (NOTAS DE CAMPO, AGOSTO, 2014). É um juízo com base na faculdade perceptiva da visão. A novata, neste caso, Flávia, que ainda “não possui” o conhecimento sensível manifesto pela visão, não consegue dominar o ambiente de trabalho. Como também, enquanto Artur ensinava Flávia, estava ensinando “a capacidade de “ler” a compreensão estética dos outros”, no caso, de Artur (STRATI, 2007a, p. 175).

Posterior a essa questão, destaca-se também a expressão da categoria estética do belo. As categorias estéticas estão presentes enquanto as pessoas realizam o trabalho cotidiano, como demonstrado na expressão, elas também tomam forma quando existe uma completude de uma atividade. A tábua de frios é bonita não só pela beleza em si, mas porque terminar um trabalho também é bonito (STRATI, 2000, 2007a).

Como já mencionado, o preparo dos bolinhos que são utilizados como petiscos é carregado de conhecimento sensível. Após a conversa sobre a tábua de frios e respondidas as perguntas que a pesquisadora fez, Artur começa a explicar melhor como existem coisas que ele faz na cozinha porque já tem “a prática”.

Artur pergunta a pesquisadora: “você já me viu fazendo o bolinho de carne?” Pesquisadora responde: “sim!”

Artur: “você sabe como eu sei fazer todos iguais”. Pesquisadora responde: como?

Artur: “eu já tenho prática, cada bolinho tem 8 gramas” (NOTAS DE CAMPO, AGOSTO, 2014).

Quando se observou ele fazendo os bolinhos, percebeu-se que nem todos tinham o mesmo tamanho, mas eram bem uniformes. Ele não pesou em nenhum momento. Já foi observado ele fazendo os bolinhos várias vezes, mesmo assim afirma que têm 8 gramas (NOTAS DE CAMPO, AGOSTO, 2014).

Como foi dito, o Artur vê e sabe o tamanho dos bolinhos, aprendeu que aquele tamanho era 8 gramas e reproduz todas as vezes que faz o bolino. Reproduz o tamanho mesmo sem pesar. Não conseguimos precisar quantas vezes assistimos os bolinhos serem preparados, mas nunca fora pesado. Isso porque pesar não faz parte da prática de trabalho, o

conhecimento visual estético é o que conta. Ele aprendeu o tamanho que corresponde a 8 gramas e, sem pesar, pega na caçarola uma quantidade ideal de correspondente a quantidade para o preparo do bolinho, utilizando uma medida visual aprendida, fazendo uso de sua percepção estética. Neste caso específico, Artur explicou como se realizam as atividades na cozinha, justificou a sua própria prática de maneira discursiva, ou seja, a partir da sua própria prática discursiva que é conhecimento em ação, a medição visual aprendida (STRATI, 2007b).

Sua prática discursiva, ainda, justifica-o e legitima-o quando ele afirma que já tem a prática, um conhecimento visual sensível que é igualado à capacidade de observar a quantidade do queijo e tirar com os olhos a medida dos das demais quantidades de ingredientes que estão na tábua de frios. Artur, mesmo tentando explicar à pesquisadora como adquiriu essa habilidade, faz com dificuldade e por meio de exemplo, já que, como não é algo formalizado, é difícil de explicar como ele aprendeu (STRATI, 2007b).