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Crítica ao raciocínio dogmático-subsuntivo na aplicação da lei

Apesar da consolidada validade do raciocínio dogmático-subsuntivo para a aplicação de normas nos sistemas jurídicos de inspiração continental européia (sistemas do civil law), como é o caso do modelo brasileiro, ainda assim é certo que toda interpretação de normas não é uma simples operação de subsunção, ou seja, não é uma aplicação automática e objetiva de uma hipótese previamente definida a um fato.

A solução para o que Ronald Dworkin chama de casos fáceis talvez possa ser encontrada por meio de aplicação automática e objetiva, sem a interferência da vontade do

intérprete, mas os casos difíceis, as chamadas zonas cinzentas, não encontram solução por meio de subsunção.

Assim, salvo os casos fáceis, todos os casos difíceis demandam uma interpretação

criativa para se alcançar uma solução racional (KAUFMANN, 2002).

Para o raciocínio dogmático, o ordenamento jurídico seria um aparato conceitual

rigorosamente dedutivo e auto-suficiente, pronto para atos de mera subsunção na fase aplicativa.

Para concepção dogmático-subsuntiva, há uma proibição de criação de direito pelo aplicador, ao qual compete apenas a aplicação de uma vontade pré-existente (seja a vontade do legislador, seja a vontade objetiva da lei).

No entanto, o raciocínio dogmático já é algo antigo e até certo ponto ultrapassado na teoria do direito.

De fato, a tradição do Jusnaturalismo e do Iluminismo do século XVIII configurava a atividade legislativa como uma atividade racional voltada a construir um sistema completo de leis inspiradas pela razão, ao passo que à fase de aplicação de normas aos casos concretos seria necessária uma razão frágil e mais simples (VIOLA; ZACCARIA, 2004).

No século XIX, século das grandes codificações, quando a doutrina positivista possuía grande força, havia uma fé iluminística em um legislador universal, capaz de dominar a natureza e de pôr leis válidas para todos os homens. Segundo Viola e Zaccaria (2004, p. 149, tradução nossa),

Era convicção comum da época que um simples escritor pudesse dar vida a um código unitário, simples e coerente (Bentham). Em todo o período do século XVIII, o imperativismo, desde John Austin a August Thon, busca o imperativo da lei como ordem, como concreta manifestação psicológica da vontade pessoal do legislador6.

Principalmente na Europa continental, nos séculos XIX e XX, o modelo de bom legislador prevaleceu sobre o de bom intérprete. O problema da interpretação permanecia relegado a um papel secundário em relação à atividade do legislador justamente em face da crença a respeito do caráter mecânico de aplicação dos enunciados normativos.

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Viola e Zaccaria (2004, p. 149): “Era convinzione comune dell’epoca che un singolo redattore potesse dar vita

ad un codice unitario, semplice e coerente (Bentham). In tutto l’arco dell’Ottocento, l’imperativismo, da John Austin ad August Thon, intende l’imperativo della legge come comando, come concreta manifestazione psicologica della volontà personale del legislatore”.

Na teoria juspositivista de interpretação, a lei deveria ser interpretada simplesmente por meio da lógica do jurista, sem que este contribuísse com a sua vontade para a confecção da decisão.

A teoria tradicional de interpretação buscava revelar a vontade objetiva da norma ou a vontade subjetiva do legislador mediante análise do texto, de seu processo de criação, de suas conexões sistemáticas, de seus antecedentes e da finalidade da norma (HESSE, 1992).

Existiria interpretação na simples execução de uma vontade pré-existente que poderia ser alcançada com certeza objetiva através desses métodos e com independência do problema a resolver.

Aliás, para a teoria tradicional, o direito seria um sistema fechado no qual não existiriam lacunas.

No entanto, o curso do tempo demonstrou que a dinâmica da vida social é bastante complexa e que pode gerar relações e conflitos dificilmente subsumíveis a padrões pré- fixados, conforme pretendem as teorias subjetivistas e objetivistas.

Se é certo que determinados casos (os chamados casos fáceis) podem facilmente se adequar a padrões normativos, também é certo que a vida será pródiga em multiplicar a existência de casos (os chamados casos difíceis) para os quais não haverá uma perfeita correspondência normativa, justamente pela falta de previsibilidade do legislador quanto à sua possível ocorrência.

Engisch (2008, p. 206) relata que a estrita vinculação do aplicador do direito à lei começou a vacilar no decurso do século XIX. Instaura-se a percepção de que a estrita vinculação do juiz à lei é impraticável em face de que “não é possível elaborar as leis com tanto rigor e fazer sua interpretação em comentários oficiais de modo tão exacto e esgotante que toda a dúvida quanto a sua aplicação seja afastada”.

Assim é que a doutrina passou a contestar a pretensa completude atribuída pelos juspositivistas ao ordenamento jurídico.

Entre as várias críticas endereçadas a essa concepção, pode ser citada a de Kaufmann (2004, p. 78, tradução nossa), para quem a pressuposição de ausência de lacunas das leis mostrou-se insustentável:

Já que não se podia abdicar da proibição da denegação de justiça, a proibição de criação do direito teve que cair. Perante uma lacuna da lei, porém, o juiz se verá obrigado a fazer uso de critérios que se situam a jusante da lei7.

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Kaufmann (2004, p. 78): “Da man indessen das Rechtsverweigerungsverbot nicht aufgeben konnte, musste das

Rechtsschöpfungsverbot fallen. Das heisst aber, dass der Richter im Falle einer Gesetzeslücke notgedrungen nach Kriterien entscheiden muss, die jenseits des Gesetzes liegen. Damit ist der strenge Gesetzespositivismus aus den Angeln gehoben”.

Para Hesse (1992), o objetivo da interpretação apenas relativamente pode consistir na tentativa de revelar a vontade preexistente nas normas. É que não se pode presumir que as normas ou o legislador tenham tomado uma decisão prévia para todas as questões controversas que pudessem surgir no futuro. Mas se pode imaginar ao menos que tenham se limitado a imaginar alguns pontos de apoio para a tomada futura dessas decisões. Assim, onde não se definiu nada de modo inequívoco não é possível revelar uma vontade autêntica.

Ademais, Engisch (2008, p. 208) registra uma tendência dos próprios Parlamentos no sentido de fazer com que o julgador adquira autonomia em relação à lei, notadamente no Direito Administrativo. Cita, como exemplo, a fixação em leis de conceitos jurídicos indeterminados, conceitos normativos, conceitos discricionários e cláusulas gerais, que exigem uma participação ativa do intérprete na sua definição.