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Crítica ao tratamento descurado à matéria e ao conformismo do Poder

Não se pretende lançar dúvida sobre a importância do instituto da prescrição, fundado no princípio da segurança jurídica, como instrumento jurídico destinado a evitar a eternização dos conflitos. Não pode pairar sobre o réu a ameaça ad perpetuam do poder repressivo estatal. Como assinalou VON LISTZ,

os efeitos da pena, quando a execução é distanciada da prática do ato punível, estariam, por certo, malogrados, pela completa desproporção com as dificuldades e incertezas que ofereceria a verificação do fato, e com a perturbadora intromissão nas novas

relações originadas, e já consolidadas.78

Inegável também a importância da prescrição como instrumento de política criminal destinado a reforçar o aspecto preventivo da pena e impedir a eternização do clamor social em relação à prática delituosa. O tempo apaga todas as feridas, individuais ou sociais.

O que merece maior reflexão e preocupação do Direito Penal é o viés patológico que a prescrição vem assumindo. Ao invés de constituir uma exceção, para os casos excepcionais, a prescrição, em razão da incidência absurda de sua ocorrência, passou a ser a regra geral. Como bem assinalou GUARAGNI:

a incidência da prescrição deve operar em níveis de razoabilidade e não ser demasiada por força de anomalias de ordem técnica verificadas de lege lata, capazes de comprometer a atuação do Direito Penal e frustrar as linhas de política criminal adotadas pelo Estado.79

Não é bem explicado pela doutrina o fato de o sistema penal brasileiro contemplar a possibilidade de reconhecimento da prescrição para delinqüentes habituais, réus que ostentem condenações transitadas em julgado (a reincidência apenas afeta à prescrição da pretensão executória) e réus que reiteram na prática criminosa. Os principais fundamentos da prescrição, tais como a teoria do esquecimento, a presunção de boa conduta e a ineficácia da pena tardia, se esmaecem diante de nova prática delituosa. Se o agente não permite que a sociedade esqueça o seu ato criminoso, praticando outro logo a seguir, que reaviva o anterior na consciência social, não parece razoável sustentar-se o desinteresse

78 VON LISTZ, Franz. Tratado de Derecho Penal. Tradução de Jiménez de Asúa. 20. ed.

alemã, 2. ed. Madrid, 1929. v. 3. p. 403.

estatal na punição. A presunção de boa conduta e de reinserção social, a eliminar a necessidade de prevenção especial, desaparece também na medida em que o agente reitera na prática delituosa. Não há presunção que se sustente contra fato concreto. MIR PUIG observa que a presunção de boa conduta decorre da ausência da prática de nova conduta delituosa pelo agente, a tornar “innecesaria la prevención general – especialmente si el delincuente no há vuelto a delinquir, tal vez demonstrando una verdadera reinserción social – lo que eliminaria la necesidad de prevención especial”.80

Gastam os juristas pátrios e estrangeiros rios de tinta para pintar o quadro nefasto dos efeitos do tempo (demora) no processo civil, no qual mudanças legislativas são introduzidas em profusão. No processo penal, entretanto, assistimos, silentes, para não dizer lenientes, à demora das investigações – não há preocupação em aparelhar as polícias –, às chicanas protelatórias, às provas procrastinatórias, e a persecução penal se desenvolve morosa, quase sonolenta, rumo a uma sentença retardada. Mas daí temos os recursos, e os tribunais estão assoberbados tardando no seu julgamento...

Quando se trata dos efeitos do tempo no processo penal, olvidando que a demora neste tipo de processo sempre traz impunidade, prejuízo social e total desprestígio para a justiça, apenas se examina a questão do ponto de vista da esfera de direitos do réu e, geralmente, enquanto réu preso provisoriamente, porque, do contrário, o atraso passa a interessar à esmagadora maioria dos réus. Embora o estudo da problemática do tempo no processo penal na perspectiva dos prejuízos diretos ao acusado, que acabam, de rigor, se refletindo na sociedade como um todo, seja mesmo o mais relevante – principalmente na irrefutável visão garantista de consagração dos direitos fundamentais –, não é admissível que se olvide a melhor doutrina de tecer algum comentário sobre o fator “tempo no processo penal” como instrumento de impunidade e insegurança social.

Ninguém discorda, mormente depois do advento da EC 45, que o acusado tem direito subjetivo (fundamental inclusive) ao julgamento em prazo razoável, e que a questão do excesso de prazo para formação da culpa, a pretexto da aplicação generalizada do princípio da razoabilidade, tem sido banalizada, em afronta a esse direito. Os prejuízos (patrimoniais e extrapatrimoniais) que

experimenta o réu, seja pelo estigma do processo, seja em razão da pena processual contida na ação penal, são graves e, muitas vezes, irreparáveis.

Por outro lado, a morosidade do processo penal, gerando, quase sempre, a prescrição da pretensão punitiva, não pode tornar-se uma tendência em face da qual aos operadores do direito seja lícito silenciar e apenas dizer amém! Afinal, uma boa parte da produção jurisdicional em matéria penal, em razão da chamada prescrição retroativa, é literalmente jogada no lixo, não gera qualquer efeito.

Não se pode, todavia, atribuir a responsabilidade pela elevada incidência de casos de prescrição única e exclusivamente à lentidão do Poder Judiciário, embora seja sob este aspecto que se examina o tema mais detidamente no presente trabalho. Se atraso há na entrega da tutela penal prometida pelo Estado, e quanto a isto não há dúvida – cuida-se de problema que demanda urgentes soluções –, é inolvidável que esta demora é agravada por outros fatores, alguns deles externos à atuação jurisdicional. Prazos prescricionais exíguos e incompatíveis com as necessidades investigatórias na complexa criminalidade moderna e o avanço no pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais dos litigantes, que demanda tempo, são, exemplificativamente, fatores relevantes. Tem- se, ainda, a conspirar contra a agilidade da tutela penal, o abuso do direito de defesa que a jurisprudência hipergarantista insiste em não coibir, permitindo protelações nefastas ao célere andamento do processo penal. E mais, contribui sobremaneira a tendência da jurisprudência – muitas vezes justificada pelo temor da ineficácia da pena num sistema carcerário falido como é o nosso – de criar teses jurídicas que conduzam à prescrição, conforme será adiante objeto de análise.

É interessante, e a experiência de magistratura realça com nitidez este fenômeno, a atitude dos magistrados quanto ao reconhecimento da prescrição. Em alguns magistrados, chega-se a notar um certo grau de satisfação ao reconhecer a prescrição penal. Não raro se nota um esforço em adequar a pena aos parâmetros prescritivos. É mais fácil. Sabe-se que se trata de uma espécie de conformismo determinado pela equivocada sensação de impotência em resolver o problema. Uma idéia imprecisa de que esse deve ser solvido pelo Poder Legislativo, afinal, foi o legislador quem consagrou na lei e nos termos postos o instituto da prescrição, como se a atuação lenta do Poder Judiciário (assim como a dos demais agentes da

persecução penal) não contribuísse decisivamente para a sua ocorrência. É comum encontrarem-se publicados orgulhosamente em revistas especializadas acórdãos que reconhecem a prescrição, sem qualquer detalhe interessante ou peculiaridade digna de melhor atenção, nenhuma tese jurídica relevante. Somente se justificaria esta publicidade na medida em que o precedente, supervalorizado, teria o condão de realçar a inoperância dos agentes da persecução penal. Seria um exemplo a não ser seguido! Somente serve para desacreditar o Poder Judiciário. Casos há em que a prescrição passa a ser uma saída honrosa para solver o impasse da dúvida. Genericamente falando, a dúvida, no processo penal, deve levar à absolvição. Ao invés do juízo absolutório, aguarda-se o decurso de prazo hábil ao reconhecimento da prescrição.