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Estaria a prescrição, com a incidência elevada ocorrente no sistema judiciário penal brasileiro, na contramão da visão funcionalista do Direito Penal, na linha de ROXIN e JAKOBS?81 É o que se procura responder doravante, em breves linhas.

A Teoria Funcional do Direito Penal, embora comporte discussões em relação ao alcance e adaptação ao nosso sistema penal, parece ter impregnado de forma definitiva, quase que como uma metodologia universalizada a afetar principalmente a teoria do delito e da pena, o ideário do penalismo moderno, até mesmo enquanto solução para o problema da falta de efetividade da tutela penal protetiva de bens jurídicos relevantes. A sua racionalidade consiste em uma visão sistemático-teleológico-valorativa, e não mais lógico-objetiva ou causal, do Direito Penal, que tende ter seus institutos orientados por finalidades hauridas da sociologia e da política criminal, a comprometer todo o contexto da dogmática e o conjunto das decisões judiciais no campo penal. Enquanto alicerçado em postulados sociológicos e de política criminal, o funcionalismo encontra seu principal fundamento de validade na perspectiva de conferir efetividade às aspirações de um grupo social num dado

81 ROXIN, Claus. Política Criminal y Sistema del derecho penal. Tradução e introdução

de Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1972; ______. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general – fundamentos y teoría de la imputación. Trad. Joaquim Cuello Contreras e Jose Luiz Serrano Gonzales de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995.

momento histórico, que exige afirmação da própria norma e das respostas penais respectivas diante das infrações às regras de convivência social (problemas sociais ou ameaças à estabilidade social, no funcionalismo normativista puro de JAKOBS).82

Assentadas perfunctoriamente estas linhas mestras gerais do funcionalismo penal, cumpre verificar se prescrição penal e sua incidência patológica representam ameaças às suas bases principiológicas.

O instituto da prescrição, à luz das perspectivas sociológicas e de política criminal, está plenamente fundamentado. Hipóteses haverá em que não se justifica mais perante a estrutura social e o sistema penal a punição do infrator das regras de convivência social. É o caso do tempo passado entre o fato tido por delituoso e a oportunidade da reprimenda, que faz esmaecer a própria funcionalidade da pena. Deixa a pena de servir aos seus desideratos relevantes de prevenção geral positiva, passando a constituir mera vingança, e, para além deste aspecto, o risco de desacerto e injustiça de uma condenação cresce consideravelmente na proporção direta do tempo transcorrido.

Analisando o instituto da prescrição na perspectiva funcionalista de ROXIN E JAKOBS, observa MACHADO que “o fundamento primário da prescrição está inserido na Constituição Federal, orientada pelos postulados do Estado Democrático de Direito, notadamente no que se refere à dignidade da pessoa humana, inserindo-se no sistema penal como instituto de política criminal”.83 E conclui:

Quando se reconhece essa base constitucional à prescrição, tem- se em consideração que o Estado garantista tutela o ius libertatis do cidadão, em desprestígio do exercício da ação penal ou da aplicação de uma pena contra aquele, denominado pela doutrina clássica como ius puniendi, em razão da ausência de motivos ensejadores de prevenção geral positiva que acarretassem ao final na aplicação de uma pena. Com isso se quer dizer que, ainda que violada a norma penal, não se consubstancia por parte do Estado e da sociedade qualquer dúvida acerca da motivação ou confiança de que a norma é capaz de solucionar o conflito in

abstracto, ou de que deve a norma ser cumprida pelos demais,

até mesmo pelo convencimento de sua qualidade e propriedades, mantendo-se reforçada essa convicção e a solidariedade social. Aplicando-se a contrario sensu uma pena ao arrepio dos postulados preventivos gerais positivos, implica dizer que essa pena é desnecessária, e, assim sendo reconhecida, a mesma

82 ROXIN, 1972.

83 MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição Penal: prescrição funcionalista. São

atenta contra a dignidade da pessoa humana e à ordem democrática, servindo então a prescrição como instituto garantista contra o abuso do próprio Estado em manejar uma pena na

situação descrita.84

Fixada a premissa de que doutrina funcionalista até certo ponto explica o instituto da prescrição acenando com a desnecessidade da pena enquanto resposta à estrutura social, impõe-se examinar se o sistema legal de disciplina da prescrição no Direito Penal brasileiro resiste a uma análise à luz dos postulados sociológicos e de política criminal que presidem a funcionalidade do Direito Penal, tais como difundidos doutrinariamente.

A resposta agora deve ser negativa. Na visão sociológica de JAKOBS, verifica-se que o instituto, tal como ora disciplinado, é incompatível com as aspirações sociais, pois, ao neutralizar as demais normas penais punitivas, gera a incerteza de aplicação a norma penal. Se a idéia de que as normas penais, diante da prescrição, remanescem para incidência em outros casos, é verdadeira a partir de uma análise do instituto em si mesmo, deixa de sê-lo, todavia, quando se constata que a prescrição, em razão da exigüidade dos prazos de reconhecimento, das antinomias e idiossincrasias do sistema penal, passa a ocorrer em um número excessivo de casos, conforme está demonstrado exemplificativamente no capítulo anterior.

Para a corrente funcionalista roxianiana, que se assenta na idéia de uma política criminal fulcrada em postulados sistemático-valorativos, as antinomias se evidenciam com maior intensidade. A ruptura da coerência sistemática frustrando as linhas traçadas pela política criminal do Estado fica patente quando se examina a estatística e constata-se que a prescrição ocorre em elevado percentual dos casos, desnudando a total ausência de eficiência e eficácia social do Direito Penal.

Dir-se-ia que o problema não é do sistema penal, mas sim da morosidade da máquina administrativa empenhada à persecução penal (polícia, ministério público e judiciário). Mas não se pode olvidar que a atuação dos agentes da persecução penal compõe o sistema penal. Não é possível destacar da fisiologia e da dinâmica do sistema penal os seus desempenhos, que, mesmo quando revestidos de celeridade, não evitam a prescrição. É fácil verificar que existe uma

quase impossibilidade material de consumação dos estágios de aplicação da norma penal em tempo razoável e suficiente para impedir que se consumem os prazos prescricionais, isto porque as importantes conquistas garantistas, que, aliás, não se pode cogitar de suprimi-las, tornam o processo penal naturalmente demorado. Se a Justiça Federal, que goza de relativo prestígio de celeridade em matéria penal, exemplarmente considerada, registra dados estatísticos reveladores de uma incidência que se reputa patológica, não é preciso muito mais esforço argumentativo para concluir-se que o sistema penal como um todo carece de reformas.