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Críticas aos modelos de classes

Capítulo 3: Da estrutura de classes à distribuição da renda

3.4 O debate sobre a representação da desigualdade

3.4.3 Críticas aos modelos de classes

Existem várias críticas à análise de estratificação social mediante modelos de classe, algumas das quais já foram abordadas. TOURAINE (1995), partindo da derrocada das relações entre as condições objetivas de classe e a formação de consciência ou de ações políticas, defende a necessidade de substituir na moldura analítica da desigualdade o conceito de classe pelo de movimento social. A justificativa para tal substituição seria uma realidade na qual não são os lugares estruturais predefinidos que determinam os atores e suas ações, mas uma onde as ações, reativas ou conformistas, determinam os atores.

O alerta de TOURAINE (1995) é para o fato de que classes, ou qualquer outro tipo de grupo estruturalmente definido, ou definível, principalmente na esfera econômica, não necessariamente engendrará culturas ou ações específicas. É a reação contra um poder que modela a realidade ou a conformação à modelagem que determinará a ação ou sua ausência. Assim, pensando-se em um exemplo concreto, um poder masculino modelando toda a sociedade gerará em seus receptores, mulheres ou homens, diferentes reações, que podem ir da adesão aos valores modelares, à reação feminista mais radical. Mas a condição objetivamente predeterminada de se ser mulher não implica feminismo, ou reatividade, como ser homem não implica machismo, ou adesão. O mesmo vale para raça e classe.

Outras críticas incluem a insensibilidade das análises tradicionais a fatores de atribuição de posição na estratificação que não a classe de origem e o fato de que estudos centrados na participação no mercado de trabalho excluem uma grande parte da população (desempregados, crianças e jovens, donas-de-casa). Dentre as críticas, uma das maiores é dirigida a ter o estudo da estratificação se tornado uma área de concentração extremamente técnica e árida, e a uma suposta perda de sintonia das classes dos modelos com as “classes reais” (CROMPTON, 1998; CROMPTON e SCOTT, 2000; SAVAGE, 2000). A sociologia contemporânea da estratificação social teria se tornado reduto de iniciados, suas discussões e conclusões incompreensíveis aos leigos.

Por isso, outros discursos sobre a desigualdade e a estratificação ganharam, no processo de formação e nominação das “classes reais”, parte do poder e do papel antes exercido pelos discursos sociológicos. Formas particulares de se abordar as desigualdades de riqueza e poder, que não as tradicionais em sociologia, encontram maior divulgação,

como as classes A, B, C, D e E de consumo usadas por publicitários, ou os estratos e índices de desigualdade de renda dos economistas (GRUSKY e WEEDEN, 2006). A representação da desigualdade de riqueza e poder na consciência social seria mais dinâmica do que os modelos sociológicos de classe, amarrados a preceitos de tradições analíticas e teorias sobre uma sociedade que já passou (KINGSTON, 2000; PAKULSKI, 2005).

Alguns consideram que a crise do modelo de classes se deve simplesmente ao fato de que a desigualdade mudou, junto com a sociedade, e o modelo que era bom para as sociedades que existiam, diga-se, até a primeira metade do século XX, não serve para a estratificação social que caracterizaria as sociedades da alta, ou pós, modernidade (PAKULSKI, 2005). Há quem simplesmente especule que o conceito de classes teve importância apenas política, e que o sistema de estratificação jamais produziu grupos com as características descritas pelas teorias, marxistas ou liberais (KINGSTON, 2000). É razoável a crítica de que a representação da desigualdade deve se adequar para captar as novas configurações que surgem. Isso sempre foi parte do exercício analítico da estratificação social. Da mesma forma que sociedades agrárias foram substituídas por sociedades industriais, a sociedade industrial avançada dará vez a uma com outra estratificação – que provavelmente não será a prometida pelo marxismo ou pelo liberalismo. Também é razoável considerar que transformações da sociedade contemporânea indiquem a transição. Porém, a questão relevante é se uma sociedade em particular já está avançada o suficiente na transição para a alta (pós) modernidade para que se aplique na análise da estratificação um novo modelo. Julgar a pertinência da aplicação do modelo requer o conhecimento de quais seriam os traços que caracterizariam o novo modelo de estratificação.

Não há consenso em torno da designação a ser dada a esse novo modelo de sociedade. Alguns a consideram pós-moderna – por ser a sociedade que surge da moderna. Porém, críticos dessa caracterização apontam que se uma das suas principais características é a hipertrofia dos próprios valores modernos, o que há é uma continuidade da modernização, e não sua superação por uma nova etapa (BERMAN, 1986; GIDDENS, 1991). Portanto, talvez fosse mais pertinente pensar em uma alta modernidade. De qualquer forma, existe certo consenso em relação às características dessa nova fase, bem descritas por LIPOVETSKY (1989).

LIPOVETSKY (1989) pondera que a cultura “pós-moderna” é fruto da hipertrofia de uma cultura antinômica, o modernismo. Segundo o autor, nasce da negação da ordem burguesa por parte de uma minoria de artistas e intelectuais mediante a adoção de práticas e valores hedonistas da sociedade de corte. Tal adoção exporia as contradições de uma sociedade que implantou um individualismo radical na ordem econômica atentando contra todas as formas tradicionais de relacionamento, como a família e a religião, mas que em outras esferas continuava guardando profundas restrições morais e culturais.

É o advento, no século XX, do consumo de massa e dos meios de comunicação idem que contribuem definitivamente para a implosão das reservas e pudores burgueses. O estilo de vida consagrado ao hedonismo adotado por artistas e intelectuais se torna um padrão cultural hegemônico. A substituição do puritanismo pelo hedonismo, da valorização do trabalho pela do consumo, marcos da consolidação de um estilo moderno de vida a partir da segunda metade do século XX, fazem parte da dinâmica da modernização.

Na análise pessimista de BELL (1976), essas conseqüências culturais do capitalismo contribuem para conferir às sociedades contemporâneas um caráter heterogêneo, pois passam a possuir três ordens regidas por princípios antagônicos. Uma é a ordem técnica-econômica, cujo princípio é uma racionalidade funcional. Outra é a ordem política, regida pelo princípio da igualdade. A terceira é a ordem cultural, aonde impera um hedonismo exacerbado. No esforço particular de cada ordem em tornar o ambiente social global congruente e adequado ao seu princípio axial, a oposição radical entre os princípios produziria tensões estruturais aparentemente insuperáveis.

Partindo dessas reflexões LIPOVETSKY (1989) detecta uma relação profunda entre o modernismo e os valores democráticos que ganharam progressivamente hegemonia nas sociedades ocidentais a partir do final do século XVIII. É uma colocação interessante: ao considerar um período histórico mais amplo, é possível identificar na cultura modernista o mesmo impulso transformador que, na ordem política, havia produzido as sociedades democráticas; e que, antes, em outra esfera gerara a economia de mercado. Ao contrário de BELL (1976), LIPOVETSKY (1989) é otimista. Embora tenha sido conduzido por uma elite, o movimento cultural modernista foi um primeiro passo na democratização da cultura. A instituição do sufrágio e sua progressiva universalização

já haviam democratizado a ordem política. E antes o capitalismo democratizara radicalmente a propriedade: com a abolição da escravidão e de formas servis, cada pessoa passa a ser dona de sua própria força de trabalho, e detentora de exclusividade dos direitos sobre essa, ainda que grande parte da população seja obrigada a alugá-la a um empregador. O modernismo, portanto, representaria a continuidade, na esfera da arte e da cultura, do processo libertário concluído na economia e iniciado na política.

O modernismo pode levar à relativização absoluta: se não há tradição, e se o que vale é o novo, tudo é possível e toda possibilidade, forma e conteúdo, se torna legítima. No extremo, massificada, tal orientação faz com que mesmo o novo deixe de ser radical e que a própria recuperação da tradição possa ser legítima, no retorno caótico e não impositivo, tampouco uniforme, das mesmas amarras com que se havia rompido. Instaurar-se-ia então a fase pós-moderna na visão de LIPOVETSKY (1989).

Aqui se considera que a mudança associada à emergência da sociedade de consumo representa não uma ruptura, mas uma continuidade do modernismo, que também pugnava por amplo controle social aliado a liberdade na esfera privada. O indivíduo moderno, rompido com as tradições, dessocializado e atomizado na caracterização de LIPOVETSKY (1989); inseguro e despido de referenciais segundo BAUMAN (1992), “desencaixado” na teorização de GIDDENS (1991), flutua ao sabor das modas, pode mudar seu estilo de vida de uma hora para outra. E a mudança pode ser independente de todos os determinantes de comportamento que representam a tradição, ou uma mudança em busca da segurança e da certeza conferidas por suas amarras, em um movimento de “reencaixe”, de busca da tradição.

O consumo, como coloca LIPOVETSKY (1989), é a forma adequada de controle social para o indivíduo flutuante. Não é mecânico nem totalitário, e suplanta em eficiência formas de controle desses tipos. Seu mecanismo de funcionamento é a sedução, o que não necessariamente implica ausência de planejamento. O sujeito que não consome o produto A, mas somente B, faz dentro de sua liberdade individual escolhas, combinando livremente elementos disponíveis. Quanto mais minuciosamente engenheiros e planejadores conseguem “elaborar” o quotidiano, maior é a regulação. O paradoxo da sociedade de consumo é que isso também aumenta o número de opções na esfera individual. A batata frita padronizada de outrora tem agora incontáveis sabores que variam do churrasco de picanha ao azeite de oliva com manjericão. Os indivíduos ficam

com uma percepção ampliada de liberdade e autodeterminação. Têm comportamentos coletivos previsíveis, mas são singulares em suas opções.

Um grande problema para as teorias de estratificação, nesse cenário, é que compartimentos sociológicos tradicionalmente estanques, como os determinados por classe, raça, sexo e idade parecem se desvanecer como determinantes das escolhas. A multiplicidade de opções disponíveis induz o desejo de uma vida única, singular, a ser produzida e desfrutada – quase um projeto existencialista. Isto faz de cada indivíduo uma instância de seleção e combinação de opções. Progressivamente as outrora importantes e diferentes identidades coletivas vão sendo homogeneizadas, tornando a massa mais indistinta e os indivíduos mais distintos, dotados de identidade singulares. A vida passaria, então, a ser uma constante sucessão de escolhas hedonistas. Imperaria o narcisismo e o culto ao corpo (LASCH, 1983) entre indivíduos altamente informados e possuídos da sensação de serem responsáveis por seus próprios destinos. Mesmo os processos de socialização deixariam de ter conteúdos fortemente definidos, tornando-se mais fluidos.

Parafraseando LIPOVETSKY (1989), o indivíduo consumidor é uma colcha de retalhos heteróclita, uma combinação polimorfa sem grandes preocupações morais – muito menos consciência de classe. É o consumo enquanto estrutura aberta e dinâmica que permite o “desenraizamento” social dos indivíduos. Com a transição das sociedades industriais para as sociedades de consumo de massa, os sistemas sociais se tornariam abertos e flexíveis. A liberdade na sociedade de consumo estará relacionada à capacidade de consumir. A renda passará a ser o principal símbolo da posição social das pessoas, e a distribuição de renda a representação mais adequada da desigualdade.