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Raça, discriminação e desigualdade racial

Capítulo 2: Raça e discriminação racial

2.4 Raça, discriminação e desigualdade racial

Não existe nas ciências sociais consenso teórico ou metodológico sobre raça, que é um dos conceitos centrais desta pesquisa. Por isso, um dos objetivos deste capítulo era esclarecer o que se entende por raça, e alguns conceitos correlatos que são amplamente empregados, como racismo, preconceito e discriminação racial. O segundo objetivo era examinar detidamente o sistema de classificação de cor ou raça usado pelo IBGE, por que toda a análise empírica realizada nesta pesquisa se baseia nesse sistema para identificar brancos e negros. O terceiro objetivo era justificar uma forma particular de usar os dados gerados pela classificação, agregar os pretos e os pardos em um só grupo e designá-lo negro. Para cada objetivo, foi dedicada uma parte deste capítulo.

Na primeira parte, argumentou-se ser a raça uma construção sócio-histórica que proporciona uma forma de percepção da diversidade dos seres humanos. É uma categoria social usada para designar grandes grupos humanos que compartilham uma marca visível, corporal ou não, de sua progênie comum, real ou mítica. A noção de que os povos humanos são diversos em aparência devido às origens distintas é relativamente comum, havendo muitos exemplos históricos do seu uso.

O fato de as sociedades usarem raça para designar, identificar e diferenciar grandes grupos humanos se torna fonte potencial de desigualdade quando se atribui a estes grupos raciais características que podem ser usadas para estabelecer hierarquias de superioridade entre as raças. Isso gera racismo e preconceito, levando a situações de discriminação racial, que acumuladas se traduzem em desvantagens para o grupo vitimado. No Brasil, o preconceito racial se caracteriza por ser preponderantemente de marca. Ter um corpo de aparência branca – com as marcas que se imagina ter o branco, cor da pele, cabelos, os traços da face – é o ideal. Quem traz no corpo as marcas do negro, pardos ou pretos, se distancia do ideal se tornando vítima potencial de discriminações.

Na segunda parte deste capítulo, a forma particular de o IBGE, em seus levantamentos, operacionalizar a pergunta que permite a identificação racial, mediante a auto- declaração de cor ou raça segundo um conjunto predeterminado de categorias foi analisada de forma detalhada, segundo vários aspectos. Os resultados dessa análise permitem concluir que o sistema classificatório de cor ou raça é adequado ao estudo da desigualdade racial no Brasil, embora, obviamente, não seja perfeito.

Inicialmente constatou-se que o uso do método de identificação da pertença a um grupo por auto-declaração não é “puro”, por que nem sempre as pessoas respondem por si nos questionários de censos e pesquisas domiciliares. Crianças, por exemplo, têm a cor declarada por adultos. Assim, parte das pessoas tem o grupo de cor ou raça definido por hetero-atribuição. Mas é realizada por outro membro do grupo doméstico, provavelmente uma pessoa muito próxima ao sujeito, e não por um estranho, como o entrevistador. Lembrando que a unidade pesquisada é o grupo doméstico, e a responsabilidade pela definição da cor fica com um membro, para todos os efeitos é auto-atribuição pela unidade amostral.

De qualquer forma, contrastando o resultado da classificação racial realizada pelo entrevistador ao da feita pelos próprios indivíduos ou seus grupos domésticos, conclui- se que não há diferenças muito grandes nos resultados produzidos por cada método. As freqüências relativas das categorias são semelhantes e as duas classificações são fortemente correlacionadas. Por auto-atribuição, porém, as composições raciais resultantes são pouco mais escuras do que as obtidas por hetero-atribuição. Tomando a auto-atribuição como referência, os entrevistadores tendem a branquear alguns indivíduos, provavelmente aqueles nas fronteiras de cor.

Depois, uma breve história ilustrou não ser a classificação de “cor ou raça” empregada pelo IBGE simplesmente uma invenção saída de algum gabinete. Suas categorias têm uma história, que reflete em grande grau a própria história das relações raciais brasileiras. O fato de o sistema de classificação ser de “cor ou raça” revela sua adequação ao tipo de preconceito existente no Brasil e sua inspiração por esse. De todas as marcas corporais que permitem que as pessoas distingam raças, a mais importante é a cor da pele, justamente o aspecto pelo qual as pesquisas captam o pertencimento racial. A reflexão sobre o preconceito de marca fornece, portanto, uma base teórica à classificação do IBGE.

Uma crítica comum à classificação do IBGE é a de que seu conjunto de categorias seria muito pequeno e não corresponderia à representação racial que os brasileiros teriam de si. Todavia, foram mostradas na segunda seção deste capítulo evidências sólidas de que a tese do arco-íris das cores não se sustenta. Os brasileiros usam espontaneamente um conjunto restrito de categorias para se definirem racialmente, muito bem representado pela classificação, cujas categorias têm fluidez social. A maior parte dos entrevistados

nas pesquisas com respostas espontâneas à pergunta de cor usou uma categoria da classificação para se definir.

A única categoria freqüente na declaração espontânea da cor que não é representada na classificação é a morena e suas tonalidades. A maior parte das pessoas que se dizem morenas depois se enquadra como parda quando induzida a escolher. Apesar de a categoria parda ser uma fonte constante de críticas à classificação, há razões para não substituí-la por morena, sendo a principal o fato de que essa categoria traria ainda mais imprecisão, complicando uma tarefa já razoavelmente complexa. O branco bronzeado depois de uma temporada de sol, por exemplo, seria moreno?

Outro ponto são justamente as reivindicações de maior precisão ou objetividade na classificação. No caso da delimitação de grupos raciais no Brasil, não é só o instrumento de mensuração que é impreciso, mas o fenômeno ao qual se endereça, pois a definição da pertença racial varia circunstancialmente. As categorias abrangentes e de fronteiras fluidas da classificação permitem lidar com a imprecisão do fenômeno da identificação racial. Embora não se possa a partir dos resultados de seu emprego saber exatamente qual é o “fenótipo” nacional ideal do pardo, ou do preto, ou do branco, identificar-se-á as pessoas que se enquadram nessas categorias em seus contextos relacionais locais.

O propósito da classificação racial não é estabelecer um tipo “biológico” válido para todo o país, mas se aproximar de uma caracterização sociocultural local. O que interessa, onde vige o preconceito de marca, é a carga de traços nos indivíduos do que se imagina, em cada local, ser a aparência do negro. Pardos têm menos traços, mas esses existem, pois se não fosse assim não seriam pardos, e sim brancos; e é a presença desses traços que os elegerá vítimas potenciais de discriminações.

Essa foi uma das justificativas oferecidas na terceira seção deste capítulo para a agregação de pretos e pardos em um único grupo racial, que será contrastado aos brancos, o fato de que a fonte das discriminações contra eles é a mesma. O racismo e o preconceito racial afetam tanto pretos quanto pardos, fazendo com que tenham características socioeconômicas relativamente homogêneas, e apresentando desigualdade semelhante em relação aos brancos. Isso produz uma identidade estatística entre os dois grupos, que é a segunda justificativa para a agregação. De resto, a agregação produz vantagens, como a simplificação da análise, pois os resultados são

apresentados apenas para dois grupos, e evita o problema estatístico que pode ser criado pelo menor tamanho do grupo dos pretos.

Quanto ao nome dado ao agregado de pretos e pardos, aqui se optou por negro. É uma prática consagrada nas ciências sociais brasileiras por ser teórica e historicamente bem justificada, ainda que, principalmente por motivos de ordem política, tenha sido questionada em tempos recentes. Há quem prefira “não-branco”. Há quem prefira simplesmente não falar sobre raça, por considerar que isso acentua a crença na realidade biológica das raças herdada da ciência do século XIX.

No fim, o que realmente importa é que o problema da desigualdade racial de renda, tratado nesta pesquisa, não vai desaparecer se o nome do agregado for trocado, ou se pretos e pardos forem analisados separadamente. As produções psicológicas e sociológicas de uma cultura, parafraseando LÉVI-STRAUSS, orientam as ações das pessoas, produzindo efeitos concretos. A representação da diversidade humana por raças é uma dessas produções, portanto, conjuntamente com seus efeitos deve ser objeto de estudo sociológico. De variadas formas, pode se manifestar em orientações racistas ou preconceituosas, levando a situações de discriminação na interação entre pessoas cuja aparência as aloca em grupos raciais diferentes.

No Brasil, onde vige o preconceito racial de marca, aqueles que trazem no físico as marcas da ascendência africana, pretos ou pardos, têm grande chance de serem vítimas de discriminação. A repetição freqüente dessas situações, principalmente na esfera econômica, faz com que os grupos vitimados tenham piores condições de vida. Todavia, os efeitos da discriminação acumulados não são a única fonte de desigualdade racial. A tese que orienta esta pesquisa considera que a desigualdade racial de renda no Brasil se deve principalmente à origem social das pessoas, e, em menor grau, à existência de discriminação racial contra os negros nos processos que determinam a renda.