• Nenhum resultado encontrado

Mariana Pinta7

Não foram insignificantes motivos que conduziram o Padre António Vieira as margens do Amazonas, desse formidável rei dos rios que luta peito a peito com o oceano, reúne-o e lhe invade o domínio. A uns coube a sorte de varar florestas ainda não calcadas pelo pé do homem civilizado, de afrontar perigos imensos, extraor- dinários para descobrirem os veios das suspiradas minas; enquanto que outros embevecidos na contemplação de tão estupendas ma- ravilhas, devorados pelo amor da ciência iam indagar do gênio do rio a revelação de seus mistérios, o número de seus feudos, quais as nações que lhe bordavam as margens.

Assuntos de maior transcendência guiaram o celebre orador de Portugal às majestosas florestas do Grão-Pará. Era o amor da religião e da humanidade quem o arrancava do meio de seus triunfos, da admiração dos reis, e do respeito e veneração dos povos. Educado na América desde a mais tenra infância, aquecido pelo sol bri- lhante dos trópicos, ele preferia as florestas virgens do mundo da natureza aos decantados monumentos que adornam o mundo da civilização – a Europa.

Era então o tempo em que a cobiça e a avidez do ganho mais destruidoras que a peste, mais insaciáveis que a sede, tornavam ignóbeis e infames os dois benefícios da civilização. As cordilheiras gemiam com o despedaçamento de suas entranhas, e as florestas

6 Silva, 1838, 139: 1-3.

7 O texto foi atualizado ortograficamente, segundo as normas atuais do padrão

culto da língua portuguesa. Quanto aos demais aspectos expressivos, procurou-se preservá-los tais quais estão em O Cronista, sobretudo os que se referem à pontuação, ainda que, em alguns momentos pontuais, signifique menosprezar as regras atuais.

se horrorizavam com os últimos arrancos desses valentes filhos do deserto, que preferiam a morte dos combates ao lento suplicio da escavação das minas.

Contra tamanhos atentados ergueram-se, poucos sim, mas gene- rosos brados. O mundo já não era governado pelo egoísmo, nem povos e nações inteiras atadas ao carro vencedor iam aviltar-se no pó do capitólio. Uma religião radiante havia dissipado as trevas do paganismo, o Filho do Eterno encarnara no seio de uma Virgem imaculada, e seus ditames e sua moral tinham regenerado o mundo. – Las Casas troou contra os assassinos dos descendentes do Incas, e Vieira ergue-se no Brasil o defensor dos filhos de Tupá.

Embalde instam o rei e a corte porque não parta o missionário: – não, ele quer defender infelizes, propagar na América a vinha do Senhor. Embalde a corte lhe acena com as palmas e as vitorias do gênio; que importam elas? – Sua missão é mais augusta, um anjo revelhou-lha, – é o céu quem o envia. Quem sabe se uma coroa do martírio… Oh! E o que mais anseia um missionário!

Já o galeão, que devia em troco de ninharias voltar pejado de ouro para enriquecer a metrópole, aprestava-se para a viagem: a âncora a pouco e pouco se ia suspendendo, já o Tejo como que o empurrava para longe de si, e os marinheiros saudosos entoavam a canção da despedida… quando a um sinal de bordo estremece o navio com o baque da âncora que de novo encrava-se no leito do rio. Que será? Um enviado da parte de El-Rei que terminantemente se opõem a partida. Inúteis esforços, em vão os teólogos se reúnem para decidirem se é mais vantajosa à Religião a ficada ou a ida do missionário; – pode mais o céu que as ordens do soberano; na primeira ocasião partiu…

Tão brandamente os ventos o levavam Como quem o céu tinha por amigo.

Chegado ao Maranhão passou-se depois ao Pará onde a fama de seu nome já tinha ecoado, e foi recebido em triunfo. Sem con-

templações a interesses humanos, como superior que era a todos eles, o missionário por toda parte expande enérgico os sentimentos de seu coração: ora convoca os principais do país para advogar a causa dos indígenas, ora embrenha-se pelas florestas a dentro, regenerando as almas na água misteriosa do batismo, anunciando aos gentios uma religião pura, cheia de bondade e de esperança.

Quão belo não seria vê-lo com essa figura majestosa e respeitável, essas vestes talares do sacerdócio, esses olhos vivos e preto cinti- lando engenho, essa palavra que aterrorizara os ímpios da Batavia, unir sua voz aos sibilos dos ventos, ao ruído das cataratas, aos uivos do tigre, às ruidosas exclamações dos filhos das florestas! Os arcos prestes a desprender a seta que não erra caiam a seus pés, e os braços, acostumados a lutar com a natureza em forças, erguiam no meio do deserto o sinal da redenção. Não eram templos elevados pelo orgulho dos homens a topetar com as nuvens que abrigavam os fiéis, uma simples capela de palma simbolizava a inocência de seus corações sinceros; – dir-se-ia que a singeleza rústica dos tempos primitivos da Igreja havia reaparecido na América.

Tanto entusiasmo, tão fervorosa devoção pela causa dos Índios não podia deixar de acusar-lhe inumerosos inimigos no meio de uma sociedade gangrenada pela corrupção e avidez de ganho. – Seus compatriotas opuseram-se com toda a energia a causa dos desvalidos. Vieira, conhecendo os tramas de seus inimigos, escreve a El-Rei dando parte de tudo que havia acontecido, pedindo pro- teção aos Índios; as cartas foram interceptadas e voltaram as mãos daqueles que mais encarniçados se haviam mostrado para com eles; tudo foi patente, o raio já lampeja sobre a cabeça do missionário, é mais uma prova – que a eternidade é a recompensa do sacrifício.

Era um belo dia de festa no colégio dos Jesuítas; os sinos tocavam santos, o símbolo da inocência e da pureza, a hóstia imaculada em sacrifício à Divindade aos céus subia, enquanto que os fiéis ajoelhados batiam nos peitos pedindo misericórdia

ao cordeiro de Deus; as nuvens de incenso e mirra despendidas dos turíbulos compassados, e os sons melancólicos do órgão pa- reciam envolver todos os fiéis em uma atmosfera de harmonia e perfumes… Eis que vozes confusas vem interromper a meditação dos fiéis, um grupo de colonos entra armado e arranca do Altar os ministros do Crucificado. Como aquele que mais venerado era entre os seus, foi Vieira o primeiro que buscavam, sem o maior sobressalto este se apresenta às turbas destemido.

Que é da tua sabedoria e artes? Porque te não livras deste conflito? dizia-lhe um: Se és santo porque não fazes com que sucumbamos? repetia-lhe outro. Todas estas blasfêmias ouvia o missionário, mas sua boca não dava uma palavra. Embalde a tempestade embravecida arroja suas fúrias contra o Chimborazo, a bonança vem e acha-o no mesmo lugar – imóvel.

Depois de atravessar as ruas públicas, foi o Padre Vieira condu- zido à prisão, à ermida de São João Batista. – Notável coincidência! O pregador do deserto, aquele que havia anunciado ao mundo a vinda do Redentor hospedou em seu templo um pregador do deserto, que também viera anunciar a religião do Crucificado às nações desconhecidas do novo mundo.

Sentinelas estavam postadas para que ninguém ousasse falar ao missionário. A Providência porém não desampara os seus es- colhidos, no meio do deserto faz chover maná e brotar arroios de água cristalina do âmago das rochas.

Havia por aí perto uma Índia, evocada as trevas da idolatria pelo zelo de Vieira. Foi Mariana Pinta, informada de quanto acontecera ao pai dos Índios, e bárbara, ainda há pouco retraída a fereza do deserto, compadece-se de seus infortúnios, enquanto os próprios concidadãos iníquos negavam-lhe até o pão da indigeneia.

Preciso foi iludir a vigilância dos guardas, entranhar-se entre as sombras da noite, para sem ser vista lançar aos pés do mis-

sionário uma oferenda, a única de que podia dispor – uma parte de seu alimento.

Entregue a mais profunda meditação sobre a perversidade dos homens, e o desamparo em que ficavam os Índios, ajoelhado ante o altar, cujos círios iluminavam-lhe a face, alheio a todas as conside- rações mundanas, roga o missionário ao Deus de piedade, que faça chover torrentes de bênçãos sobre os mesmos que o perseguem. Mariana entra e pasma… como a pobre neófita podia compreender esses êxtases de devoção, essa absorção de todas as faculdades humanas em um só ponto – na contemplação do Criador? Não se atrevendo a despertá-lo, ela vai depor o pequeno cabaz em que trazia a refeição, mas ele viu-a: – Mariana, que temeridade! Nunca, nunca mais, teme a malvadeza de meus inimigos.

Mariana não respondeu, mas seus olhos ergueram-se para o céu! Ao sair as sentinelas a viram e a maltrataram, não obstante, no dia seguinte, às mesmas horas, a neófita desempenhou sua tarefa. Era alta noite, quando o reflexo de um incêndio enrubescia todo o interior da capela, o missionário ergue-se da oração, pensando que seus inimigos tivessem lançado fogo ao templo de João; debruça-se em uma janela e vê ao longe a choupana da pobre neófita, que se desfazia em chamas, depois conheceu-lhe a voz e ouviu que ela dizia: – Queimaram minha casa! Está bom, cozinharei no meio do campo.

Até que Vieira fosse mandado para o Maranhão, Mariana não descontinuou suas visitas. Daí a mais de 28 anos, no dia 3 de junho de 1867 a capital do Pará estava risonha e alegre como em dia de festa que era; notável concurso de gente que empeçavam umas nas outras dirigia-se a igreja, em cujas torres

Tine festivo o repetido bronze.

De todas as aldeias vizinhas tinham concorrido quase todos os habitantes para tão assinalado dia com suas vestes domingueiras; o templo estava ricamente adornado, era um dia de missa nova.

Depois de os padrinhos terem dado água às mãos ao celebrante, colocou-se este no meio do altar; todos os olhos se fitaram em seu rosto, todas as mães invejavam a sorte de uma Índia que ali estava, quebrada pelos anos: foi ela segundo as cerimônias da nossa Igreja quem primeiro beijou as mãos do sacerdote… Oh! Que alegria, que contentamento não sentiu esse coração, vendo seu filho ministro do Deus vivo! Os Jesuítas, em reconhecimento ao que Mariana havia praticado para com o Padre Vieira, educaram-no e o filho da indígena foi colocado na Tribo dos Levitas.

Mariana sempre que se recordava desse tão ditoso momento, dizia as suas amigas; – Nunca tive maior prazer em minha visa; já posso morrer contente, e enxugava uma lágrima que se demorava sobre as rugas de seu alquebrado semblante.

F. R. da S.

Bibliografia

Barros, A. (1746). A Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra. Lisboa: Nova Oficina Silviana.

Galvão, W. N. (1979). Indianismo Revisitado. In C. Lafer (org.), Esboço de Figura:

homenagem a Antonio Candido (379-391). São Paulo: Duas Cidades.

Marques, W. J. (2015). O Poeta sem Livro e a Pietá Indígena. Campinas: UNICAMP. Meyer, M. (1996). Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras. Silva, F. R. (1838). Um Sonho. Gabinete de Leitura, 22, 175-176.

Silva, F. R. (1838). Os Três Desejos. O Cronista, 130, 1-3. Silva, F. R. (1838). Mariana Pinta. O Cronista, 139, 1-3.

Sobrinho, B. L. (1960). Os Precursores do Conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Referências e metáforas artísticas na obra do Padre António Vieira References and artistic metaphors in Father Antonio Vieira’s work Joana Balsa de Pinho CLEPUL-Universidade de Lisboa ORCID | 0000-0002-7713-0028

Resumo

A Obra Completa Padre António Vieira permitiu disponibilizar os textos da autoria de Vieira identificados até ao momento, o que possibilita a realização de estudos de temáticas circunscritas. Neste âmbito, o presente texto procura uma primeira análise a um tema pouco explorado nos estudos vieirianos e que se re- laciona com as referências e metáforas artísticas existentes na obra do Padre António Vieira, procurando um conhecimento mais aprofundado da obra escrita de António Vieira e das suas carac- terísticas. Nomeadamente a sua cultura artística, que referencias faz às diferentes artes e manifestações artísticas, aos artistas e às obras de arte, em que contexto e com que finalidade. Palavras-chave: Metáfora; artes; Vieira; Retórica; Imagética

Abstract

The Obra Completa Padre António Vieira made available the texts of Vieira whose authorship was identified so far, which makes it possible to carry out studies on specific themes. In this

context, this article seeks to provide a first analysis of a theme not yet explored in the studies of Vieira and related to the re- ferences and artistic metaphors existing in the work of Father António Vieira, seeking a deeper knowledge of the written work of António Vieira and his features, namely its artistic culture, its references to the different arts and artistic manifestations, artists and works of art, in what context and for what purpose. Keywords: Metaphor; arts; Vieira; Rhetoric; Imagery

“Os corpos retratam-se com o pincel, as Almas com a pena.”

Padre António Vieira1

A publicação da obra completa do Padre António Vieira, dirigida pelos professores José Eduardo Franco e Pedro Calafate, promo- vida pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e publicada pelo Círculo de Leitores (2013-2014), colocou à disposição de investigadores e estudiosos a totalidade dos textos da autoria de Vieira até ao momento identificados. Esta disponibilização textual, possibilitada por esta edição e privilegiando uma metodologia ri- gorosa, permite atualmente a realização de estudos tematicamente circunscritos em diferentes áreas de conhecimento. Neste contexto, o presente texto procura uma primeira análise a uma área temática pouco explorada nos estudos vieirianos e que se relaciona com as referências artísticas existentes na obra do Padre António Vieira. Este estudo irá considerar vastíssima e erudita cultura literária e filosófica do jesuíta, procurando um conhecimento mais apro- fundado da sua obra e das suas características; nomeadamente

a sua cultura artística, que referências faz às diferentes artes e manifestações artísticas,2 aos artistas e às obras de arte, em que contexto e com que finalidade.

Esta temática é tanto mais relevante quanto uma das principais e mais citadas frases de Vieira, enquanto reflexão do próprio sobre a sua obra, se relaciona com esta problemática; referimo-nos à célebre frase em que compara a sua obra profética maior, a Clavis Prophetarum, a um “palácio”, e os seus textos parenéticos a “choupanas”. Esta “metáfora arquitetural”, baseada nestas duas arquiteturas e suas características distintivas, revela, como já foi referido, que valorizava pouco a im- portância dos seus textos de oratória sacra, por comparação com os escritos proféticos em que empenhou muito do seu capital e esforço intelectuais. Valerá a pena citar a frase correspondente, em carta di- rigida a Sebastião de Matos e Sousa (carta 751):

Contudo, lembrado das instâncias de Vossa Mercê, muito mais do que posso me aplico àquela fábrica que Vossa Mercê compara aos palácios da nossa corte. [...] Estando eu em Lisboa todo apli- cado à obra, a força de Castela e Portugal ma tiraram das mãos, querendo que, em lugar de palácios altíssimos, me ocupasse em fazer choupanas, que são os discursos vulgares que até agora se imprimiram. (Franco & Calafate, 2013-2014, I, IV: 516)

Sendo a obra do Padre António Vieira tão vasta e diversificada, abrangendo epistolografia, oratória sacra, textos proféticos, pare- ceres económicos, políticos e administrativos, escritos em defesa de minorias, poesia e teatro, é compreensível que as referências artísticas sejam também bastante diversas. E a primeira constatação

2 Pela sua natureza, ficam de fora as referências à “arte”, quando em contexto

da oposição ciência/arte, que abundam na obra e que se inserem noutro contexto, que transcende o entendimento contemporâneo de arte.

a destacar é que a natureza destas referências varia em função da tipologia textual que estamos a analisar. Concretizando, as refe- rências artísticas patentes da obra vieiriana vão do simples relato do concreto, diríamos hoje “jornalístico”, à complexa e profunda composição metafórica, com as aplicações mais singulares.3

Nos textos epistolográficos de cariz institucional, mais formais, do domínio do concreto, do real, do presente, vamos encontrar as referências mais descritivas e objetivas. Estas podem cons- tituir simples constatações, como a que ocorre numa carta ao padre-geral (carta 101), onde refere as “coisas necessárias para a conservação e aumento da Missão”; de entre elas destaca que “a Missão seja socorrida com um grande número de sujeitos” (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 287), designadamente “Irmãos coadjutores oficiais, principalmente pintores, [...] carpinteiros, [e] pedreiros”. Todavia, nesta tipologia documental podem também existir referências mais complexas, e destacamos uma outra carta ao padre-geral (carta 108), em que um conjunto de parágrafos se refere ao “edifício do Maranhão”:

Perguntei 1.º [, aos padres na junta,] se era bem que nesta Missão houvesse uma casa maior, que fosse como de criação, da qual saíssem e à qual se recolhessem os que andavam pelas Missões, e na qual se conservasse tudo o que é necessário para elas. E responderam todos uniformemente que sim. Perguntei 2.º em que lugar era bem que estivesse esta casa. [...] todos os mais disseram que era bem que estivesse no Maranhão. Perguntei 3.° se esta casa se havia de fazer toda de novo, ou se se havia de continuar com as paredes das casas velhas. Responderam que se continuasse com as paredes das casas velhas. Com esta resolução, comunicando a traça com o Padre Francisco da Veiga, e com o Irmão Simão Luís, que

são inteligentes, fiz dois rascunhos. E perguntei 4.° se aprovavam alguma daquelas traças, ou se ocorria outra, porquanto na terra não há arquitetos. Responderam também todos que aprovavam uma das duas. Perguntei último quando seria bem que se fizesse a obra, dizendo o aparelho que havia para ela. E responderam da mesma maneira todos que logo [...]; porque a casa constava de um corredor com quatro cubículos por baixo e seis por cima, dos quais um era livraria, outro rouparia, outro botica, outro adega, outro tinha as coisas da sacristia, outro, outros despejos de casa, com que apenas ficavam quatro livres para morar e tomar exer- cícios, sendo às vezes dezasseis os que ali se ajuntavam, e não havendo outro lugar em que receber as visitas dos seculares senão o mesmo corredor. Por estas razões foram de voto todos que a obra se começasse logo havendo com quê. [...] Na execução da obra ordenei que se seguisse em tudo o que dissesse o mestre pedreiro, e assim se fez pontualmente, exceto só o alicerce de um canto, o qual mandou fazer o Padre Ricardo Careu estando eu ausente; e dizendo o mestre pedreiro que era necessário ser mais fundo e mais largo, o Padre, seguindo o parecer de um carpinteiro, quis que tivesse menos fundo e menos largura. E este é só o de- feito ou escrúpulo que se acha naquela obra, sendo no demais tão bem traçada e obrada como os bons colégios da Europa. (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 303-306)

Este trecho, de que existem outros semelhantes, de uma grande riqueza informativa, dá-nos elementos para compreendermos di- ferentes aspetos da ação do Padre António Vieira, da vivência da comunidade jesuíta, passando por aspetos técnicos da construção histórica seiscentista. Da decisão colegial de construção de um novo edifício à forma de ultrapassar dificuldades técnicas como a falta de um arquiteto que concebesse o edifício, passando pelos conflitos que se podem gerar num processo desta natureza e pelas

preocupações financeiras; destaca-se ainda a visão pragmática de Vieira na resolução de um problema e a sua habilidade para lidar com questões exteriores ao âmbito religioso e pastoral.

Um texto semelhante, ainda que mais breve, surge numa carta ao padre superior do Maranhão (carta 588), e apresenta sentido análogo: Sobre a traça da igreja e lugar dela, fizemos cá nossa consulta, o que pareceu mais conveniente é o que vai delineado. [...] A igreja velha dará todos os materiais para a portaria e estudos. […] E en- tretanto me parecia que se abrissem e enchessem os alicerces, assim da igreja como do corredor, para que fiquem bem caldeados e sólidos, advertindo que o terreno sobre que se há de fundar o