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Em muito diferente circunstância foi pregado o “Sermão da

Primeira Oitava da Páscoa”, [23 de abril] de 1656, na matriz da cidade de Belém, no Grão-Pará. Vieira regressara ao Maranhão, a 16 de maio do ano anterior, da sua estada “vertiginosa” na Corte, munido da Lei da Liberdade dos Índios, por ele agenciada. A sua fama vinha alicerçada pelos nove sermões da Quaresma de 1655, a maioria deles na Capela Real; contava 48 anos de idade; triunfava em todas as frentes.

O “melindre” desta pregação, em tempo de Páscoa, derivava do facto “de se ter desvanecido a esperança das Minas, que com grandes empenhos se tinham ido descobrir”, como claramente assinala a di- dascália do sermão. Muito habilmente, Vieira tira partido do regresso desanimado à sua terra dos dois discípulos de Emaús (Lc 24, 17-21), depois de se ter “desvanecido” para eles a ambição de grandeza

humana que teria representado a convivência com Jesus, o Messias afinal humilhado, crucificado e morto.

O pregador vai, com grande mestria e senso psicológico, desen- tranhando as causas da “tristeza declarada” e da “esperança perdida” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 114). O sermão, eminentemente persuasivo, a contrapelo do que se poderia esperar, defende a tese de que foi muito melhor as minas não se terem descoberto: “muitas vezes está a nossa perdição em sucederem as coisas como esperamos, e pelo contrário está o nosso remédio, e a nossa conservação, em não terem o sucesso que se pretendia” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 115). E todo o discurso progride, de razão em razão, desen- ganando o auditório, ao acompanhar, podemos dizer, em espírito, o possível descobrimento das minas com os perigos daí resultantes (passados, presentes e futuros) e, ao mesmo tempo, trazendo à colação exemplos colhidos da Bíblia, como provas evidentes das suas asserções que poderiam ser contestáveis.

Aproxima-se, assim, do núcleo do sermão, a écfrase estupenda das minas, que ocupa todo o cap. v. Vieira extrai, da descrição ecfrástica das minas, duas conclusões que desenvolve nos dois capítulos se- guintes. A primeira: “muito maior mercê vos fez Deus, e muito mais bem-afortunados fostes em não se acharem as minas, que se o ouro, e prata, que se supunha, e esperava delas, se descobrisse” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 124); a segunda: “também para o mesmo Reino em geral antes haviam de ser de maior opressão, e ruína, que de utilidade, e aumento” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 128). No cap. viii, o último da dispositio, o pregador, num golpe ge- nial, apresenta ao auditório as “minas” que contrapõe às de ouro e prata, a que chama “suas”, as que tinha prometido descobrir e agora, finalmente, desvenda: as almas, nossas e alheias, que Cristo ressuscitado, descendo ao inferno, “foi buscar, e descobrir umas minas mais ricas que toda a prata, e todo o ouro, cujo preço, e lugar

só Ele conhecia, e nenhum homem, nem Anjo, senão Ele as podia descobrir” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 132).

O cap. v, no coração do sermão, é a pedra de toque que irradia, como onda concêntrica, para todas as partes do desenvol- vimento do tema. Exemplo paradigmático da écfrase pela “vista imaginativa”. Vieira não conhece de visu as minas, ao contrário do engenho de açúcar. Por isso, na “composição, vendo o lugar”, aqui, realmente para ele, “invisível”, utiliza todo o potencial da sua extraordinária criatividade verbal para descrever, diante dos nossos olhos, cenas vivas com as cores, os ruídos e as imagens mais aterradoramente fantásticas.

Seria preciso ler o capítulo todo para tirarmos dele todo o pro- veito. Infelizmente, salto algum trecho. Mas não quero descurar a citação de Is 2, nomeadamente os versículos 19 e 20, que lhe servem de suporte. Apresento a tradução do atual ofício de leitura da liturgia das horas próprio da terça-feira da primeira semana do Advento:

Hão-de refugiar-se nas cavernas dos rochedos e nos antros da terra, por causa da presença terrível do Senhor e do esplendor da sua majestade, quando Ele se levantar para encher a Terra de pavor. Naquele dia, o homem lançará às toupeiras e aos morcegos os seus ídolos de oiro, que havia fabricado para os adorar. As toupeiras e os morcegos, “neste escuro, e horrendo teatro da paciência sem virtude” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 121), que são as minas de ouro e prata, passam, no texto de Vieira, a designar os homens que nelas trabalham:

Eu nunca fui ao Potussi, nem vi minas; porém nos Livros, que descrevem o que nelas passa, não só causa espanto, mas horror, ler a fábrica, e as máquinas, os artifícios, e a força, o trabalho, e os perigos, com que as montanhas se cavam, as betas se seguem,

e perdidas se tornam a buscar; os encontros de pedernais impe- netráveis, ou de águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais, ou se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra parte os mesmos montes; o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas, e dos outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinquenta libras de peso, com que se batem, cortam, e arrancam as pedras, ou se precipitam com maior perigo do alto; e tudo isto naquelas profundíssimas concavidades, ou infernos, onde nunca entrou o raio do Sol, alumiados malignamente aqueles infelizes Ciclopes só com a luz escassa, e contrafeita de alguns fogos artificiais, cujo hálito, fumo, e vapor ardente lhes toma a respiração, e muitas vezes os afoga. […] Ainda tem outra propriedade: porque uns como toupeiras com os pés, e mãos na terra a andam cavando, revolvendo, e mu- dando continuamente, e outros como morcegos suspensos no ar estão picando as pedras, e sangrando as suas veias com o corpo, e com a vida pendente de uma corda. Houve jamais algum anaco- reta dos que habitavam as covas, que fizesse tal penitência? Pois ainda não ouvistes o mais temeroso dela.

Solapadas por baixo aquelas grandes montanhas, todo o peso imenso delas se sustenta sobre pilares da mesma matéria, que vão deixando a espaços, os quais, se enfraquecem, ou quebram, como acontece muitas vezes, qual é o efeito? Toda a montanha, ou grande parte dela cai de repente, e a multidão, que andava desenterrando a prata, fica sepultada com ela em um momento, sem outra notícia de tamanho, e tão miserável estrago, que a que deu aos de muito longe o estrondo da ruína, e o tremor de toda a terra. Isto é o que se escreve, e se escreve muito menos do que verdadeiramente é. Baste por prova que a sevícia e crueldade dos Neros, e Dioclecianos comutavam a morte, e os tormentos dos Cristãos em os mandar servir, e trabalhar nas minas; e a Igreja, que com tanta dificuldade, e consideração examina, e avalia os

merecimentos dos Santos, canonizava, e venerava por Mártires aos que nelas acabavam a vida. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 121-122)

Não é preciso encarecer o efeito que causaria nos ouvintes uma tal descrição e as consequências que o orador dela extrai:

A roça haviam-vo-la de embargar para os mantimentos das minas; a casa haviam-vo-la de tomar de aposentadoria para os Oficiais das minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os que o cultivassem haviam de ir para as minas; e vós mesmo não havíeis de ser vossos, porque vos haviam de apenar para o que tivésseis, ou não tivésseis préstimo; e só os vossos Engenhos ha- viam de ter muito que moer, porque vós, e vossos filhos havíeis de ser os moídos. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 123) Podemos, talvez, pensar num momentâneo desafogo catártico, depois deste clímax trágico. O que se esperaria alcançar com o ouro e a prata foi comparado ao inferno. O desvanecimento das minas transformar-se-ia na paz e na liberdade reencontradas, como aconteceu com os discípulos de Emaús, depois de terem descoberto Cristo ressuscitado na pessoa daquele peregrino incógnito que deles se aproximou?

Vieira não é íngénuo, mas acredita convictamente na força da palavra que pode mover os corações. É por isso e para isso que faz literatura. Conhece as paixões humanas. Fala da sua experiência amadurecida por muito ter observado, em primeiro lugar em si próprio. Sente que tem autoridade, exatamente porque nunca viu minas, isto é, não se envolveu na ambição de as querer descobrir e encontrar. O testemunho da sua isenção visiva torna-o mais cre- dível da sua autoridade moral. Pinta de tal modo o que não viu que o dá a ver como se o tivesse visto e de um modo mais fundo

e verdadeiro. Torna-se um visionário convincente. Inverte o foco da atenção, do ouro para a alma, do brilho à vista desarmada para a luz interior da consciência.

Falando a cristãos, não os adverte primeiramente, note-se, com os castigos do pecado da idolatria das riquezas materiais, mas para animá-los com as verdadeiras alegrias da fé: “Mas se temos Fé, e juízo, como não há de prevalecer a alegria, o gosto, e a felicidade de Deus nos ter descoberto estas minas do Céu, à falsa, e mal entendida tristeza, de não termos achado as da terra, que nela buscávamos?” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 138).

A maior liberdade de invenção, no caso da écfrase realizada pela “vista imaginativa”, transfigura-se, pela palavra arrebatadora de Vieira, numa persuasão mais universal e escatológica. A intenção moral do pregador induz a uma conversão de vida; redunda, pelo vigor da pintura da “composição, vendo o lugar”, possivelmente naquele “conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem para que mais o ame e o siga”, que S.to Inácio pede a Deus nos Exercícios Espirituais, n.º 104.