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Vindo ao primeiro exemplo Vieira fala, na Baía, “à Irmandade

dos Pretos de um Engenho em dia de São João Evangelista [27 de dezembro]. Ano de 1633”, como refere a didascália. Tem 25 anos de idade e ainda não é sacerdote.

O sermão, publicado em 1686 na primeira parte de Maria Rosa

Mística, é o 14.º dos 30 do Rosário, que constituem os tomos 9 e 10

da edição príncipe (e os vols. viii e ix, do t. ii, da Obra Completa). Segue uma dispositio académica, na linha do tradicional discurso retórico: enunciado, razões, prova, exemplo. Tratando-se da festa de S. João Evangelista, dois dias depois do Natal, e da Irmandade, supõe-se que de Nossa Senhora do Rosário, constituída pelos escravos negros que trabalham num engenho de açúcar, “estas circunstâncias mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa, e devoção que celebramos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 408) vão sendo progressivamente unificadas, através da consideração dos três nas- cimentos do Filho de Deus, ou dos três filhos da Virgem Maria, a saber, Jesus, S. João e os Pretos, vão sendo unificadas na “devoção que celebramos”, isto é, o rosário. O esquema triádico é também o dos três mistérios do rosário, gozosos, dolorosos e gloriosos.

Desfaz-se uma dúvida: como poderão os escravos rezar o rosário, se o “contínuo trabalho” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 412) parece impedi-los? Vieira vai buscar à Bíblia os três Salmos (8, 80 e 83) que David compôs para serem cantados pelos filhos de Coré, “os operários destas trabalhosas oficinas” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 413) que são os lagares e, por aproximação,

os engenhos. Coré significa Calvário, e os filhos do Calvário são os escravos negros, “os imitadores da Cruz, e Paixão de Cristo crucificado” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 413). Porque o Senhor não se esqueceu da sua Mãe, no meio dos seus trabalhos e tormentos, encomendando-a ao discípulo amado S. João, assim também devem os pretos encomendar-se à Senhora, enquanto tra- balham. E se Cristo, em três horas que esteve suspenso na Cruz, rezou três vezes a seu Pai, como não poderão os escravos rezar três vezes em vinte e quatro horas? Tanto mais que as três orações de Cristo na Cruz correspondem aos três mistérios do rosário. Por isso, os pretos, como discípulos amados da Senhora do Rosário, imitam S. João, meditando e cantando os mistérios dolorosos.

No encarecimento do “exemplo”, que constitui o cap. viii do sermão, o último antes da breve peroração, é que encontamos a passagem que agora nos ocupa:

Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em Sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as Suas dores às penas do inferno: Dolores inferni circundederunt me [Sl 17, 6]. E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes vossos Engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve, e discerta definição de quem chamou a um Engenho de açúcar “doce inferno”. E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma pelas suas bocas, ou ventas, por onde respiram o incêndio; os Etíopes, ou Ciclopes banhados em suor tão negros como robustos que sub- ministram a grossa, e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem, e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos, e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e

tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina, e apa- rato confuso, e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas, e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno. Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando, e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em Paraíso; o ruído em harmonia celestial; e os homens, posto que pretos, em Anjos. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 419)

Poderíamos aproximar este texto da minúcia descritiva evidenciada já na Carta Ânua de 30 de setembro de 1626, o primeiro escrito conhecido de Vieira, onde os seus dotes pictóricos se tornam de tal modo vivos que nos adentram naturalmente na experiência visiva e emocional daquilo que nos é narrado.

Não deverá ser estranha ao autor a polissemia da palavra “en- genho”: o local onde trabalham os escravos sofre um processo de transfiguração, o inferno converte-se “engenhosamente” em paraíso. A doçura não diz unicamente respeito ao açúcar; faz rescender o “suor” em “harmonia celestial” através das vozes em uníssono da oração. A metáfora concentra a atenção no fogo; os Ciclopes, Etnas, Vesúvios e Babilónias não desvirtuam a simbologia, antes pelo con- trário, reúnem mito, natureza e religião, sugerindo a cena dos três jovens na fornalha ardente do livro de Daniel (Dn 3), passeando entre as chamas acompanhados por um anjo.

Trata-se de um texto bíblico interpretado à luz da exegese neo- testamentária no significado anagógico da Ressurreição de Cristo. Vieira extrai daí a ligação dos mistérios dolorosos aos gloriosos e por esse caminho prossegue. Encontramos, pois, nesta écfrase alegórica do sermão, um bom exemplo do uso da “vista da imaginação” para

a “composição, vendo o lugar”, aqui, o engenho de açúcar, onde trabalham e sofrem os escravos negros, “o lugar material, assim como um templo ou monte onde se acha Jesus Cristo ou Nossa Senhora, conforme o que quero contemplar” (Exercícios Espirituais, 47, 4).

Não queiramos ler o texto à luz das nossas atuais conceções de justiça. Seria anacrónico atribuí-las ao Padre António Vieira. Nem a denominação “preto”, em si mesma, possuía, ao tempo, qualquer sentido pejorativo. O que está em causa não é tanto a mudança da condição social. O próprio orador o insinua, quando diz aos escravos: “Que entre todos os mistérios do Rosário, haveis de ser mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso estado, da vossa vida, e da vossa fortuna, que são os mistérios do- lorosos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 417). O que está, realmente, em causa é o modo como eles são tratados, ainda por cima por quem se diz cristão. O nosso jovem pregador não deixa de o denunciar, com certa timidez, porventura ainda longe da coragem e determinação que lhe serão habituais mais tarde.

Bastaria citar duas ocorrências:

que confusão […] será para os que se chamam senhores de Engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de que louvem, e sirvam a Deus, mas nem ainda de que O conheçam? (Franco & Calafate, 2013- -2014, II, VIII: 413)

E este que não deixa de ser, à luz da fé, um sério aviso à cons- ciência dos opressores e uma consolação verdadeira para os oprimidos:

Os gostos desta vida têm por consequência as penas, e as penas pelo contrário as glórias. E se esta é a ordem que Deus

guardou com Seu Filho, e com Sua Mãe, vejam os demais o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas, do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 422)

Vieira não desdenhou incluir este sermão das suas primícias, “as primícias daquelas ignorâncias que ainda se não podem chamar estudos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 397), na colectânea

Maria Rosa Mística. Afirma, talvez por devoção, mas erradamente,

ser “esta a primeira vez” que, “noviço no exercício, e na arte”, sobe “indignamente a tão sagrado lugar” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 397). Ao prepará-lo para a imprensa, mais de 50 anos depois de o ter pregado, parece que não lhe quis mudar traço nem linha. Conserva ainda, ingenuamente, como ele diz do rosário, “o cheiro das rosas, e flores que tanto enlevam, e agradam a Deus” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 412).