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CUIDADO INFANTIL NO ESPAÇO PÚBLICO: uma construção histórica

2 A CONSTRÇÃO DO LUGAR DA CRIANÇA NO ESPAÇO PÚBLICO

2.1 A creche: objeto da luta popular urbana

Outra vertente de análise abordou a creche como objeto de reivindicação, numa linha de investigação sociológica que emerge junto com o seu objeto de estudos no Brasil: as análises sobre as lutas urbanas, especialmente os movimentos de

reivindicação de serviços de consumo coletivo nas periferias das grandes cidades. Assim, os movimentos de luta por moradia, transporte público, infra-estrutura dos bairros e a própria luta por creches foram estudados como “práticas coletivas desenvolvidas pelas classes populares [...], configurada pela condição dos indivíduos enquanto moradores e consumidores da cidade e determinada pelo conjunto de relações sociais, que estruturam a acumulação do capital e a reprodução da força de trabalho de uma formação social” (GOHN, 1985, p.12). Tais análises procuraram estabelecer as relações desses movimentos com as políticas participacionistas do Estado brasileiro no período pós-64, além de, em certa medida, compreender as suas relações com outras instituições sociais, como a Igreja, os partidos políticos e outros movimentos sociais, como os movimentos de mulheres e feministas (GOHN, 1985). Com a perspectiva analítica adotada intencionava-se explicitar os conflitos próprios das sociedades capitalistas, manifestados por ações coletivas particulares, que se integravam em uma rede movimentalista, na qual uma “carência ia puxando a outra”(DOÍMO, 1993). Assim, a necessidade das creches é descrita a partir do quadro das necessidades de reprodução da força de trabalho não atendidas pelo capital por não consistir em necessidade imediata para tal reprodução. Gohn (1985) localiza, no entanto, o reconhecimento da necessidade de creches por parte do Estado brasileiro como parte do projeto de dominação do capitalista sobre o trabalhador, o que constituiria a forma coletiva de atender a imposições do capital de barateamento da força de trabalho e de formação de um exército de reserva de mão-de-obra, mediante a criação de condições de inserção da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho.

Essa mesma autora vê, por outro lado, o sentido dessas ações coletivas para as lideranças e demais grupos envolvidos nas ações de reivindicação por creches. Para ela, as reivindicações representaram, para as mulheres das classes populares, um fator de mobilização e constituíram fonte de organização dessas camadas da população tanto nos locais de trabalho quanto nos de moradia. Além disso, teria permitido colocar no centro a questão da cidadania, ao unir reivindicação por direito à luta por livre manifestação das pessoas, permitindo demonstrar a mistificação presente na idéia de igualdade.

O trabalho de Cristina Filgueiras (1992) sobre organizações populares em Belo Horizonte também apresenta uma análise do movimento de luta por creche a partir da construção dos movimentos sociais urbanos como objeto de estudos. Sua pesquisa, que

abordou outros três movimentos de reivindicação na cidade ao longo do período que vai de 1979 a 1988, visava compreender como uma população com forte nível de exclusão e grande fragilidade em termos sociais, econômicos e políticos podia colocar-se em relação com os Poderes Públicos, mediante a elaboração de estratégias de reivindicação e, principalmente, proclamar-se como tendo direitos. Preocupada fundamentalmente com as relações entre os movimentos de reivindicação e a questão da democracia no Brasil, Filgueiras toma como questão central a relação entre as organizações populares, os direitos sociais e as intervenções da política social dirigidas às camadas populares no Brasil. No caso do movimento de luta por creches, insere a problemática analisada no quadro das políticas de proteção à infância, destacando a importância desses movimentos de base nas transformações da legislação brasileira a partir de 1988.

Na sua perspectiva, as iniciativas de mulheres dos bairros de periferia, de criarem e levarem adiante a implementação de creches comunitárias, representaram uma tentativa de responder às necessidades imediatas daquela população, o que implicou um engajamento cada vez maior, permitindo a passagem de um discurso cada vez menos pessoal para um discurso coletivo – o do movimento. Filgueiras identificou, também, a emergência entre os integrantes do movimento de luta por creches, da preocupação com o conteúdo educativo das práticas com as crianças, bem como com a profissionalização do pessoal que nelas atuava. Ela identifica o momento de institucionalização do MLPC (1986) como aquele que coincide com uma mudança nos discursos dos dirigentes a esse respeito – da função quase que exclusiva de guarda para o reconhecimento da função educativa das creches –, o que ela supõe ser o resultado da assimilação do discurso de agentes de instituições de apoio, governamentais e não-governamentais, que enfatizavam a importância do desenvolvimento biopsicossocial das crianças.

Dias (1995) estudou o MLPC ressaltando as trajetórias das mulheres que o levaram adiante, procurando explicitar processos de constituição de novas identidades

sociais, em um quadro analítico que reconhecia a pluralidade de sujeitos do movimento

popular, em oposição à idéia de participação política vinculada somente aos canais institucionais como o sindicato e o partido (SADER, 1988; SADER; PAOLI, 1986). Esses elementos são parte do sistema de ação em que os atores que se envolveram nas lutas por direitos sociais e, especificamente, por creches, bem como na produção teórica a respeito, lutavam para controlar. Tais análises são parte da construção desse campo,

contribuindo para a conformação de uma imagem a respeito das camadas populares, cuja trajetória é a expressão de um movimento mais amplo que envolve tanto a academia quanto os movimentos de base e políticos em um processo interativo intenso, tal como analisado por Ana Maria Doímo (1993). Essas interações ocorrem de modo complexo e constituem um campo de historicidade, no sentido dado por Touraine (1996). Isso implica atribuir à realidade constituída como objeto de estudo um papel nos processos de transformação cultural de elementos estruturantes da nossa sociedade, como a família, as relações de gênero, a reprodução da força de trabalho e a socialização.

Nessa direção, busco resgatar a rede de relações nas quais mulheres moradoras dos bairros de periferia se organizam e, uma vez organizadas, constroem relações que vão fazer parte do seu sistema de ação, bem como, por outro lado, vão se constituir como atores sociais com outros indivíduos e organizações. Parto da própria creche comunitária como espaço de organização e de materialização (PRADO, 2002) da mobilização dessas pessoas e grupos, para, em seguida, relacioná-la à ação de outros grupos, especificamente organizações não-governamentais (ONGs) que desempenharam um papel central na construção das imagens a respeito da criança pequena e do atendimento em creches conforme procurarei demonstrar.