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A EXPERIÊNCIA SOCIAL DA PROFISSIONAL DE CRECHE EM BELO HORIZONTE: estratégias individuais e coletivas no processo de diferenciação e

estratégias individuais e coletivas no processo de diferenciação e luta por reconhecimento social

A EXPERIÊNCIA SOCIAL DA PROFISSIONAL DE CRECHE EM BELO HORIZONTE: estratégias individuais e coletivas no processo de diferenciação e

luta por reconhecimento social

Neste capítulo pretendo analisar os processos de diferenciação internos ao movimento de luta por creches, entendido como o conjunto de ações que foram estruturando o campo da atenção a crianças pequenas por instituições comunitárias em Belo Horizonte. Ele está estruturado em dois eixos. O primeiro refere-se aos processos que levaram à diferenciação, no plano da mobilização social, entre os interesses globais das creches e os das suas funcionárias. Esses processos envolvem as orientações das ações do próprio MLPC e de outras agências, bem como do Poder Público, constituindo-se um sistema de ação com reciprocidade entre os agentes. O segundo refere-se às experiências das profissionais de creches nesses processos. Suas experiências estão sendo aqui abordadas como trabalho coletivo e individual de articulação de diferentes lógicas de ação (DUBET, 1996), e como processo de construção da identidade coletiva, conforme o conceito de identization proposto por Melucci (1996).

As referências às creches comunitárias, nos diversos estudos a seu respeito, têm ocorrido de modo a situar as ações de luta por manutenção dessas creches, de um lado e, de outro, analisar os significados da participação, seja nos movimentos de bairro, seja no MLPC, para mulheres das camadas populares. Nessa direção, as creches aparecem nos discursos como uma unidade que, tal como observada no fenômeno empírico, acaba por ser elevada desse nível ao nível conceitual, conferindo-lhe, assim, uma homogeneidade e um peso ontológico (MELUCCI, 1996, p. 14-15). Ao buscar compreender os processos pelos quais essa organização se constituiu, vemos que não se pode partir, na análise, da existência de uma ação individual ou coletiva como unidade. Quando dizemos as creches, estamos falando de um universo de relações complexo, tanto no âmbito de sua organização no MLPC quanto no que concerne aos segmentos que constituem as instituições de atendimento por ele congregadas. Como vimos, as ações relacionadas ao atendimento em creche, no âmbito do chamado movimento popular, constituíam-se de uma pluralidade de sentidos, os quais, apesar das convergências, possuíam e possuem divergências que se manifestam após a conquista

da institucionalização do direito à creche. Da mesma forma, focalizando agora as creches comunitárias no MLPC como um conjunto de instituições de atendimento, nas quais existe um nível de organização e de distribuição do poder que assegura o seu funcionamento, estamos diante de um sistema de relações cotidianas do atendimento à criança pequena ainda pouco explorado, porque submerso nas questões gerais de manutenção das instituições e em tudo o que delas decorre. Como vimos, o MLPC mobilizou agências públicas e privadas para a sua estruturação e para a construção da interlocução com o Poder Público. As relações que resultaram, pelo menos em parte, dessa mobilização constituem condições para a emergência das profissionais de creche como um segmento que é parte do MLPC e de cada creche em particular, mas que, ao mesmo tempo, formula demandas que vão entrar em conflito com o próprio movimento, levando à formação de outra ação coletiva – a das profissionais – o que denota um movimento de constituição identitária – objeto de análise aqui.

Identifiquei dois movimentos que seguem direções opostas envolvendo trabalhadoras das creches e agências externas: a) na relação com agências públicas e privadas, as funcionárias das creches são o público de processos de formação a ele direcionados, cujo objetivo é intervir no trabalho cotidiano desenvolvido na creche; b) em um segundo momento, marcado por uma conjuntura em que a profissionalização do trabalho adquire centralidade no debate nacional da área, as intervenções nesse sentido são também utilizadas pelas funcionárias das creches para se destacarem como segmento com interesses específicos legítimos, o que será desenvolvido a seguir87.

Melucci (1996) propõe que a ação coletiva seja analisada não como um dado empírico unitário, mas como um sistema de relações nos quais se conjugam os recursos, as oportunidades e os contrários da ação. É necessário, então, verificar como esse datum é produzido, decompondo sua unidade para revelar a pluralidade de atitudes, significados e relações que tornam aquele conjunto um fenômeno inteiro. O fenômeno da ação coletiva é então considerado como produto de múltiplos e heterogêneos processos sociais, sendo necessário buscar entender como essa unidade é construída e que diferentes resultados são gerados pela interação desses vários componentes. Essa perspectiva permitirá, segundo ele, escapar dos dualismos em que as ciências sociais

87 Essas relações coincidem com o desenvolvido no capítulo 1, a respeito da relação entre o MLPC e os agentes externos.

incorreram ao analisar as ações coletivas e os movimentos sociais: de um lado, as explicações que se localizaram na estrutura social; de outro, aquelas que partem dos valores e discursos individuais. Nenhuma delas foi capaz de explicar como certos indivíduos ou grupos reconhecem o outro e tornam-se parte de um “nós”. As tentativas de superação desse dualismo nas últimas décadas contaram com duas perspectivas analíticas: uma, mais européia, para a qual a ação coletiva foi entendida como construção, e outra, desenvolvida por autores norte-americanos, em que a ação coletiva é explicada por meio da teoria da mobilização de recursos. Além disso, há aqueles que procuraram uma aproximação entre as duas abordagens.

Para Melucci (1996, p.20), a ação coletiva define-se como “um conjunto de práticas sociais a) envolvendo simultaneamente um número de indivíduos ou grupos, b) exibindo as mesmas características morfológicas na contigüidade do tempo e do espaço, c) implicando um campo social de relações e d) a capacidade das pessoas envolvidas de formar um sentido do que eles estão fazendo” (tradução livre). E acrescenta:

A ação coletiva é um sistema multipolar de ação que combina diferentes orientações, envolve múltiplos atores, e compreende um sistema de oportunidades e constrangimentos que formam as relações entre os atores. Atores produzem a ação coletiva porque eles são capazes de se auto-definirem e a suas relações com o meio (outros atores, recursos disponíveis, apresentam oportunidades e obstáculos atuais). O processo de criação de tais definições não é linear: os eventos nos quais um número de indivíduos age coletivamente são o produto de uma interação, negociação e oposição entre diferentes orientações da ação (MELUCCI, 1996, p. 40 – tradução livre).

Tratando-se de um processo de autodefinição, supõe-se uma teoria da identidade, da constituição do “nós”, definido na tensão recíproca entre os fins da ação (os significados que ela tem para o ator), os meios (possibilidades e limites da ação) e as relações com o meio ambiente, ou seja, com os outros ou “eles”. A construção do “nós” é um processo. A compreensão desse processo é que permitirá preencher o hiato entre a estrutura – ou as causas estruturais da ação coletiva – e a disponibilidade para agir, a

agência. Nessa direção, não basta a existência de uma demanda ou mesmo do

reconhecimento de um direito a ser pleiteado, na lógica da relação entre expectativas e recompensas, ou mesmo o caráter coletivo empiricamente apreendido de determinado

fenômeno. Esses elementos são componentes da ação coletiva, mas não levam necessariamente à ação coletiva.

As identidades consistem de uma construção por parte dos atores que articulam lógicas distintas do sistema social (DUBET, 1996), dentre as quais a lógica da

integração se dá por mecanismos de igualdade e de oposição, ambos necessários para a

delimitação tanto da identidade pessoal quanto coletiva. O processo da identidade coletiva permite a manutenção da ação no tempo, o que lhe confere uma característica de fazer a integração. Esta é a razão pela qual a figura do “nós” é, para Melucci (1996, p.73), regulatória, uma vez que cria a correspondência entre o eu individual e o nós, o que ele vai denominar a identization: um processo mútuo de reconhecimento que permite a cada um atribuir-se determinadas características e atribuí-las aos outros que constituem o grupo em relação ao qual se constrói a pertença. O indivíduo passa a reconhecer que pertencer ao “nós” o alimenta como indivíduo.

Ou seja, a identidade coletiva não é um dado, mas um processo de construção de um sistema de ação, consistindo em “uma definição interativa e partilhada produzida por um número de indivíduos (ou grupos em um nível mais complexo) a respeito das orientações de sua ação e do campo de oportunidades e constrangimentos em que tal ação tem lugar”. O caráter de interatividade e de partilha refere-se àqueles “elementos que são construídos e negociados através de um processo recorrente de ativação das relações que ligam os atores” (MELUCCI, 1996, p. 70 – tradução livre).

Esse processo envolve: a) definições cognitivas a respeito dos fins, dos meios e do campo de ação. Esses elementos são considerados o eixo da ação coletiva e se articulam no âmbito de uma linguagem partilhada por um grupo que incorpora rituais, práticas e artefatos culturais. Não constitui necessariamente uma unidade, podendo ser o resultado de uma construção mediante interações e compreende definições diferentes e por vezes contraditórias; b) refere-se, ainda, a uma rede de relações entre atores que interagem, comunicam-se, influenciam-se mutuamente, negociam e tomam decisões. Envolve formas de organização, modelos de liderança, canais e tecnologias de comunicação, que são partes constitutivas dessa rede de relações; c) envolve, ainda, certo grau de investimento emocional, o que possibilita aos indivíduos sentirem-se parte de uma unidade comum. Para Melucci (1996), a identidade coletiva não pode ser reduzida ao cálculo custo-benefício, mobilizando sempre as emoções. Para ele, não é

possível compreender o processo da identidade coletiva sem considerar a dimensão emocional, geralmente designada como irracional, em oposição ao que seria racional (segundo o autor, um eufemismo para designar o que é tido como bom). De acordo com esse autor, “não há cognição sem sentimento, e não há significado (ou sentido) sem emoção” (MELUCCI, 1996, p. 71 – tradução livre).

O reconhecimento mútuo, interno ao grupo de pertencimento, no entanto, também não é suficiente para a construção da ação coletiva, ou seja, para levar o sujeito individual a compor a ação coletiva, uma vez que esta implica, como dito acima, um campo de relações que oferece os recursos e os contrários da ação.

Outro elemento central do conceito de identidade coletiva definido por esse autor refere-se à necessidade da existência de reciprocidade não apenas entre os integrantes de um grupo, mas entre este, o “nós”, e os grupos definidos como os outros, “eles”. Nesse caso, a reciprocidade implica o reconhecimento do outro como parte do seu campo de relações ou do seu sistema de ação. Supõe mecanismos (que podem ser de diversas naturezas, envolvendo outros atores) que levem o outro a dispensar-lhe o mesmo reconhecimento que, de acordo com Dubet, é um dos bens raros visados pelos atores. Nesse caso, não se trata necessariamente de similaridade, podendo tratar-se da relação entre adversários. A constituição do “nós” é para Melucci uma situação paradoxal, uma vez que a afirmação da diferença em relação ao restante da sociedade é também a afirmação do pertencimento a uma cultura compartilhada com essa sociedade, da qual ele necessita do reconhecimento como ator social (MELUCCI, 1996, p.74).

A análise do processo vivenciado pelas profissionais de creche na última década dirige-se para uma construção desse campo de referências, na interação com outros atores e setores da sociedade civil e do Poder Público. Esse campo refere-se precisamente ao do direito das crianças menores de 7 anos à educação. A interação com os diversos agentes nesse processo produz um auto-reconhecimento, relacionado ao redimensionamento do trabalho realizado nas creches comunitárias, aliado a uma perspectiva de valorização dessas ações, conforme desenvolvido no capítulo 1.

Procuro, a seguir, com base nos conceitos acima descritos, analisar os processos de diferenciação de interesses das trabalhadoras de creches relativamente ao MLPC e, em seguida, trazer as orientações individuais de educadoras de creches entrevistadas.

Entre estas encontram-se educadoras que integram a ação coletiva das profissionais em seu processo de organização e aquelas que se reconhecem como partes de um segmento, não estando, no entanto, mobilizadas no cotidiano da organização. A seqüência escolhida para essas análises – primeiro o processo de diferenciação como segmento e, depois as orientações individuais – não pretende significar a precedência de um sobre as outras, mas deve funcionar apenas como recurso analítico e de exposição de elementos distintos, mas que só fazem sentido na relação entre eles.

1 O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO DOS INTERESSES DAS