• Nenhum resultado encontrado

2. C L R James: uma janela para a zona de ser

2.2 As massas jacobinas negras e os deslocamentos

2.2.2 Creolização ou prisma?

Os quatro deslocamentos discutidos na seção anterior manifestam a consciência oposicional de James. No primeiro capítulo ressaltamos como esse fato parece ser reconhecido nos estudos acerca das obras de autores afro-caribenhos, o que chamamos esquematicamente de prisma de formação caribenha, e que por vezes é classificado por termos endógenos à região como “creolização”. Nossa estratégia, no entanto, optou por buscar na trajetória concreta de James a produção social de tal consciência, ao invés de considerá-la como algo que emerge de aspectos mais gerais das estruturas sociais e culturais do Caribe.

108

Uma das expoentes da interpretação acerca de James como creolização é Nicole King em seu livro C. L. R. James and creolization: circles of influence. Para King, “seja escrevendo um conto ou uma história política, James articulou sua tentativa de produzir discursos revolucionários e/ou radicais a uma metodologia consistente que cham[a] de estética da creolização.”173 (KING, 2001. p. xiv) E a creolização e o hibridismo, King

ressalta, “são orgânicos aos diversos temas e ideias de James.”174 (KING,

2001. p. xv) Do mesmo modo que creolização é um termo que se refere ao amálgama no Caribe de diferentes culturas e padrões civilizatórios, King descreve a metodologia como o amálgama de disciplinas acadêmicas na crítica cultural e política de James, e ao mesmo tempo uma epistemologia apta a fazer sentido das diásporas negras no Atlântico. Ainda que a perspectiva que adotamos aqui para interpretar os pontos de vantagem de Oliver C. Cox e C. L. R. James não se volte tanto para preocupações estéticas como as de King, a abordagem da autora repousa em pressupostos muito similares aos descritos por nós no primeiro capítulo, particularmente no que se refere ao problema de natureza ontológica subjacente ao prisma e este como uma “saída” político-intelectual. “James encoraja o leitor a reconhecer seus contextos distintos, embora sobrepostos, de ontologias raciais e, ainda, suas relações com o anticolonialismo e arte como epistemologias de resistência.”175 (KING, 2001. p. 7)

Não obstante, o argumento de King deve ser visto no contexto dos debates no qual se insere: creolização, para a autora, é uma perspectiva “pós-moderna”176. Essa abordagem não deixou de esbarrar em dilemas

parecidos com os nossos, a saber, dos problemas de definição decorrentes de

173

“Throughout his career, whether writing a short story or a political history, James articulated his attempt to

produce revolutionary and/or radical discourses with a consistent methodology that I call an aesthetics of creolization.

174“My principal contention is that creolization and hybridity are organic to James's diverse ideas and themes”

175

“James encourages the reader to recognize their different yet overlapping contexts of racial ontologies and,

further, their relationship to anticolonialism and art as resistant epistemologies.

176

“...the postmodern perspective of creolization understands, without an inherent compulsion to classify, the

109

se enfocar ou o Caribe, ou a Diáspora, ou a Colonização como critérios basilares. Para isso, a autora diferencia o que entende como hibridez, fenômeno pós-colonial mais geral – vide Homi Bhabha –, e creolização, nexo sócio-histórico inerente ao Caribe, e que, portanto, permitiria pensar a região enquanto totalidade. Para os fins de explicação de King, assim, a perspectiva da creolização é inerente ao Caribe: “Brathwaite baseia seu estudo na Jamaica especificamente, eu sinto, contudo, que sua definição é aplicável a toda região caribenha.”177 (KING, 2001. p. 16) Do mesmo modo que há essa

inerência, parece haver também algo de espontâneo aí e que, portanto, partilham os autores do Caribe independentemente de suas formações.

Como dissemos, a posição que tomamos aqui enfatiza os fundamentos sociológicos da trajetória de James. Høgsbjerg alerta ao perigo de leituras que, assim como apontado por David Macey acerca de Fanon, despojam autores como James da especificidade de suas trajetórias, e os enquadram dentro de algum propósito mais geral que o estudioso de sua obra eventualmente privilegie (HØGSBJERG, 2014. p. 3). Pode residir aqui o motivo de, na discussão da trajetória de James, King pressupor uma consciência excessiva do autor das contradições do mundo social ao seu redor, antes mesmo que elas pudessem ser discutidas e refletidas por ele décadas depois:

Ele [James] entendia exatamente como o críquete era uma ferramenta da colonização e um modo de avançar a inglesidade como uma identidade e uma epistemologia idealizadas que poderiam prevenir ‘híbridos grotescos’, mesmo quando tentavam civilizar e humanizar sujeitos/selvagens coloniais.178 (KING, 2001. p. 26)

177“Brathwaite bases his study on Jamaica specifically, I feel, however, that his definition is applicable to the

entire Caribbean region.”

178“He understands exactly how cricket is a tool of colonization and how it is a mode of advancing Englishness

as an idealized identity and epistemology that can forestall ‘grotesque hybrids’ even as it attempted to civilize and humanize colonial subjects/savages.”

110

Nesse sentido, “a estética da creolização de James pode ser entendida como um mecanismo organicamente desenvolvido para mediar as influências conflitivas e influentes em sua vida, incluindo sua educação colonial, sua instrução de classe média e, eventualmente, sua política radical.”179 (KING,

2001. p. 28)

Concordamos que as contradições inerentes à formação de James foram produtivas para a formação de sua consciência oposicional. O problema reside na noção de “organicidade” invocada por King, que parece pressupor um fluxo direto e não problemático entre expressão intelectual e experiência social. Aqui partilhamos da posição de Bourdieu a respeito dos campos de produção cultural, para quem “os produtores de uma época [são] ao mesmo tempo situados, datados, e relativamente autônomos [grifo nosso] em relação às determinações diretas do ambiente econômico e social” (BOURDIEU, 1996a. p. 53) Creolização pode ser uma chave para a interpretação de trajetórias como as de Cox e James, mas enquanto não for aliada às experiências particulares dos autores pelos diferentes campos de produção e cultural, contextos nacionais, manifestações específicas de racismo e etc., pode implicar em “fragmentação” (HØGSBJERG, 2014. p. 2).

No último capítulo, no contraste específico das trajetórias de Cox e James, voltaremos a essa questão. Por hora, nossa exposição de James buscou destacar as redes às quais o autor teve acesso, as formas como o autor ingressa e se posiciona nos campos e, um tanto à parte, os deslocamentos encontrados em sua Magnum opus, que não são sua consciência oposicional, mas a revelam e indicam caminhos aos quais podemos retornar na discussão de sua trajetória.

179

“James's aesthetics of creolization can be understood as an organically developed mechanism used to

mediate the productively conflicting influences on his life, including his colonial education, his middle-class upbringing, and, eventually, his radical politics.

111