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1. Da colonialidade do ser ao prisma de formação caribenha

1.6 Prisma de formação caribenha: entre o pensamento negro e o pensamento

Para além da questão do pensamento negro ou caribenho constituir qualquer tipo de totalidade está a evidência fatual de que essa região produziu pensadores. Argumenta-se aqui em consonância com as reflexões de Henry e Reddock que existe uma tradição caribenha distinta, entendida como uma consciência oposicional. Essa consciência oposicional é produzida socialmente a partir das experiências de circulação dos autores afro- caribenhos em países metropolitanos e gramáticas distintas de racialização.

81“Ultimately, the possibilities for an Africana philosophy rests upon our ability to affirm the operating of

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O prisma é uma saída específica da zona de não-ser que se distingue por seu conteúdo, e não sua forma. A ideia de fuga de Roberts discutida na seção 1.3 apreende os aspectos formais e analíticos do que seja essa saída. Como essas discussões, acreditamos que as soluções intelectuais e estéticas ao problema da colonialidade do ser podem ser vistas como uma fuga e projetam uma transformação da vida social. Roberts nos apresenta, pois, a forma em que dá o processo, o prisma é a fuga dotada de seu substrato sociológico, e nesse sentido é, em comparação à marronage de Roberts, um conceito mais descritivo que analítico. Roberts, então, em um exercício de dialética vai do particular – a escravidão e revolução em São Domingos – à categoria abstrata, à análise normativa – liberdade como marronage. Em um exercício análogo, retornamos ao Caribe para tentar se verificar uma manifestação concreta das categorias analíticas de Roberts no contraste entre as trajetórias de Oliver C. Cox C. L. R. James, elicitadas como prisma de formação caribenha.

A saída da zona de não-ser ocorre tal como todas suas outras diversas expressões no Atlântico Negro, é uma questão de filosofia política. O prisma é, por outro lado, uma questão sociológica e diz respeito a uma saída intelectual feita primordialmente por pensadores da região. Vale dizer que não há uma relação direta entre ser um pensador caribenho e estar sujeito ao prisma de formação caribenha, conforme nos mostra a discussão de Roberts sobre os diferentes engajamentos psíquicos possíveis. Depende, assim, do desenvolvimento de um tipo particular de consciência oposicional, em que alguém deixa de ser “escravo de fato”.

Consciência oposicional parece ser um conceito conciliável com o modelo normativo da metafísica da liberdade proposto por Roberts. De acordo com Jane Mansbridge,

Dizemos que membros de um grupo que outros tradicionalmente trataram como subordinados ou desviantes possuem uma consciência oposicional quando eles clamam

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sua identidade previamente subordinada como uma identificação positiva, identificam injustiças feitas a seu grupo, demandam mudanças na política, economia ou sociedade para retificar essas injustiças e veem outros membros de seu grupo como compartilhadores do interesse de retificar essas injustiças.82 (MANSBRIDGE, 2001. p. 1)

Como foi dito, Roberts coloca no centro de seu modelo a capacidade dos agentes romperem em mente com as determinações opressivas de seu entorno. Para nossos fins, a ideia de consciência oposicional captura uma expressão intelectual desse processo. “Consciência oposicional, como definimos, é um estado mental empoderador que prepara membros de um grupo oprimido para agir em vistas de minar, reformar, ou derrubar um sistema de dominação humana.”83 (MANSBRIDGE, 2001. p. 5)

Essa consciência oposicional é, pois, a seu tempo uma saída particular da zona de não-ser identificada pelos elementos comuns encontrados nas trajetórias e reflexões de intelectuais da região. A formação desses autores em um Caribe colonial, o contato ambivalente com o cânone ocidental, a posterior temporada no exterior com acesso – desigual em diferentes autores – ao que Aldon Morris (2015) chama de redes intelectuais insurgentes e capitais de libertação, a apropriação criativa e deslocadora de discursos universalizantes europeus e a atenção à raça como variável primordial para a compreensão do presente e da história contêm a apreciação do que constitui o prisma de formação caribenha, na leitura particular que foi feita da proposta inicial de Stuart Hall sobre sua trajetória.

Nos capítulos seguintes voltaremos a atenção à produção social dessa saída particular da zona de não-ser, o prisma, a partir da análise das trajetórias iniciais de dois autores negros contemporâneos de Trinidad e

82“We say that members of a group that others have traditionally treated as subordinate or deviant have an

oppositional consciousness when they claim their previously subordinate identity as a positive identification, identitify injustices done to their group, demand changes in the polity, economy, or society to rectify those injusticies, and see other members of their group as sharing an interest in rectfying those injustices.

83“Oppositional consciousness as we define it is an empowering mental state that prepares members of an

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Tobago, C. L. R James e Oliver Cox, e como o gesto deslocador aparece primeiras Magnum opi de cada um. Acreditamos que o contraste entre as trajetórias de ambos pode lançar luz sobre os processos que estão na raiz da formação do ponto de vista deslocado inerente a muitos intelectuais da região. Essas trajetórias, por sua vez, estão informadas por diversos elementos sociológicos de grande relevância que uma Sociologia dos Intelectuais convencional, muitas vezes por ser construída em referência a sujeitos acima da linha do humano, não permite captar. Discutir e contrastar a vida e obra de James e Cox, assim, permite-nos ter uma visão muito diferente do pensamento social na primeira metade do século XX e as reinvenções trazidas por intelectuais negros caribenhos ao que poderia em alguns casos ser chamado de “problemas europeus” ou “problemas modernos”, ou seja, como essas questões foram vistas através de um prisma, de algum lugar embaixo da zona de não-ser. É uma forma de combate à colonialidade do ser na qualidade do que Nelson Maldonado-Torres (2007) chama, baseando-se em Aimé Césaire, de uma ciência descolonial84.

84“La actitud des-colonial (vis-à-vis la actitud imperial) plantea el rompimiento con la actitud natural colonial y

la dialéctica de reconocimiento imperial, aquella que presupone que todo sujeto debe obtener reconocimiento del hombre blanco para adquirir sentido completo de su humanidad. En la actitud descolonial, el sujeto en la posición de esclavo no simplemente busca reconocimiento sino que ofrece algo. Y ese alguien a quien lo ofrece no es el “amo” sino otro esclavo.” (MALDONADO-TORRES, 2007. p. 158)

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