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1. Da colonialidade do ser ao prisma de formação caribenha

1.2 A zona de não-ser

1.2.2 Dos gritos da zona do não-ser: Fanon, a história e a política

Lembremos como chegamos até aqui. A zona de não-ser é uma região estéril, entretanto, algo lá se move, algo quer se fazer reconhecer. Hegel situa a luta no princípio do processo que transformou um em escravo e outro em senhor. Fanon, por outro lado, situa a luta em sua resolução, uma vez que “a zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada pelos colonos. Essas duas zonas se opõem, mas não a serviço de uma unidade superior.” Uma delas deve ser destruída.

O texto de Rollins centra sua reflexão sobre esse aspecto, a saída do escravo (ou do colonizado) de sua condição de servidão. De acordo com a autora, “Hegel, Nietzsche e Fanon concordam, pois, que o escravo vai adquirir sua liberação”20 (ROLLINS, 2007. op. cit. p. 175). No entanto, qual o formato

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pelo qual se dará essa emancipação é algo intimamente atado à interpretação que cada autor deu ao processo que uniu senhor e escravo. Para Hegel, os últimos serão os primeiros através do trabalho. Para Fanon, Rollins nos lembra, será pela luta, contudo uma luta que, insiste, não é o começo, tampouco o motivo, que criou a situação de dependência do colonizado ao colonizador, mas sim uma luta que é sua resolução, o fim do processo.

Voltemos a Hegel. Ele afirmou que, como resultado do enfrentamento das duas autoconsciências, uma delas se tornou dependente da outra. A consciência dominante retirava a certeza de si mesma, e portanto podia exercer sua liberdade, do fato de ser reconhecida pela outra, o escravo. Este, por sua vez, foi obrigado a servir ao senhor, trabalhar para ele e satisfazer seus desejos. A relação que o escravo tem com si próprio é uma relação de medo, uma relação mediada por sua dependência do senhor. Parafraseando Du Bois (1999), o escravo se vê pelos olhos de outro. Por sua vez, o senhor tem sua relação com o mundo e a coisas mediada pelo escravo, afinal é ele quem lhe serve, quem produz seus bens e atende suas necessidades. Ambos são dependentes um do outro de alguma maneira, o senhor porque precisa do escravo para ser reconhecido enquanto senhor e ter suas necessidades atendidas e o escravo porque... Eis um momento fundamental da dialética. Trabalhando para o senhor, servindo-o, o escravo começa a perceber que a relação que ele tem com o mundo é imediata, ele transforma coisas que passam a existir independentemente dele. Ao mesmo tempo, o senhor percebe que o escravo, na condição de um objeto, não é suficiente para lhe garantir a certeza de seu reconhecimento, uma vez que essa certeza só pode ser acessada por uma outra autoconsciência.

A verdade da consciência independente é, portanto, a consciência servil. É certo que esta começa aparecendo fora de si, e não como a verdade da autoconsciência. Mas, assim como a dominação revelava que sua essência é o inverso daquilo que quer ser, assim também a servidão também será, sem dúvida,

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ao realizar-se plenamente o contrário do que de um modo imediato é; retornará a si como consciência repelida sobre si mesma e se transformará em verdadeira independência.21 (HEGEL, 1966. op. cit. p. 119)

Fanon também concorda que a resolução do problema se encontra, em última instância, na materialidade. Mas a mudança que o autor propõe não é uma mudança via trabalho, uma atitude transformadora da natureza. A restauração do self colonizado em Fanon repousa, como sublinhou Rollins, na revolução das condições materiais. Ou melhor, não apenas na mudança, mas na violência que acompanha essa mudança, pois é na luta que o sujeito colonizado recompõe os cacos da subjetividade interrompida pela dominação.

A descolonização nunca passa despercebida, pois diz respeito ao ser, ela modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores esmagados pela inessencialidade em atores privilegiados, tomados de maneira quase grandiosa pelo rumo da História. […] a 'coisa' colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual se liberta. (FANON, 2005. pp. 52- 53)

A materialidade também tem outro sentido porque a vida emana dela, e para que a do colonizado possa emergir, a do colonizador tem que acabar – não necessariamente ser enterrada. “Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono.” (FANON, 2005. p. 111) Há uma

21“La verdad de la conciencia independiente es, por tanto, la conciencia servil. Es cierto que ésta comienza

aparaciendo fuera de sí, y no como la verdad de la autoconciencia. Pero, así como el señorío revelaba que su esencia es lo inverso de aquello que quiere ser, así también la servidumbre devendrá también, sin duda, al realizarse plenamente lo contrario de lo que de un modo inmediato es; retornará a sí como como conciencia repelida sobre sí misma y se convertirá em verdadera independencia

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inversão do processo hegeliano, a luta é o fim da desumanidade e o começo da humanidade, o modo pelo qual o negro vira sujeito.

Fanon desloca em seu diálogo com Hegel radicalmente a tradição política europeia no tocante à agência dos grupos oprimidos, no tocante ao reconhecimento do lugar que esses grupos ocupam nos paradigmas interpretativos. Voltaremos a este assunto mais adiante. Por hora, vale dizer que a proposta fanoniana que apresentamos encerra, contudo, um aspecto dos gritos da zona de não-ser, o aspecto da História. Ao olhar para a experiência afro-diáspórica na América o que encontramos não são apenas histórias de grandes lutas e construção de nações. Houve também outras manifestações de saída da zona de não-ser, menos políticas em forma, que merecem ser sublinhadas. Há mais ou menos três décadas essas manifestações passaram a ser reinterpretadas. Onde algumas tradições viam passividade, começou a se ver não só resistência, mas a constituição de uma contracultura da modernidade.