• Nenhum resultado encontrado

1. Da colonialidade do ser ao prisma de formação caribenha

1.2 A zona de não-ser

1.2.3 Dos lamentos da zona de não-ser: Gilroy, a memória e a cultura

Fanon é explícito quando afirma que o mundo colonial é um mundo dividido (FANON, 2005. p. 54). É um mundo cortado em dois, em duas zonas ontologicamente distintas. Na América, é na plantation que podemos distingui-la mais cruamente. A plantation é, por um lado, primordialmente uma forma de organização das relações de trabalho e de acumulação. Por outro lado, ela é também a origem de relações políticas, sociais e econômicas22. Sua relativa autonomia enquanto sistema social permitia que

pudesse ser interpretada como “uma pequena nação em si mesma, tendo seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes próprios.” (DOUGLASS apud GILROY, 2012. p. 132) Interessa-nos tratá-la aqui deste modo, como

22 Para mais informações acerca do sistema de plantation ver: Capitalismo e escravidão, de Eric Williams, em particular o primeiro capítulo. “Edgar Thompson afirma: ‘A fazenda não se explica pelo clima. É uma instituição

política.’ E acrescentaríamos: é uma instituição econômica.” (WILLIAMS, 2012. p. 53) Ver também os trabalhos

25

um microcosmo político. Vimos até agora que a negação da humanidade dos escravos não significou paralização. Mas a violência que acompanhava o regime da plantation ainda assim não pôde deixar de restringir o horizonte político dos possíveis aos escravos, restando-lhes muitas vezes próteses culturais, fugas imaginárias.

Em 1993, o sociólogo jamaicano Paul Gilroy publica o já clássico O Atlântico Negro, no qual argumenta que da memória da escravidão e do exílio emerge uma estrutura de sentimento fractal, que identifica pelo conceito que intitula o livro, Atlântico negro. Esse modelo serviu como possibilidade reinterpretativa das produções culturais afro-americanas. A religião, a dança, a música e também a Teoria Social foram vistas em sua obra pelo crivo do reposicionamento que as tradições negras fizeram das relações entre estética e política. Importante ressaltar que tal “contracultura” foi promulgada na plantation. Ecoando o comentário de Fanon sobre Hegel23,

Gilroy diz que “não pode haver nenhuma reciprocidade na plantation fora das possibilidades de rebelião, fuga e luto silencioso, e certamente não há nenhuma unidade do discurso para mediar a razão comunicativa.” (GILROY, 2012. p. 129) Não obstante, o ressentimento existe e deve ser expresso por outros meios. “A arte, particularmente na forma da música e dança, era oferecida aos escravos como um substituto para as liberdades políticas formais que lhes eram negadas”. (GILROY, 2012. p. 128) O que Fanon descreveu, pois, foi a luta, Gilroy, o luto.

Quando é publicado O Atlântico Negro, a academia anglófona era agitada por debates ao redor da diáspora africana e de seu potencial analítico que atravessavam diversas áreas disciplinares. O conceito de diáspora permitia verificar as conexões que vinculam tradições intelectuais, culturais e políticas locais a um contexto mais amplo de trocas entre as populações negras e/ou de origem africana ao redor do mundo e através da história, escapando tanto da tendência a interpretar esses fenômenos a

23“Há, na base da dialética hegeliana, uma reciprocidade absoluta que precisa ser colocada em evidência.” (FANON, 2008. p. 180)

26

partir de uma metanarrativa eurocêntrica quanto da narrativa nacional. (WEST et MARTIN, 2009. p. 2) Autores como o historiador Joseph Harris marcaram uma posição no debate com a visão do conceito em estreita relação com uma ideia de África:

o conceito de diáspora africana subsome o seguinte: a dispersão global (voluntária e involuntária) de africanos através da história; a emergência de uma identidade cultural baseada na origem e condição social; e o retorno físico ou psicológico à terra mãe, África. Visto desse modo, a diáspora africana assume o caráter de um fenômeno dinâmico, contínuo e complexo que atravessa o tempo, a geografia, o gênero e a classe.24 (HARRIS, 1993. p. 4)

Gilroy, no entanto, manifestava certo ceticismo com relação às maneiras como o tema era mobilizado por algumas perspectivas. Segundo o autor, na maior parte das vezes em que se falava de tradição dentro do tema da diáspora, referia-se a algo que havia sobrevivido a despeito da história da escravidão (GILROY, 2012. p. 354). Tradição era visto em oposição à modernidade, era “invocada para sublinhar as continuidades históricas, conversações subculturais, fertilizações cruzadas intertextuais e interculturais, que fazem parecer plausível a noção de uma cultura negra distinta e autoconsciente.” (GILROY, 2012. p. 353) Como foi dito anteriormente, o edifício teórico de Gilroy estava assentado no deslocamento que o autor operou da história para a memória do sofrimento, no qual a experiência da plantation é que vira a pedra de toque. “A história das fazendas e usinas de açúcar supostamente oferece pouca coisa de valor quando comparada às concepções elaboradas da antiguidade africana contra as quais são

24“The African diaspora concept subsumes the following: the global dispersion (voluntary and involuntary) of Africans throughout history; the emergence of a cultural identity abroad based on origin and social condition; and the psychological or physical return to the homeland, Africa. Thus viewed, the African diaspora assumes a character of a dynamic, continuous, and complex phenomenon stretching across time, geography, class, and gender.”

27

desfavoravelmente comparadas.” (GILROY, 2012. p. 355) Para Gilroy, é no movimento que surgem “culturas planetárias mais fluidas e menos fixas.” (GILROY, 2012. p. 15)

O espírito que anima o livro foi, pois, a tentativa de conciliar a “modernidade abstrata”, reclamada pela autoconsciência europeia, com as experiências do povo negro. A tentativa de mostrar que eles também faziam parte do mundo moderno. Essa empreitada significou uma reconfiguração do que seria o tempo da diáspora, que já não podia enclausurar-se na ideia de tradição, ou de “tempo africano” (GILROY, 2012. p. 367). Foi necessário traçar uma narrativa que desse conta de articular tal diálogo forçado com o ocidente operado durante séculos pelos horrores da rota do meio e o fato de ter seu status ontológico negado, e portanto sem tradição nem história – estar abaixo da linha do humano –, ou seja, estar dentro e fora da modernidade ao mesmo tempo. Assim opera a visão crítica de diáspora de Gilroy, um deslocamento analítico operado da História para a memória, o que significou outro modo de conceber a dialética interna à zona de não-ser.

Esse modo de conceber se assentava na ideia de que existem mecanismos não explicitamente políticos – no sentido ocidental canônico – de destruir ou abandonar a zona de não-ser. Esses mecanismos, que decorrem do reposicionamento entre estética e política, aparecem na figura do sublime. Tal sensibilidade havia sido capturada 90 anos antes por W. E. B. Du Bois – um autor central ao esquema de Gilroy – em sua discussão a respeito das Sorrow Songs, as canções de lamento entoadas pelos escravos no Sul Antigo.

Mas o que são essas canções, e o que elas significam? Pouco entendo de música e nada posso dizer em termos técnicos, mas conheço alguma coisa sobre os homens e, conhecendo-os, sei que essas canções são a mensagem que o escravo articulou para o mundo. [...] Elas são a música de um povo infeliz, dos filhos do desapontamento. Falam de morte e sofrimento, de anseios não explicitados por um mundo mais verdadeiro, de

28

devaneios obscuros e de caminhos ocultos. (DU BOIS, 1999. p. 301)

Gilroy insere essa sensibilidade em um esquema mais amplo acerca do lugar do povo negro no mundo, a diáspora. Vê em Du Bois a emergência de uma perspectiva diaspórica, global, mas que tem como base racional a escravidão internacional. São “jóias trazidas da escravidão”.

Duas ressalvas no debate devem ser feitas para o andamento do que se segue. Em primeiro lugar, a posição de Gilroy a respeito de África não passou ilesa de críticas. Sintetizando o debate acerca da diáspora africana atlântica tangenciado, Paul Zeleza diz:

Debates acerca das identidades diaspóricas africanas tenderam a ser enquadrados em termos de apagamento ou retenções culturais africanas, por um lado, e adaptações e invenções diaspóricas por outro. O texto influente de Paul Gilroy, O Atlântico Negro, é essencialmente a celebração da supostamente nova e distinta cultura de diáspora anglófona, na qual África é uma realidade irrelevante.25 (ZELEZA, 2005

p. 581)

A ausência do papel de África, a não ser como imaginação, foi um dos núcleos de crítica ao texto. A segunda ressalva diz respeito à própria ênfase dada à memória ao invés da história que foi destacada. Sibylle Fischer em Modernity Disavowed (2004) discute esse ponto chamando nossa atenção para um elemento crítico, quase que um efeito colateral dessa decisão teórica. A ênfase na memória ao invés da história esvazia, para a autora, o

25“Debates about African diasporan identities have tended to be framed in terms of African cultural retentions

or erasure on the one hand and diasporan adaptations and inventions on the other. Paul Gilroy’s influential text, The Black Atlantic, is essentially a celebration of the supposedly new and distinctive Anglophone diaspora culture in which Africa is an irrelevant reality.”

29

texto de Gilroy de qualquer menção a eventos históricos concretos que moldaram o atlântico negro.

Eventos ou movimentos como a Revolução Francesa, a revolução em São Domingos, ou a luta contra a escravidão que tiveram um papel significativo na moldagem da modernidade no Atlântico mal são mencionados. Ao invés de uma consideração substantiva das metas emancipatórias (Quais eram? Foram atingidas? Foram reprimidas? Esquecidas?), Gilroy oferece uma crítica das regulações discursivas que governam as considerações emancipatórias do passado. No fim das contas, a modernidade permanece o domínio do senhor. O (antigo) escravo é para sempre condenado à retração: memória, dupla consciência, crítica dos regimes regulatórios e assim por diante. A relação do escravo com a história é de inserção, não de construção.26 (FISCHER, 2004. p. 36)

Para a autora, o meio escolhido por Gilroy para a revisão do conceito de modernidade não nos permite perceber as descontinuidades que são constitutivas da história desse Atlântico. Como contraponto, a autora propõe o conceito de “modernidade denegada” (modernity disavowed), o que a permitiria interpretar o imaginário pós-revolução haitiana, dando, pois, “concretude” ao projeto revisionista de Gilroy.

Pensar as estruturas de sentimento, comunicação e memória que moldaram a experiência dos ex-escravos sem o apelo ao substrato histórico que os originou, é verdade, não garante verificar as relações globais mais amplas que estavam em jogo na criação da modernidade – ainda que enquanto uma abstração teórica. Por outro lado, a atenção que se voltasse somente à especificidade do evento, seu caráter sociologicamente interessado

26“Events or movements such as the French Revolution, the revolution in Saint Domingue, or the struggle

against slavery that played a significant role in shaping modernity in the Atlantic are barely mentioned. Instead of a substantive account of emancipatory goals (What were they? Were they achieved? Were they repressed? Forgotten?) Gilroy offers a critique of the discursive regulations that govern emancipatory accounts of the past. Ultimately, modernity thus remains the master's domain. The (former) slave is forever condemned to recoil: memory, double consciousness, critique of regulatory regimes, and so forth. The slave's relation to history is that of insertion, not that of construction.”

30

e sua historicidade, deixa escapar exatamente o que Gilroy quis enfatizar ao utilizar o termo Atlântico Negro, aquilo que escapa de nossa lógica de produção do conhecimento e apreensão dos limites da modernidade.

Vimos até agora a concepção de zona de não-ser fanoniana e como ela corresponde a uma matriz de poder que persiste após o fim do colonialismo, a colonialidade. No entanto, a zona de não-ser apesar de negar processualmente a humanidade não obliterou a agência dos sujeitos por ela enquadrados. Fanon coloca no núcleo de sua discussão acerca da saída e destruição desse esquema a luta e a violência, Paul Gilroy enfatiza saídas simbólicas, “meio tanto para a automodelagem individual como para a libertação comunal. Poiésis e poética começam a coexistir em formas inéditas.” (GILROY, 2012. p. 100) Em ambos os casos o que se está discutindo fundamentalmente é a fuga. Na seção seguinte pretendo debater mais detidamente o papel da fuga, tanto real quanto simbólica, da zona de não- ser se pensar o lugar que a produção intelectual ocupa, tema mais geral da pesquisa.