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CREPUSCULO SOBRE A G UANABARA

I

Estou agora sozinho rente à janela do vagão, vendo pas­ sar clarões delimitados, labaredas retilíneas como esculturas de Béothy, retábulos quadriculados, reverberantes, em super­ fícies de cimento armado. Volta Redonda, acesa na noite, lembra no negror uma tela abstracionista .

Depois, só a treva outra vez. E, lateralmente, se lhe presto atenção, um flanco que, correndo para trás do trem, é uma película contínua de muitíssimos quilómetros. Recor­ do-a; o Campo de Santana, o Ministério da Guerra, o edifício monumental da Estação Dom Pedro II, um vestíbulo des­ mesurado, plataformas, muros, semáforos, favelas, pedreiras, trilhos, fundos de casas, Gamboa, Matoso, São Cristóvão, Mangueira, Meyer, Cascadura, trens elétricos, postes, dor­ mentes, abóbadas, anúncios, transformadores, quintais, ter­ renos baldios, usinas, quartéis, fachadas acesas, botequins, torres de igrejas, lances de hospitais, praças, táxis enfileira­ dos, ônibus em pontos terminais, subúrbios, mato. Nesga marginal do Rio de Janeiro, onde as luzes adiam por algumas horas o sono dos homens e corroem acidentalmente a franja

da noite. Famílias ouvindo rádio em torno da mesa ainda pos­ ta do jantar; uma mulher colocando na cama, entre cortina­ dos, uma criança adormecida ; um velho amanuense fumando no escuro duma janela de sala triste. Depois, luzes já espar­ sas, barrancos, pontes, baixada, serra do Bangu e estrelas sobre os campos de Sernambitiba, ruínas, escuridão, vultos,

massas, túneis e uma idéia fixa. Essa, como um cão com a língua de fora, correndo sempre em sentido contrário, através de tudo, num galope obstinado, me seguindo.

Jato duplo de faróis dum caminhão abarrotado de far­ dos; listras acesas dum outro trem passando.

Depois, aqui dentro do vagão, ladeando a passagem central, de porta a porta, parcelas de pessoas lotando o carro e sentadas com a paciência relativa e morna a que os horários obrigam . Que ficou em mim da dialética persuasiva de tio Rangel?

Estou sozinho de todo na solidão encarapaçada de quem já agora não recebe fraternidade nenhuma. Meu Deus, que enfermaria mais soturna que é um vagão de trem noturno! Dir-se-ia que a dignidade civil se desfaz, pois os corpos pas­ sam a ser unidades intermediárias entre coisas e gado. As fisionomias, os bustos, as mãos e, mais que tudo as bocas, tomam características mórbidas formadas por depressões e saliências, ângulos e arestas, todo o conjunto tomando as­ pectos de litografia e de

acquatinta,

colorações de sépia e de ponta-seca .

Cada ser se torna carica tura de si mesmo, tanto na inér­ cia balofa como na intenção incisiva . O caixeiro viajante de guarda-pó dorme sonhando com os conselhos behavioristas de Napoleon Hill e Dale Carnegie. A solteirona tem uma perfeita máscara laica . O padre parece farmacêutico ou tabe­ lião. A criança que dorme deixa os pés balançarem, inúteis para a viagem ; os sapatos estão esfolados, lixados . Que é

que as crianças fazem para que seus sapatos fiquem assim com muito mais indícios, marcas, provas e cicatrizes de con­ tato violento com o chão do que as botas dos ciganos?

Cansado de examinar gradualmente o vagão inteiro, fecho os olhos. E isso não me adianta nada. Penso no verso do meu poeta predileto: " Que grande sono em tudo exceto em poder dormir ! " Reabro os olhos. As vidraças oferecem­ me ilusões de ótica. Quase todos os passageiros já agora

estão dormindo revirados, as nucas pesando sobre os encos­ tos dos bancos, as gargantas tumefatas parecendo papos ma­ cios . No banco, à esquerda do meu, um senhor lê as

Seleções;

primeiro se distraiu com os anúncios coloridos, com as van­ tagens oferecidas pela KLM ; mas desde muito está assimilan­ do condensações de artigos, vendo em que pé vai a questão da bomba atômica; de como os modelos 46 dos automóveis lembram brontossauros; verificando o que acontece em Porto Rico; distraindo-se com o artigo " Seja bem-vindo à Dina­ marca" ; inteirando-se da capacidade mental de J. Roberto Hoppenheimer. Depois sorri lendo frases notáveis do duque de Windsor e de Joe Louis, de Lady Chersterfield e de Bob Hope, para acabar cochilando em reação ao pessimismo que lhe provocam as páginas de

O caminho da sobrevivência.

Vendo-o assim tão desligado de tudo, imerso no vácuo repa­ rador, rumino em vão outro verso : " Quando é que desper­ tarei de estar acordado? "

O recurso de passatempo é decompor os passageiros em analogias disparatadas, baralhando-os como cartas onde ida­ des, profissões, pesos e condição social sejam naipes, e as ir retirando uma por uma. Malogro em tal intento, pois já não são seres humanos, visto sucessivamente parecerem hipopó­ tamo, maçaneta, fuinha, gárgula, berma cívica, ferro de engo­ mar, camelo, cebola, ganso. Reajo, insisto em vê-los como gente. E então, sem querer, os vejo como vísceras vestidas : grandes buchos digerindo; enormes fígados fabricando fel. As nove, às dez e meia, ainda pareciam, em Belém, em Barra do Piraí, e bem antes de Volta Redonda, passageiros mesmo, com seus bilhetes de passagens e suas carteiras de identida­ de; mas agora, esvaziados, frouxos, bambos, com as caras cobertas com travesseiros ou com jornais por causa da luz que os incomoda, estão destilando sonhos como alambiques oníricas. Os corpos de alguns tomam posições incríveis, in­ conscientemente teimando em transformar o banco em rede ou em catre, desconjuntando-se, dispondo-se em prateleiras como mercadoria em trânsito. Três bancos adiante do meu,

mas voltados para cá, dormem mãe e filho ; este, criança duns oito anos, dorme arqueado, com a cabeça e as espáduas bem para trás; a mãe, dormindo, o segura por uma axila e por um poplíteo. Parecem transformados em estátuas, numa

Pietà

de igreja romana, ou em tela de

Descida da cruz

dum autor espanhol.

Vagão noturno da Central do Brasil, varanda deiscente, gaiola rouquenha de destinos empoleirados, lá vais tu, ligado aos teus irmãos como série de chouriços. Temperatura acre, atmosfera conspurcada, bocejos da resignação, ventriloquis­ mo áfono. Custa a crer que haja gente assim capaz de, sem combinação prévia e lógica, se amesendar durante horas e horas em torno do disco da monotonia de suas mútuas cata­ duras embalsamadas! Pois não parece aquele soneto rilqueano sobre o necrotério?

O trem agora está parado numa estaçãozinha. Parece­ mos todos, nós e ela, xilogravura. Janelas, plataforma de terra socada entre vigas. Esquadrias de cabana de

Par

W

est.

Numa placa, a quilometragem e a altitude. Um guarda-freios com ar de suicida em potencial. Barulho de água numa nesga fria e escura com cheiro de líquens e musgos; penso em cara­ mujas e sapos. Passa vagaroso um trem de gado. Pelas ripas transversais aparecem focinhos, chifres, olhos de grande re­ signação. Imediatamente se alterna a simetria provisória: aquele gado parece gente seguindo para o degredo; nós pare­ cemos gado que, por uma transfiguração segundo a técnica dos

Caprichos e disparates,

tomasse morfologias humanas. O trem recomeça sua marcha de lesma pelo vão do vale do Paraíba. Por que é que não entram salteadores ou fantasmas, heróis domingueiros de filmes em série e os condenados de Nuremberg, com Tom Mix e Goering à frente, para que o pânico modifique esta catatonia de morcegos dependurados que nem Mussolini numa trave urbana! ?

Outros trens, muitos outros trens estão correndo pela noite adentro nesta parte do mundo que ela cobre, seja no

chão da Bolívia, entre túneis dos Andes, seja entre manguais e brejos no Pantanal. E estão correndo muito adiante, muito atrás, muito longe e muito perto deste, com velocidades dife­ rentes, todos eles puras ironias duma invenção caducada e arcaica, meros depósitos itinerantes e lerdos, humilhados pela passagem dos aviões no céu . Por que é que anjos em férias não desengatam e não suspendem este vagão, levando-o para um museu com todos nós dentro transformados em bonecos de borracha? Este carro vai ligado a uma locomotiva

diesel,

mas não tem nada dos vagões aerodinâmicos da Norfolk and Western. Lembro-me duma ilustração que vi numa velha revista : carruagens caricaturais puxadas pela locomotiva gaia­ ta

Atlantic,

entrando em Washington em 1832. Não seremos aqui assim tão ridículos perante os passageiros da Beech Aircraft como para um motociclista ridículos seriam aqueles sujeitos que chegaram a Newport em 1 880 em altíssimas rodas de bicicletas primitivas, homens que mais pareciam insetos de cujos élitros saíam grandes aros metálicos? Vamos deveras para Resende, Queluz, Cruzeiro, Lorena, Guará, Ca­ çapava, São Paulo, ou rodamos em torno de nós mesmos num

carroussel

de 1847?

Agora me ensurdece, irrita e crispa o tom dodecafônico dos ruídos de todos os vagões formando contraponto ao ruí­ do mais próximo destas rodas e destas engrenagens. O bigor­ na demoníaca de que sou a lâmina traumatizada. " Por amor de Deus parem com isso dentro da minha cabeça. "

Não agüento mais. Levanto-me, vou ao carro-restaurante para comer qualquer coisa. O gerente dorme, lá no seu re­ canto, emitindo roncos irisados de bolhas. Os dois empre­ gados cochilam, um com a cabeça apoiada no punho, o outro com as fuças grudadas num guardanapo. Mas na mesa dos fundos, seis sujeitos, um atarracado, outro magricela, o ter­ ceiro um mulato, o quarto um judeu, o penúltimo um caixeiro viajante e o sexto um soldado, riem, bebem, contam anedo­ tas, soltam gargalhadas, dão-se tapas mútuos, parodiam sem querer o

Grupo alegre

de Frans Hals, pois se lhes faltam

vestimentas e categoria para isso, a luz e a treva cooperam para tal possibilidade.

Não tendo quem me atenda, saio, fico na plataforma de trás, parado ali como peça disponível, um

truck axle

ou um

coil spring

da marca Eaton ou Kearney.

Por fim, o ulular cavo e o sacolejar concêntrico me obrigam a voltar para o meu banco do vagão D, onde me recolho e me isolo de tudo como dentro duma

"douplex

roumette ideal for the passenger who desires complete pri­

vacy and confort

. . . " Onde foi que li isto, em que revista técnica? Num barbeiro ou numa sala de espera de dentista? Que vontade de viajar invisível e amorfo, quase fluido, não eu como sou e sim eu reduzido a protoplasma, sem alma dentro dum

tank car

de Dallas para Seattle . . . Nem proto­ plasma ser mais e já e para sempre óleo refinado ou ácido muriático.

Fico nesta letargia talvez meia hora. E é enfim como se estivesse ainda embrionário, na fase de verme e de peixe, aderido à noite como a uma placenta . Sinto-me gradualmen­ te feto e selvagem, homem de Neandertal -e touro alado da Caldéia. Sinto crostas de séculos e fases evolutivas, rompo-as em desesperada lentidão passando por todos os estágios . Eis­ me despencado numa muralha de alcáçova ; fujo atravessando charcos e florestas, venho ter, através dos antepassados, como trazido por uma correia de transmissão, ao carro D do segundo noturno Rio-São Paulo, estou parado na composi­ ção que anda, como um paralítico na montanha-russa dum parque de diversões . Vejo passar uma cidadezinha decrépita, do antigo itinerário do café. Que telhados lúgubres para gatos e sombrações ! Como compará-la por exemplo a um recanto habitável se, vista de conjunto, parece um monturo de cinza e lava acumulado ali pelo Mito, o decano dos arqueólogos? Manhosamente as luzes diminuem dentro das arandelas do teto do vagão e daí a pouco se extinguem, devido decerto a algum defeito. Então o carro se transforma de fato em antecâmara de repartição de pesadelos, em ala de enfermaria

em piche e em giz com desenhos violentos de Rouault, Levine e Grosz representando amontoadamente carcereiros, clérigos, alquiladores, tabeliães, devotas, cancerosos, agentes de segu­ ros, recrutas, funcionários municipais, burgueses, casais de noivos, sargentos, mascates, emigrantes, fantasmas e médiuns, tudo isso circunvalado por estrépitos. Somos as piores pági­ nas duma enciclopédia desfolhada forrando estes carros. A luz volta.

Ligeiro reflexo, como se a noite nos tornasse fosfores­ centes, vinca a nossa dubiedade.

Acuado entre o torpor e o cansaço, analiso a cidade­ zinha em cuja orla estamos parados . Sujeito-a a diversas hipóteses irritantemente intelectuais. Assim é que, nesta hora noturna, parece uma tela de Bergman. Se j á fosse de madru­ gada, lembraria, sob a aurora frígida, um

gachis

de sorvete, lama e sangue, pintado por Vlaminck. Se estivesse chovendo, daria a impressão de escombros descarnados duma aldeia lacustre pintada por Max Ernst. Mas o trem recomeça a andar. A cidade vai sumindo para trás, substitui-a a simulta­ neidade da escuridão, fazendo halos concêntricos em torno de " uma coisa central que é coisa nenhuma " .

O chefe do trem, com a sua lanterna e o seu ajudante, passa declamando o nome da próxima cidade, pede-me o bilhete. Levanto-me no escuro, retiro a mala, vou para a

plataforma posterior, soergo a gola do sobretudo, fico rece­ bendo o vento que a velocidade me joga em jato contínuo. Enrijo os traços do rosto, firmo o chapéu nas têmporas. O trem, depois dum percurso em curva que lhe mostra o flanco, diminui a marcha, os vagões como que se encolhem,

um chiado típico lhes percorre as articulações, aparecem des­

vios, dormentes e uma estação rudimentar. Procuro logo a

s e r r a cuja silhueta andei querendo ver tantas vezes desde Ba rra do Piraí para cá. Mas o que vejo é a noite oca. Salto

chimbo, acendo-o gastando nisso vários fósforos, vejo frisos de janelas, reflexos de vidraças, um vão como de sarjeta entre os carros e a plataforma. O trem recomeça a marcha; o último carro-dormitório parece, assim se afastando, um fundo de sanfona que dedos largassem.

Dirijo-me à bilheteria; a mala me atrapalha, peço o favor de a guardarem até amanhã. Saio, lanço uma olhadela circular abrangendo as cercanias, distingo paredes que me sugerem quartel, asilo ou hospital. Cravo os maxilares no cabo do cachimbo, enfio a mão esquerda num bolso, aspiro e devolvo haustos, lembro-me de verificar as horas, para o que aproxi­ mo o punho com o relógio bem perto da fogueira diminuta do Plumb. Armazém de carga. Rampa. Chão batido. Luzes. Rua com lojas fechadas. Portas verdes. Muros de taipa. Man­ gueiras velhas ao centro dum quintal. Reflexo de luz batendo na calçada e na rua. Aproximo-me. Um botequim atrás de cujo balcão cochila um sujeito glabro. Apoiado na vitrina rústica onde há pães, roscas, broas, sequilhos, rapaduras e beijus, conversam vivazmente dois tipos cujos macacões me informam que eles trabalham no posto de gasolina da estrada que vai para Caxambu. Um caipira de 6arba rala toma pinga e corta fumo de rolo enquanto um soldado de calças de mon­ taria, sem botas nem perneiras, mas simplesmente de chine­ los, procura convencê-lo de qualquer coisa. Vendo-me, o soldado acorda o vendeiro, por minha causa. Compro fósfo­ ros, bebo café, saio, passo rente a um estábulo, paro diante duma igreja, vou sair ao lado da via férrea, margino-a, acabo outra vez junto do armazém de carga. Faz frio. Decido voltar ao botequim, repetir o café, mas desta vez com broa. Res­ pondendo a perguntas minhas me informaram que o Nico do Chevrolet aparece sempre às sete. Mas que no posto de gasolina o Boanerges guarda sempre o Studebaker; e se ofe­ recem para ir acordá-lo. Aceito. Fico bebendo guaraná, en­ quanto espero. Entra uma mulherzinha descalça, de cabeleira emaranhada; pede-me fumo para o seu cachimbo cor de car­ vão, senta na soleira, tira salame de dentro dum jornal, fica

. , ·.sim comendo com um ar vago. Abancado diante da única

'' 'csa, considero que fiz mal em ter vindo pelo noturno, que l 'oderia ter viajado de dia, fico sem esperanças de que achem " homem do Studebaker. De fato, daí a um quarto de hora 1 1 1e dizem que a mulher do Boanerges mandou dizer que ele ,·s tava para Resende. Pago cerveja para os quatro homens e ' :tfé com leite para a mulher. No ambiente mortiço a velha descabelada parece, depois, uma carpideira disponível, às vol-

1 as com as lêndeas. E nós mais o vendeiro atrás do balcão

l or mamos um grupo taciturno, pois o sono está vencendo os

1 lois empregados do posto, o soldado pensa não sei em quê

,·orno um animal ruminando, e o caipira mastiga o fumo com

1 1 m jeito de marujo de cargueiro a ensalivar os dentes.

Lembro-me de coisas sem nexo, já que não sei o que deva fazer. O dono do botequim dá corda num despertador, diz que tem que fechar. Saímos. O soldado segue rua acima

l'OJTI o vendeiro. O caipira envereda para a estação, senta-se

num banco, fica acolá como um personagem de

A Estrada do

f'abaco,

numa pasmaceira entanguida . A mulherzinha conti­

l l u a acocorada no limiar, catando-se ora na nuca ora nas axi­ las . Eu acompanho os dois empregados do posto de gasolina , ·ttravessando o leito da via férrea; fico parado junto à bom­ ha ; os dois começam a lavar um caminhão. Por fim me decido

a rumar para a estrada que se dirige para a serra em curva

1 16cil saindo da que vem de Resende e que segue para Queluz.

A relativa claridade da estação e do posto de gasolina

me serve no começo como em patamar noturno oportunas

mãos erguendo lanternas. Casebres à direita e à esquerda. Muros, cercas e árvores; depois pastos e a seguir as primeiras mlinas cujas lombas descem de ambos os lados da estrada.

Na minha frente, quase invisível - e não silhueta como

n as noites de luar e nas de céu estrelado - a serra da Man- 1 i queira.

Caminho decerto mais de meia hora perfeitamente orien-

1 ado, embora me afastando dum halo insuficiente. Ouço cada vez mais próximo o ruído agradável duma ribeira entre pe-

drouços evidenciando pressa, velocidade, pouco volume, di­ ferenças de níveis, e me causando arrepios discretos e lem­ branças de samambaias. Passo por uma ponte de concreto por sobre o corte retilíneo do futuro leito da via férrea e que naquele trecho já foi retificado. Por enquanto ainda sem uso, é um talvegue em cujo canal se acama a parte mais saturada da treva. A estrada agora faz uma curva em rampa onde a escuridão como sentinela me aguarda e toma conta total de mim. Volto-me para trás: a colina escondeu as luzes da esta­ ção e daquela parte da estrada de rodagem . Tudo quanto era discernível ficou encoberto por um veludo, os meus olhos a custo discernindo onde piso. O riacho encachoeirado mur­ mura cada vez mais perto e em dado instante o sinto paralelo ao lado esquerdo da estrada do Parque Nacional; mas é um contato breve, cuja visão moitas - que na treva são como bastidores - me escondem; mas ouço bem a passagem álacre da água cujo mistério vem até meus ouvidos como carícia apenas musical já que com o frio seu contato verdadeiro só me poderia causar sensação desagradável. Depois o estribi­ lho diminui, vem de mais baixo e de tpais longe, fica sendo um monólogo distante entre grotões e lajes.

Em dado trecho transponho um limiar de silêncio. Aus­ culto-o : sim, há um profundo silêncio, e tão autêntico que, decerto corno não posso ver a noite, parece que dei em sen­

ti-la com os ouvidos ; como a visão não tem nada que captar, dir-se-ia que cedeu à audição um estado vicariante. Treva de breu. Olho para o firmamento : é uma abóbada de carvão. Caminho, com o cachimbo entalado entre os premolares. E, para evitar a sensação de treva, penso nos astros da região equatorial e verifico que nomes como os Peixes, a Baleia, o Touro, a Serpente, o Aquário, só têm deveras sentido su­ posto. Isto é, que tais constelações só podem parecer mesmo o que esses nomes significam se eu supuser as estar vendo mentalmente, pois que se meus olhos dessem com um firma­ mento constelado tais configurações estariam de tal forma baralhadas com superposições e contigüidades que eu teria