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Quando soube que eu pretendia deixar o Rio, ir-me embora, me deu logo os endereços da filha e do filho casa­ dos em São Paulo e prometeu uma série de cartas de apre­ sentação a um mundo de gente.

Daí a pouco fomos sozinhos, para o jardim, os dois. Então tio Rangel me convidou para andarmos um pouco pela calçada central da Avenida Vieira Souto, diante do nos­ so quarteirão. Já não manifestava o ar de ainda agora. Seu alvoroço era diferente.

- Ora, até que enfim , depois· de várias décadas na rotina doméstica, posso dizer a um rapaz o que disse o Filho Pródigo ao irmão caçula. Não o Filho Pródigo do Evan­ gelho, mas o da interpretação de Gide: " Vai, e possas tu não voltar! "

Atiçou o passo, como a fazer sentir que nos apressás­ semos ambos.

- Pacato e pacífico tal qual me vês, ainda hoje la­ mento não ter, quando bacharel em visita pela Europa, descido de vez até o fim do Danúbio e queimado o passa­ porte a fim de não regressar mais. Sim, já estava noivo da Maria Clara em São Paulo. Recém-formado em direito, fui despedir-me da juventude na Europa . Ah! A Europa daquele tempo ! Ah ! A Daonela, cantora russa! . . . Conhecemo-nos em Viena. Fugimos para Budapeste. Não, não era sozinha. Amamo-nos em Presburgo, em Bazias, em Belgrado, em Czernavoda, nas Portas de Ferro e em Galatz . . .

Passou as mãos pela cabeça esfiapando a cabeleira branca.

Tempo de caleças e vitórias. De librés e postilhõcs . De casacas e camisas de peito duro. De saias rodadas c de

decotes. De valsas magiares. Eu e a Daonela a fugirmos para o fim dos Balcãs. Mas, em Kilia, antes da desembocadura, tive que a devolver ao tal Gaguine. Isto é, para ser sincero, esse latifundiário do Tver a veio buscar, ma arrebatou e ainda teve o topete de desafiar-me para um duelo. Meti-lhe umas taponas e . . . voltei. Sim, sessenta dias depois eu pegava a Maria Clara lá em São Paulo, no casarão da La­ deira da Memória e ia com ela, eu que estivera em Londres, Paris, Roma, Viena, Budapeste c quase em Constantinopla,

sabes para onde, Jorge? Para a Aparecida. Vai, rapaz. Possas tu não voltar. Quanto a mim, tenho que ficar nisto : a vida. E ainda por cima vesgo, com um olho nas contumélias da Maria Clara e com o outro nas caduquices de Pétain.

Uma vez tudo resolvido, e desde a visita de dona Noê­ mia só tendo eu tido ensejo de falar-lhe pelo telefone duas vezes a respeito da saúde de Renata (- vezes essas em que consegui encontrá-la em casa, pois quase sempre estava na residência da sobrinha) , tratei de comunicar-me com ela. - É dona Noêmia? Bom dia. Sabe quem está falando? Desejo saber notícias de Renata . Ela tem passado bem?

Tia Noêmia, com muita naturalidade, respondeu e in­ formou de modo seguro, sem precisar me tratar de " amiga Júlia " (como das outras vezes) , dando notícias. Disse até que ia telefonar-me à noite.

Então lhe falei com certa emoção, da qual ela compar­ ticipou :

- Dona Noêmia, quando julgar conveniente, daqui a dias, diga a Renata que achei uma solução provisória para o sossego de que ela precisa. Vendi a minha aparelhagem, vou para o interior. Mas quero que entenda que faço isso

sem qualquer atitude intempestiva, e sim procurando cola­ borar no restabelecimento dela. Não digo para onde vou, se é perto ou longe. Caso seja necessário comunicar-me qual­ quer coisa (não estou pedindo que escrevam, pois faço ques­ tão mesmo da paz de Renata no sentido mais absoluto . . . ), de minha casa dirão onde me acho. Sigo com a certeza máxima de ajudar. E, ausente daqui, na verdade estou sem­ pre com o coração voltado para essa admirável criatura de Deus.

Falei vagarosamente, e percebi que ela escutava muito bem. Tanto que me respondeu :

- Deus levará isso na devida conta. E . . . nós também. Desliguei de chofre.

Acendi um cigarro, estirei-me no divã. A criada veio dizer daí a pouco que o Eleutério, meu servente, queria falar comigo . Disse-lhe que o fizesse entrar. Trazia-me dois ofícios que tinham ficado na secretaria já que o gabinete estava fechado. E, vendo que eu não aparecia desde três dias, resolvera vir trazer. Dei-lhe dinheiro, abracei-o, acompa­ nhei-o até ao jardim.

Os dois ofícios eram respectivamente do diretor e do presidente das duas instituições onde eu trabalhara. Agra­ deciam em linguagem tabelioa, com protocolos de gratidão, meus bons serviços prestados da data tal à data tal. Enfiei-os no bolso como passaporte de minha idoneidade perante o colega lá de H a crera.

E afinal, paradoxalmente banido do mundo, parti, cheio de abraços, beijos, saudades e recomendações de meus pais e de Germana.

Deitado no leito do Cruzeiro, senti entre as lágrimas as palavras Paris e Amiens (sei lá por quê ! ) se esbrugarem todas no jornal onde as lia RIPAS. SIPRA. RAPIS. IRPAS. SARIP. PRISA. MANESI. SAMENI. NEMAIS. AMINSE. NISEMA. ANIMES . . .

IV

Em São Paulo não procurei os parentes.

Embora tivesse chegado de noite a Hacrera, procurei interpretar o pressentimento inóspito das suas primeiras ruas até ao hotel como uma conseqüência de estranheza, pois sabia que onde quer que fosse abrigar a minha saudade, na mon­ tanha, no litoral, em metrópole febricitante ou em campo autêntico de concentração, qualquer aspecto que visse, ao chegar, seria literalmente a objetivação daquele trecho de