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QUARTO CADERNO O DIÁLOGO DAS LÁGRIMAS

A TAREFA APRAZADA ­

"RAPTA AD ANGELIS" -

O ANDAIME E A DEMOLIÇÃO

A visão global do Rio de Janeiro me empolgou. Era como se me debruçasse sobre um mapa de clorofila e vidro que pouco a pouco principiasse a crescer até adquirir vera­ cidade de espera e oferta. Saltei no aeroporto e logo se deu

o prodígio: instantaneamente me inseri na movimentação

urbana. Tudo imutável, presente, nítido, como até 1940; as diferenças, mesmo essas, não me dando sensação intrusa. O percurso pela antiga área do morro do Castelo - tão di­ versa do resto da cidade - não me interessou senão como travessia até me ver diante dos trechos tão conhecidos desde a infância: Monroe, Glória, Russell. Flamengo, curva da Amendoeira, Botafogo, túnel, Rua Barata Ribeiro. . . Como meus olhos saudavam essa estereoscopia de trajetos! O Rio de Janeiro! Eu! A cidade verificada nos pormenores de esquinas, calçadas, prédios, nessa tira fisionômica tão carac­ terística, defronte, em cima, à direita, à esquerda. Onibus, bondes, táxis, pessoas, jardins, lojas, fachadas, praças, está­ tuas, morros, anúncios, alamedas, tudo bem carioca, cheio de sentido. Ah! Agora, as imediações da casa de Renata. Saltei em dada esquina. Da banda do mar me vinha um revér­ bero de magnificência. Entrei no mesmo botequim onde tantas vezes entrara para telefonar, dizer: "Estou aqui perto. Vou passar por aí ".

Liguei para lá, sentindo uma alegria misturada com sofreguidão enquanto ouvia o chamado insistente. Nada de atenderem. Não pude conter meu ímpeto: embarafustei pela

rua acima. O gradil, o jardim, a casa. Tudo imutável, corno se a última vez da minha passagem por ali tivesse sido ontem. As janelas de cima e de baixo, fechadas. Então ela não adi­ vinhava? Não sentia? Por que era que eu não batia palmas, não tocava a campainha, não ficava parado diante do portão? Voltei ao botequim, tornei a telefonar do varejo de cigarros. Ruído oco, inútil. E já ia desligar, contrafeito, zonzo, quando senti que urna voz atendeu. Reconheci-a logo.

- Aqui . . . quem . . . fala . . . é . . . o . . . Jor-ge! Então ela prorrompeu de lá num pranto lancinante, empastado, dissolvendo as sílabas do meu nome em sufo­ cação estrangulante:

- Jor . . . ge . . . ? !

- Sim, sou eu, Sumo Bem!

E aquele pranto (fluente, entrecortado, por fim convul­ sivo, rouco, sem cerimônia nem reserva, sincero, benéfico, desafogo e paroxismo, alívio e queixa, saudade e certeza, agradecimento e desespero, gratidão e ânsia) não parava mais de brotar, até que Renata pôde repetir muitas vezes, em exclamações, vocativos e súplicas, o meu nome.

Tornou-me urna angústia paradoxalmente envolta em júbilo, urna emoção cruciante; ouvia aqueles soluços incon­ tidos que vinham a mim corno bolhas sufocantes. Sensações centuplicadas de afeto e carinho, curiosidade e triunfo, per­ corriam meus nervos despertando exaltação em meu cérebro. Não podendo falar, querendo ouvir, receber incólume aquele clamor angustiado, fiquei com urna verdadeira pujança nos sentidos e na alma, até que prorrompi em lágrimas.

Após alguns minutos assim, ela conseguiu dominar-se, ultrapassar tudo, reaver o ânimo, acreditar na surpresa vio­ lenta e inefável, aspirar para dentro da sua avidez feliz e dolorosa os sinais da realidade aguda. E então aquela voz de sempre, inconfundível, específica, alertada por prernên­ cias e entusiasmos, perguntou quando eu havia chegado, indagou da minha saúde, da minha alma. E quis saber se eu recebera o telegrama, as revistas, os poemas; se lhe per­ doara a exigência daquela disciplina, de tamanho sacrifício;

se me lembrava sempre dela, se sentia seu carinho, sua sau­ dade, seus apelos! E agradecia haver eu adivinhado e seguido com estoicismo a necessidade de exílio e de separação. E, depois de ouvir minhas respostas, declarou que se rebelara muitas vezes, que ninguém no mundo podia fazer idéia do seu suplício. Que não podia mais! Que só Deus sabia da angústia em que vivia por minha causa. Depois pediu que lhe falasse da minha vida, que a informasse dos meus dias e dos meus trabalhos.

Atendia-a, explicando tudo resumidamente; ela fazia perguntas, comentava, queria sempre saber mais. Em dado trecho lhe perguntei como fora que soubera do meu para­ deiro, lhe disse da emoção causada por seu telegrama quando do meu aniversário. E ela então esclareceu que ao saber que eu saíra do Rio, no começo reagira ante a perspectiva duma solidão insuportável. Mas que meu gesto dando sumiço à aparelhagem fatídica, desmanchando gabinete e escritório, arrasando o ambiente e os utensílios da condenação irônica, a enchera de ternura infinita. E que assim, com a explicação de tia Noêmia, pudera avaliar e medir com a escala do seu tormento a capacidade do meu sacrifício. Que achara meu gesto duma nobreza exemplar, e que imediatamente se entre­ gara com todas as v eras a uma única finalidade: ficar boa para merecer-me. Quanto ao meio de vir a certificar-se do meu paradeiro, explicou que se valera dum expediente: telefo­ nara em começos de agosto para a minha residência, dizendo ser uma cliente com uma requisição clínica de exame. E que uma voz - decerto a de Germana - informara com soli­ citude e lástima que eu não tinha mais consultório, que saíra do Rio por uma temporada ampla, que estava clinicando e escrevendo um livro no interior mais recuado de São Paulo. Agradecera neutramente. Mas que, dias depois, não podendo conter-se, ligara de novo o telefone e fizera, assim que aten­ deram, tia Noêmia perguntar o meu endereço certo, dizendo ser da secretaria do Hospital São Cosme.

Procurei explicar-lhe, então, as razões de haver eu guar­ dado segredo da localidade onde me encontrava: o desejo

absoluto de cooperar por um modo assim tão paradoxal para a sua cura, para a sua paz. Para a cessação súbita de cuida­ dos e angústias, percalços e vexames. Para que se concen­ trasse no seu tratamento, sabendo de modo peremptório que eu me arredava em benefício principalmente da sua saúde.

- Entendi tudo. Abrangi logo o alcance do teu intui­ to. Tanto que não te escrevi, só te passei aquele telegrama e me restringi à remessa de revistas. E os poemas? Enten­ deste? Mando-os como um código sucinto para diálogo.

E passou a dar os informes que lhe pedi sobre sua saúde, os seus pulmões. Que estava continuando o pneumo­ tórax; que não tinha complexo nenhum e tampouco pânico da sua moléstia; que entrara já numa fase de rotina tera­ pêutica; que no começo vivera em Petrópolis, só descendo de carro nos dias de consultório, dormindo no Rio e regres­ sando na manhã seguinte; que a

sua gente

também já per­ dera o pavor, já se acostumara a confiar na cura. Mas que isso de cura exigia um período de dois anos e meio no seu caso; que a tal caverna (e aí riu, como outrora) estava colabada, quase unida. E passou a mostrar conhecimentos exatos; a empregar terminologia de tisiólogos; a irOI{izar seu caso; a citar expressões clínicas; a dizer o que lia; que, entretanto, não tivera tempo de esgotar o sortimento de livros que eu lhe deixara. Declarou que ultimamente ia até assistir a um ou outro filme bom; que se fartava de ouvir música; que o meu exílio deveria ser interrompido em breve. Contou o tempo do tratamento, as insuflações feitas. Respondeu com presteza e naturalidade a perguntas minhas, ouviu atenta­ mente os meus conselhos, fez-me indagações evidenciando interesse e curiosidade franca, acentuou que eu ficasse mais do que certo de que ela entendera a razão material e espiri­ tual de haver-me afastado aparentemente da sua vida.

- Foi, bem vês, um modo cruel, violento, de mostrar­ te a minha realidade doméstica. Sim, sei que compreendes. Mal souberam por alto do meu caso, vieram logo, arranja­ ram transferência para o Rio, quiseram aposentar-se, posta­ ram-se ao meu lado dia e noite. Era natural, eu bem com"

preendia. E que havia de fazer? Se nem podia atender aos

1 cus telefonemas ! Se nunca me via sozinha no quarto! Se

não arranjava um expediente mesmo perigoso para comuni­ car-me contigo! De mais a mais, seria crueldade minha ver aquela assistência, aquele cuidado, e ter que inventar estra­ tagemas, subterfúgios. O coração sofria por ti, mas a cons­ ciência sofria por ele que sentava numa cadeira rente à minha cama, ficava a olhar-me, a adivinhar a minha angústia, a cuidar que fosse medo, aflição por causa da doença. E redobrava de atenções ! Ah! Era cruel para mim tal situação! Ou eu morria, ou tinha que solicitar que me entendesses. Sei que alma tens, que sentimento é o teu, do que és capaz. Não foi preciso submeter-me ao constrangimento de expor-te a minha situa­ ção. Logo ficou provada a impossibilidade de comunicar-te ao menos o meu estado de saúde, explicar que todas as pro­ vidências haviam sido tomadas segundo a tua orientação se­ creta. Ah! Jorge, como te agradeço teres entendido que eu precisava que me prestasses um favor sobre-humano. Sim, era necessário um sacrifício que, sendo martírio para nós ambos, assumia ainda assim um caráter de medida indis­ pensável. Não podias esgueirar-te por entre o meu drama . . . nem mesmo como eventual intruso, como médico, por exem­ plo, quanto mais como um amigo. Teres que te afastar da minha vida, do meu tratamento precisamente naquela hora em que o ar para os meus pulmões seria a tua presença . . . o teu desvelo! Que ironia cruel compreendermos ambos, sujeitarmo-nos a uma separação, ficares à margem de tudo! Como uma coisa real e súbita provou com evidência dra­ mática o tormento inenarrável a que teria que ficar reduzido o nosso caso! Tia Noêmia, vendo o meu sofrimento, se ofe­ receu a ir conversar contigo. Imagina tu, uma criatura como tia Noêmia se oferecer a essa grande prova de misericórdia e compreensão! E não foi necessário ela te solicitar nada, influir sequer com um pedido. Tu mesmo logo te deste conta de que, para tranqüilidade relativa mas que ajudasse o meu tratamento, tinhas que transpor uma fronteira. Tu próprio te empenhaste em me aliviar de sobressaltos.