O MUNDO SE ESBOROA SOBRE NOS
O PASSAPORTE CANCELADO
"HARD LABOUR"
I
Meio-dia. A sereia dum jornal ulula por sobre os quar teirões. Instantaneamente o telefone toca. Os primeiros com passos do
Largo
de Haendel enchem de otimismo a minha disponibilidade.E ao centro de perspectiva sonora ouço este convite: - Jorge, vamos para Camapuã ? . . .
- Quando, Renata?
Há em sua voz um encantamento envolvente ao expli car de que forma estava tudo arranjado. Achava-se sozinha havia cinco dias. Já recebera telegrama da chegada a Porto Alegre. Então convidara tia Noêmia a acompanhá-la à Fa zenda Hortênsia. Claro que tia Noêmia não aceitara pois não podia deixar Carmem sozinha. E claro que Carmem não po deria ir por causa das aulas de piano. Logo . . . dar-se-ia o caso do doutor Jorge aceitar? Poderia acompanhar Coman dita a Camapuã?
- Mas que história é essa de Fazenda Hortênsia? - A fazenda de dona Maria Emília Vilhena, entre Marechal Niemeyer e Itatiaia. Para todos os efeitos vou para lâ. Os Vilhena foram para a Europa ontem, a bordo do
lllcântara.
Não regressarão tão cedo . . . E na semana pas sada ainda se achavam na fazenda. Tia Noêmia não os co llhece. Não se dá com integralistas . . . embora se alegre pelo lato de eu dispor duma fazenda.Noêmia souber que essa gente embarcou para a Europa . ..? - Ora, Jorge! Não me decepciones . . . Escuta: já te lefonei para Itatiaia. Júlia me deu o número do aparelho. Preço módico, irrisório. Há um carro que costuma esperar os passageiros para Itaoca, Donati e Camapuã. Vais fazer o seguinte: telegrafar hoje mesmo para o endereço que te vou dar. Desse endereço se comunicam com Camapuã . Assim não chegarás de improviso. Fica mais natural. Espera um pouco, vou buscar meu
carnet.
Depois que tomei nota, indaguei quando ela partiria. - Depois de amanhã.
- Que gostosura . . . Passeios, floresta, cachoeiras, ex- cursões . . .
- Nada disso, publicaste um livro de contos em 1922 , levaste com teu primeiro romance trancado numa gaveta até 1931 , agora andas com uma papelada confusa, não te resol ves, e vamos para Camapuã com o fim expresso de endirei tarmos esse material todo para um segundo romance. É crime esperdiçar a vocação.
Com que alegria de adolescente em férias Renata me telefonou já da estação na manhã em que embarcou !
Entreguei a assistentes os serviços da minha especiali dade e parti dois dias depois de Renata. Em casa acharam ótimo que eu afinal sempre me resolvesse a tomar umas férias.
O rápido partiu superlotado. Fui em pé, no último vagão, até Barra do Piraí donde, com estímulo infantil, sen tado perto da janela até chegar Itatiaia, não fiz outra coisa senão verificar em cada parada a flecha que indicava o nome da estação seguinte e observar o Paraíba, a Mantiqueira e o quadrantezinho do relógio de pulso.
Pouco depois de meio-dia saltei em Itatiaia, transpus a plataforma e, ao descer a rampa ao lado do velho armazém de carga, descobri logo uma diferentíssima índia Comandira:
de calças e de botas de montaria. Inutilmente procurei ver o cavalo dando, isso sim, com um Ford.
- Mas será mesmo verdade, Jorge? Estou aqui há mais duma hora. Com o nervosismo de ter de vir esperar encomendei o automóvel com bastante antecedência.
- Tudo bem?
- Cheguei anteontem com chuva; apesar do carro es- tar com correntes nos pneus, atolamos na vargem, foi pre ciso que um caminhão do Parque Nacional nos empurrasse.
- E . . . no Rio?
- Tia Noêmia, caso sobrevenha qualquer novidade, me telegrafará para o Correio do distrito de Itatiaia. O admi nistrador de Camapuã vem diariamente a Itatiaia.
Nisto Renata disfarçou entrando para o automóvel, pois o motorista se aproximava após haver esperado em vão por mais outros passageiros. O trem seguiu para Queluz.
Sentei-me ao lado do motorista. Ruazinha com lojas e
muros, sob o revérbero do sol a pino. Transposta a via fér rea, a estrada varava um bairro que mais parecia um arraial. À esquerda logo no início da subida e bem depois da var gem, um sanatório militar. Pastos. Os primeiros morros. Chácaras, paredões, cercas, sebes, porteiras, rampas e cur vas. A seguir o flanco de matas à direita e um vale sinuoso à esquerda. O motorista pergunta onde deve deixar-me.
- Vou para Camapuã.
Ele então me explica que " essa senhora aí atrás " tam bém está hospedada lá, que veio ao Correio.
Sinto o olhar de Renata em mim. Percebo que sua vi vacidade procura chamar minha atenção para a beleza da paisagem. Depois ladeamos uma extensa área onde bosques europeus se inserem em florestas tropicais, até que chegamos
a um socalco amplo e opulento, toda uma região cultivada,
com retângulo de lavoura e copas de pomares e donde, em certos trechos, se devassam lances do vale do Paraíba. Por fim o carro percorre uma estrada interrompida de vez em quando por porteiras e mata-burros até chegar a uma espécie
de esplanada. Transposta uma curva em rampa, o carro entra numa alameda. Dou então com a fachada estreita duma casa antiqüíssima. O motorista pára o carro, salta, abre a porti nhola para " a outra passageira", agarra na minha mala e a leva para a porta.
Três vidraças em cima. Duas janelas embaixo, ladeando uma porta imperial. Aproximo-me, o primeiro plano vem a mim, em rotação; descortino a ala que dá para o terreiro: umas quinze vidraças no andar de cima, umas dez janelas e duas portas ao rés do chão. Pago ao homenzinho a minha quota, assisto a Renata pagar a sua - que é o dobro, ida e volta. -É necessário disciplina em tudo, mesmo em não dar azo a que gente dum mundo desconhecido tire ilações. Renata desaparece, e uma senhora vermelhaça, com ar de campônia européia, vem ao meu encontro, num gloterar pitoresco de miados, aulidos, hufos e arrulhos, decerto o idioma do Suomi ou algum dialeto resinoso da Ostrobótnia. E não entende uma única palavra do que lhe digo. A ver dade é que o fato de estar ali na soleira uma pequena mala valeu mais do que gesticulação, mímica e . . . ·esperanto, pois tal criatura bondosa entendeu que eu era a pessoa que havia telegrafado. Ganhei um quarto no sobrado: a segunda porta, no corredor.
Daí a vinte minutos ouvi soar um sino e apareci na sala de refeições . Uma peça enorme, indo de lado a lado da casa, com vidraças de cada banda. Mesa capitular ladeada por dois bancos compridos e uma cadeira em cada ponta. Nada de toalha ou de flores. Todavia, nos pólos opostos es tavam arrumados dois serviços, constando cada qual de ta lher, copo, prato e guardanapo. Já encontrei Renata ame sendada na extremidade austral; evidentemente me cabia a ponta boreal. Almoçaríamos diante mas longe um do outro, como casal em sala de castelo escocês . Saudamo-nos com dis creta reverência, como compete a hóspedes de lugares cos-
""1politas, muito embora, segundo mostravam aparências e '' ·alidades, fôssemos os únicos.
Não tardou que irrompesse da porta da copa a rubi ' 1 mda Aimo que se pôs logo a explicar entre suspiros e ges-
1' 1s que desejava apresentar-me a outra hóspede (pelo menos
lni o que me pareceu) . Então fiz uma saudação profunda à 'lcsconhecida amazona, fato este que foi vaiado imediata IIJcnte pelo escarcéu de marrecos e gansos no terreiro, junto .1s vidraças.
Uma copeira corpulenta, com ademã de estalajadeira do kalevala, começou a servir-nos. Frios. Canja. Carne com ba uta. Legumes. Água. Mamão; isso durante meia hora de 'nimonioso respeito, eu com ares de estrangeiro perdido em ' ismas, Renata sempre acolitada pela finlandesa que nos dei o:ou sozinhos um pouco pois foi ao encalço da criada com
·" xícaras que tirou do aparador. Então, mais que depressa,
1\cnata empurrou com propulsão elástica o descanso do ta IIJcr na minha direção. O pequeno metal reluzente veio ter
.1s minhas mãos deslizando como um patim. Em resposta,
ttnpulsionei o meu que lhe chegou com ímpeto de
bobsleigh.
Estávamos tomando café quando irrompeu pela sala .rdcntro uma figura pitoresca de médico ou pastor protestao ,,. de romance de Kilpe. Foi logo prestimosamente cumpri tJJcntar Renata, perguntando-lhe em português passável se ··stava gostando da fazenda, se já passeara. Depois veio a 111im, articulou o nome, Toivola, desejou que eu me sentisse. d i tão bem como em minha casa. Dito isso, foi para junto
, I um consolo onde pôs a girar num gramofone arcaico um , I i sco cujo som parecia de lixa: cuidei que se tratas se de
'" 1omatopéia de clepsidra . . .
Renata ergueu-se, o mesmo fazendo eu . Ao ver-nos per
In prestando atenção no disco, Toivola nos apresentou efu
.ivamente. Renata disse seu nome e estendeu a mão. Eu fiz " mesmo. Toivola repetiu solenemente os dois nomes, en ' l:tttsurando-os em parêntesis com as mãos que depois passou .1 l'sfregar enquanto recuava, já ladeado pela consorte, ambos
com muitas mesuras se retirando para a colônia lá entre o laranjal. (Nunca mais os veríamos.)
Quando o disco parou, Renata o suspendeu nas mãos, viu que era um cantelê, inclinou-se para guardá-lo, pegou em outros dois - só havia aqueles três -, soletrou alto os nomes: