• Nenhum resultado encontrado

Criação das Delegacias Especializadas de atendimento à mulher e a (não) incidência dos JECriminais no âmbito da violência doméstica

2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO E DE PROTEÇÃO À MULHER

2.1 O Estado Brasileiro e o enfrentamento da questão da violência contra as mulheres

2.1.1 Criação das Delegacias Especializadas de atendimento à mulher e a (não) incidência dos JECriminais no âmbito da violência doméstica

Anteriormente à Lei nº 11.340 de 2006, casos de lesão corporal leve e ameaça, praticados em situação de violência contra a mulher seguiam o rito dos Juizados Especiais Criminais, dado ao fato de que tais delitos eram considerados de menor potencial ofensivo, o que permitia a aplicação, ao agressor, de penas alternativas. Logicamente, essas punições não surtiram efeitos, não sendo eficazes no combate à violência contra a mulher.

A Lei nº 9.099 de 1995 definiu como crimes de menor potencial ofensivo aqueles com pena máxima em abstrato não superior a dois anos, bem como as contravenções penais. No Poder Judiciário, o rito processual seguido denomina-se sumaríssimo, sendo esse o procedimento mais informal do processo penal (DIAS, 2012).

Com o advento da Lei dos Juizados Especiais, as Delegacias Especializadas apenas lavravam um termo circunstanciado e encaminhavam ao Judiciário. Primeiramente, era realizada a audiência preliminar, momento em que a conciliação era proposta pelo juiz. Caso não ocorresse o acordo, a mulher vítima de violência doméstica tinha o direito de representar contra o autor do fato. Essa manifestação era realizada na presença do agressor, situação essa que, por vezes, intimidava a mulher, favorecendo o arquivamento do termo circunstanciado. Todavia, mesmo que houvesse a representação, o Ministério Público, dependendo das circunstâncias do caso, poderia oferecer a transação penal ao agressor. Caso fosse aceita essa proposta, o delito praticado contra a mulher se dissipava, não ocasionando reincidência, tampouco era incluído na certidão de antecedentes criminais do agressor (DIAS, 2012).

Atualmente, o artigo 41 da Lei Maria da Penha veda expressamente a aplicação dos Juizados Especiais Criminais, conhecidos como JECrim, quando há ocorrência de um delito praticado contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, uma vez que dispõe, “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995” (BRASIL, 2020). Tal dispositivo afasta, por conseguinte, a aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Outrossim, a Lei nº 11.340/06 enfatiza essa vedação quando estabelece no artigo 17 a proibição da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito de prestação pecuniária, tampouco por prestações de outra natureza, ou seja, pagamento de cestas básicas. Desta forma, a mensagem extraída desse dispositivo reside no fato de que a integridade da mulher vítima de violência não possui valor econômico, e sequer pode ser substituída por dinheiro (DIAS, 2012). Bianchini (2013, p. 217), salienta que:

A violência doméstica, grave problema social de desrespeito aos direitos humanos das mulheres, era “solucionada” pelo Judiciário de forma nada educativa para o agressor, que era oficialmente estimulado a desvalorizar, ainda mais, a vítima, cuja dor (física e psicológica) era “compensada” com algumas cestas básicas ou algum valor em dinheiro.

Ademais, já está firmado entendimento consoante a Ação Declaratória de Constitucionalidade 19 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424, de que os delitos cuja pena máxima não exceda a dois anos, quando praticados no âmbito doméstico e familiar, afastam qualquer incidência da Lei nº 9.099 de 1995, sendo apuradas mediante ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação, não tendo o agressor direito a qualquer benefício da lei (BIANCHINI, 2013).

Por outro lado, não há qualquer menção às contravenções penais, que, aliás, são demasiadamente praticadas pelos (ex) companheiros das mulheres, a exemplo da perturbação da tranquilidade e vias de fato. Todavia, é entendimento jurisprudencial de que as contravenções penais praticadas no ambiente doméstico

também foram afastadas da aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Tendo em vista que,

[...] a violência contra a mulher não é delito de baixa ofensividade, pois não se limita apenas ao aspecto físico, mas também ao seu estado psíquico e emocional, que ficam gravemente abalados com consequências muitas vezes indeléveis (DIAS, 2012, p. 120-121).

Nesse diapasão, o artigo 41 da Lei Maria da Penha está em total coerência com o artigo 226 da Constituição Federal Brasileira de 1988, o qual preceitua que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 2020), bem como garante efetividade ao parágrafo 8º desse dispositivo constitucional, cujo texto dispõe que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 2020). Evidencia-se que,

Com o passar dos anos ficou evidente que a Lei nº 9.099/95 não vinha resolvendo questões como a violência familiar, apresentando-se como um desrespeito à dignidade feminina, por estar atrelada a importâncias simbólicas em dinheiro, como o pagamento de cestas básicas (RELATÒRIO LILAS, 2013, p. 77).

Nesse viés, a busca por uma responsabilização mais severa às condutas praticadas no ambiente doméstico e familiar contra a mulher, como uma forma simbólica de intimidação e conscientização da sociedade, seguiu insistentemente pelo movimento feminista, para que nesses casos, não houvesse a banalização por parte dos agressores, tampouco do Estado. Nesse sentido,

[...] integrantes desse movimento buscavam respeito e espaço na sociedade, cientes da existência da violência de gênero e da violência doméstica como uma epidemia, pensaram, inicialmente, em dar visibilidade ao problema, buscando, portanto, um espaço institucional dedicado à defesa dos direitos das mulheres (RELATÓRIO LILAS, 2013, p. 75).

O movimento feminista brasileiro reivindicava pelo direito à sobrevivência das mulheres e lutava contra o poder dos homens de decidirem pela vida ou morte de suas companheiras. O impacto, na sociedade, dos casos de homicídios de mulheres cometidos por seus maridos mobilizou o movimento feminista para a criação da Comissão de Violência contra a Mulher. Houve também a formação de

grupos SOS, os quais disponibilizavam serviços às mulheres vítimas de violência. O Conselho da Condição Feminina de São Paulo sugeriu a implementação da primeira Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (MACHADO, 2002). O autor reforça que,

Esta ideia de denunciar a violência contra as mulheres, a desproteção das mulheres e a impunidade dos homicidas, foi a que deflagrou a criação de grupos feministas especializados nesta questão e que ofereciam serviços de SOS; e foi a que motivou, posteriormente, a criação das delegacias especializadas, as quais deveriam ter a capacidade de escuta da fala feminina, sem preconceitos (MACHADO, 2002, p. 3).

Em 1985, foi implementada a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em São Paulo, “[...] como primeira política pública de enfrentamento à violência contra a mulher [...] para que a sociedade reconhecesse a natureza criminosa da violência baseada em diferenças de gênero” (RELATÓRIO LILAS, 2013, p. 75).

Até o ano de 2013, totalizavam-se mais de 400 Delegacias distribuídas pelo país, sendo implementadas, 16 DEAMs no estado do Rio Grande do Sul, além de 20 Postos Policiais da Mulher. Esses espaços institucionais representam a luta pelo combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e a busca pela igualdade material entre homens e mulheres (RELATÓRIO LILAS, 2013).

As DEAMs se inserem na estrutura da Polícia Civil, e possuem como principal objetivo proporcionar o atendimento especializado à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Nessa senda, contribuem significativamente para que o problema da violência, sobretudo àquela ocorrida no ambiente doméstico, longe dos olhos do Estado, torne-se visível e, por conseguinte, seja coibida (REVISTA REDE DE PROTEÇÃO ÀS MULHERES, 2014).

O artigo 10-A da Lei nº 11.340/06 reforça a importância da Delegacia para o atendimento especializado à mulher em situação de violência, uma vez que dispõe,

É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados (BRASIL, 2020).

As Delegacias Especializadas normalmente são o primeiro contato da vítima em busca da responsabilização penal do agressor. Local onde se faz o registro da ocorrência, e, posteriormente, procede-se a uma investigação dos fatos narrados, averiguando as infrações penais.

A Lei nº 11.340/06 reconheceu a função da Polícia Judiciária no processo de atendimento às mulheres vítimas, destacando, em um capítulo específico, as medidas a serem seguidas pela autoridade policial, com intuito de preservar a integridade física da ofendida. Ademais, confere celeridade ao atendimento policial, a possiblidade de requer, no momento do registro do boletim de ocorrência, as medidas protetivas de urgência, que serão encaminhadas, em 48 horas, ao Juiz de Direito para apreciação (RELATÓRIO LILÁS, 2013).

A partir do ano de 2019, após o momento do registro da ocorrência policial, na Delegacia Especializada, ou mesmo em qualquer outro serviço em que a vítima tenha seu primeiro contato buscando a responsabilização do agressor, esta é convidada a preencher o Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (BRASIL, 2019). As respostas obtidas através das perguntas contidas nesse formulário auxiliam na identificação da gravidade de risco que a ofendida se encontra.

Para isso, o profissional que aplicar o questionário deverá comparar as respostas com a tabela do próprio formulário, o qual possui uma escala de gravidade de risco baixo, médio e elevado. Com base no resultado, o Policial Civil ou outro profissional deverá realizar o encaminhamento da mulher vítima para os outros serviços públicos disponíveis no município. Reforça-se, então, que:

O objetivo é oferecer uma ferramenta prática para o trabalho dos(as) profissionais no atendimento das mulheres com procedimentos e orientações padronizadas que visam a garantir um atendimento mais célere e de melhor qualidade (BRASIL, 2019, p. 9).

Esse novo mecanismo contribui para que a própria vítima visualize o grau de risco em que se encontra, e persista nos atendimentos de outros serviços públicos à ela encaminhados, com intuito de que se inicie um processo de empoderamento, para que, futuramente, consiga romper com o ciclo da violência que está inserida.

Indubitavelmente, as Delegacias Especializadas contribuem para conferir maior visibilidade ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher, que por muitos anos foi ignorada e omitida pelo Estado e pela sociedade, a qual legitimava as agressões, tanto físicas quanto psicológicas, dos homens em relação às mulheres. A não incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais aos casos de violência contra a mulher significa que essa problemática não deve ser tratada com desatenção pelo Estado, embora ocorrida em ambientes privados, deve-se disponibilizar às mulheres vítimas mecanismos legais protetivos, para que consigam se desvincular da situação de violência, haja vista que estas são historicamente submissas aos homens.

A criação das Delegacias Especializadas e o reconhecimento da violência doméstica como forma de violação aos direitos humanos, com a consequente exclusão da incidência dos Juizados Especiais Criminais, que definiam grande parte das situações como meras “infrações de menor potencial”, representaram significativo avanço na política de enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil, pois para além de determinarem tratamento mais adequado (inclusive no aspecto punitivo), contribuíram para dar maior visibilidade a essa forma de violência.

Não obstante, apesar dos avanços normativos, as mulheres ainda estão sujeitas à graves violações de seus direitos, quando buscam atendimento em tais espaços. Muitas vezes, as mesmas sofrem para além da violência familiar, pois são alvos, também, da violência institucional, sobretudo quando são desacreditadas ou culpabilizadas.

Andrade (2005, p. 98), ao analisar julgamentos de processos envolvendo violência sexual, concluiu que o sistema penal é ineficiente no trato da proteção das mulheres, pois não previne novos episódios de violência, tampouco protege os interesses da vítima ou colabora para a gestão da lide. Não obstante, esse sistema, frequentemente, duplica a agressão praticada contra às mulheres, as quais experimentam a discriminação e humilhação, ou seja, ao invés de ser bloqueada a ação delituosa, esta se torna contínua, na medida em que é reproduzida a estrutura

e o simbolismo de gênero, colaborando para a perpetuação do patriarcado. Ainda, de acordo com a autora,

A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema penal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura de discriminação, humilhação e estereotipia. Este aspecto é fundamental, na medida em que não há uma ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe), relações sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação social) que violentam e discriminam a mulher e o sistema penal que a protegeria contra este domínio e opressão, mas sim um continuam e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle formal exercido pelo segundo (ANDRADE, 2005, p.76).

Neste sentido, Campos (2016, p. 4) observa que:

A mudança operada pela Lei (de vítima de violência para mulheres em situação de violência) é mais do que um mero recurso linguístico e tem por objetivo retirar o estigma contido na categoria “vítima”. Aliás o termo indica a verdadeira complexidade da situação de violência doméstica [...] Ao mesmo tempo, a expressão permite perceber o caráter transitório desta condição, fato que projeta o objetivo da Lei, que é a superação da situação momentânea de violência em que vivem estas mulheres.

Precipuamente nesses ambientes institucionais, locais em que a vítima deveria ser protegida e preservada, permanece a lógica advinda do sendo comum de que “se apanha é porque gosta” ou “apanhou porque mereceu”, exteriorizando a naturalização da violência doméstica na sociedade, bem como, duplica a vitimização da mulher, uma vez que suas condutas morais e sociais são postas como motivação ensejadora do crime, colocando-as como coautoras, principalmente nos delitos sexuais.

Frente a essa fragilidade do sistema, é notória a sucessiva ideia histórica e cultural de estereótipos e papeis de gênero, assentadas em valores patriarcais, pois se busca justificar a ação criminosa através da conduta da ofendida. Para ser “respeitada” esta deve se amoldar perfeitamente ao conceito de vítima “honesta” que atende aos padrões morais estabelecidos à figura feminina, enquanto o ofensor deve possuir diversos antecedentes policiais ou simplesmente deter a faceta de um delinquente, cenário que exterioriza, outrossim, a seletividade do sistema penal (ANDRADE, 2005).

Segundo Andrade (2005, p. 94),

as mulheres estereotipadas como “desonestas” do ponto de vista da moral sexual, inclusive as menores e em especial as prostitutas, não apenas não são consideradas vítimas, como podem, com o auxílio das teses vitimológicas mais conservadoras, ser convertidas de vítima em acusadas ou rés, num nível crescente de argumentação que inclui a possibilidade de ter, ela mesma, “consentido”, “gostado” ou “tido prazer”, “provocado”, “forjado o estupro” ou “estuprado” o pretenso estuprador, especialmente se o autor não corresponder ao estereótipo de estuprador, pois correspondê-lo é condição fundamental para a condenação. [...] O sistema penal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do próprio corpo. Se assim fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguais perante a lei [...], e elas teriam do sistema o reconhecimento e a solidariedade para com a sua dor.

Infelizmente, está difundida, ainda que em algumas situações de forma velada, a soberania patriarcal e a subjugação feminina nos locais de justiça, justificando o porquê algumas instituições públicas estão desacreditadas pela sociedade. Andrade (2005, p. 75) afirma que:

O sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual.

Embora seja uma tarefa árdua e que se dissipará no tempo, as mudanças culturais e comportamentais são primordiais, principalmente mediante ações preventivas e educativas, em ambientes escolares e espaços laborais, para que se desmistifique os papeis de gênero impostos e se rompa com o patriarcado, objetivando o término da violação dos direitos das mulheres, sobretudo para que se reconheça o outro como sujeito de direito, cuja dignidade precisa ser respeitada.