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2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO E DE PROTEÇÃO À MULHER

2.2 A Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher: objetivos, princípios e bases normativas internacionais

A Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres foi desenvolvida com base no primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres,

estruturado a partir dos debates da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, organizado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (CPMI, 2013).

Neste evento foram definidas diretrizes e, a partir destas, o Plano Nacional fora organizado em quatro linhas de atuação – consideradas como prioridades –, quais sejam, autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; educação inclusiva e não sexista; e, por fim, enfrentamento à violência contra as mulheres (CPMI, 2013).

Baseado em um dos eixos do referido Plano Nacional, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres estruturou uma política nacional, cujo documento define conceitos importantes relacionados à temática, bem como, apresenta princípios, diretrizes e objetivos que orientam as ações para a prevenção e o combate à violência (CPMI, 2013). Assim, a atuação prática traçada pauta-se pelas peculiaridades inerentes a essa problemática, produzindo resultados mais eficazes.

Nessa senda, a atuação em rede é fomentada pela Política Nacional, uma vez que “ainda existe uma tendência ao isolamento dos serviços e à desarticulação entre os diversos níveis de governo no enfrentamento da questão” (POLÍTICA NACIONAL, 2011, p. 29). Ainda, tendo a violência contra a mulher um viés pluridimensional, a interação dos órgãos e sua atuação em rede é imprescindível para que a vítima consiga se desvincular do ciclo que está submetida, pois a violência é praticada, geralmente, dentro da residência da família, e, por tal motivo, é difícil de ser combatida. Conforme o referido documento, o trabalho em rede pode ser conceituado como:

Uma atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção (POLÍTICA NACIONAL, 2011, p. 29).

Cumpre salientar que, a atuação da rede de atendimento às mulheres vítimas proporciona respostas práticas à estas, as quais se encontram em um

momento de fragilidade e necessitam de serviços especializados de diversas áreas, tais como, saúde, educação, segurança pública e assistência social.

De outra banda, de acordo com o exposto no supracitado documento, atualmente, no Brasil, existem poucas pesquisas nacionais no sentido de buscar a amplitude da violência no cotidiano das mulheres, todavia, há uma constante evolução acerca do levantamento de informações que possam subsidiar políticas públicas destinadas à prevenção e ao combate da temática. A partir da Lei n° 11.340/2006, o Estado possui um especial comprometimento a respeito da identificação da problemática, uma vez que em seu artigo 38, a lei estabelece a implantação de um sistema nacional de dados referente ao tema (POLÍTICA NACIONAL, 2011). Senão veja-se,

As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres (BRASIL, 2020).

Os dados obtidos através de pesquisas a respeito da violência contra as mulheres, de certa forma, orientam os objetivos, princípios, diretrizes e ações que estão consolidados na Política Nacional. Nesse viés, a finalidade central exposta no documento é “enfrentar todas as formas de violência contra as mulheres a partir de uma perspectiva de gênero e de uma visão integral deste fenômeno” (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Assentado nesse escopo geral, quatro outros objetivos foram desmembrados para a concretização daquele, a saber:

reduzir os índices de violência contra as mulheres; promover uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades de gênero e de valorização da paz; garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência considerando as questões raciais, étnicas, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional, e por fim, proporcionar às mulheres em situação de violência um atendimento humanizado e qualificado nos serviços especializados e na Rede de Atendimento (POLÍTICA NACIONAL, 2011, p. 35).

Para que esses objetivos elencados na Política Nacional se concretizem, o próprio documento apresenta ações, as quais são consideradas prioritárias na atuação das políticas públicas. A título exemplificativo, há a ampliação e o aprimoramento da rede de prevenção e atendimento às vítimas de violência; associado a isso, tem-se o estímulo com cuidados em relação à saúde das mesmas; outrossim, é fomentada a execução de ações voltadas para a prevenção da violência, tanto em locais públicos quanto privados; e, ainda, há a promoção dos direitos humanos das mulheres, além da necessidade de se sintetizar os dados relativos à violência doméstica e familiar (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Afora essas prioridades, em 2007, a Política Nacional incluiu outras ações, as quais são direcionadas ao combate do tráfico de mulheres, à preservação dos direitos das vítimas que se encontram aprisionadas, e ao enfrentamento do crescente percentual de mulheres acometidas pela doença da AIDS, denominada como “feminização da AIDS” (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

De acordo com Dias (2012), a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –, implementada pela Secretaria de Política para as Mulheres, no ano de 2006, embora não seja exclusivamente destinada às mulheres, é um instrumento fundamental no enfrentamento da violência doméstica e familiar, pois, além de as vítimas serem cientificadas de seus direitos, as atendentes sanam questionamentos, informam a respeito de serviços especializados disponíveis, e auxiliam na proteção em face do ofensor.

Esse serviço permanece disponível todos os dias da semana, incluindo feriados, sendo formado por profissionais capacitados para acolher qualquer cidadão (DIAS, 2012). Não raro constatar denúncias anônimas realizadas por familiares que atestam situações de violência praticadas contra mulheres, as quais, por infinitos motivos, não conseguem sozinhas se desvincular e buscar ajuda.

Entretanto, diante da carência de atendimentos especializados para as vítimas em diversos municípios do país, a Secretaria acima referida instituiu o

“Tecle Mulher”, o qual fornece atendimento online às mulheres, concedendo orientações tanto jurídicas quanto psicológicas (DIAS, 2012).

Ainda, conforme apresentado na Política Nacional, tal documento norteia-se por princípios expostos no I e II Plano de Políticas para as Mulheres, quais sejam, laicidade do Estado; autonomia das mulheres; equidade; igualdade e respeito à diversidade; justiça social; transparência dos atos públicos; universalidade das políticas; e, por fim, participação e controle social (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Assim como preceitua a Constituição Federal do Estado Brasileiro, em seu artigo 5º, referindo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (BRASIL, 2020), tal princípio fundamental encontra-se dentre os listados pela Política Nacional. O mesmo possui um viés relacionado à união enquanto ser humano, sendo a igualdade o princípio basilar para a promoção do respeito entre os sujeitos, apesar das diferenças culturais, raciais, sociais, econômicas, pois, a condição de ser humano é o ponto em comum entre todos os indivíduos. Portanto, tal princípio é concretizado a partir do momento em que todos se reconhecem como iguais, apesar de todas as diferenças, não as anulando, mas olhando para elas e percebendo que são legítimas, valorizando-as e observando que estas diferenças acabam determinando ações de determinados grupos culturais. Em relação às mulheres, a igualdade somente é alcançada a partir do momento em que observa o processo histórico no qual estão inseridas e, a partir das desigualdades, se busca promover a igualdade. Aliado a isso, o princípio da equidade garante igualdade de oportunidades, respeitando as questões subjetivas das mulheres (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Ainda, o princípio da universalidade das políticas dispõe que as ações públicas devem assegurar a todos os cidadãos, sobretudo às vítimas de violência doméstica, a possibilidade de acesso às políticas, implementadas nas diferentes áreas. Sendo assim, a laicidade do Estado deve nortear as ações públicas, tendo em vista que estas necessitam ser estruturadas distante de bases religiosas, para que se garantam os direitos estabelecidos na Carta Magna e em documentos

internacionais do qual o Estado Brasileiro seja signatário (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Além disso, como corolário da luta dos movimentos feministas, a autonomia das mulheres, seu domínio sobre o próprio corpo e suas vidas tem de ser garantido, da mesma forma que o direito de influir a respeito da vida comunitária. Associado a isso, a crescente participação das mulheres no planejamento, execução e na verificação da efetividade das políticas públicas é de extrema relevância, devendo ser cada vez mais fomentado pelo país, como forma de salvaguardar os direitos das mulheres (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Assim como consagrado na Constituição Federal de 1988, como um dos objetivos do Estado Brasileiro, a distribuição de riquezas e o anseio pela igualdade social tornou-se um dos princípios da Política Nacional, vez que, historicamente, as mulheres foram subjugadas e subalternizadas por qualquer indivíduo masculino que estivesse em seu convívio, sendo que a desigualdade se tornou, atualmente, um obstáculo que alcança todas as minorias da sociedade, sobretudo às mulheres (POLÍTICA NACIONAL, 2011).

Sendo o princípio orientador de toda política pública, ou mesmo de qualquer ação praticada pela Administração Pública, estabelecida no artigo 37 da Carta Magna, a transparência dos atos resulta da observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, com a devida publicidade dos atos públicos, haja vista que os recursos financeiros utilizados para a implementação de qualquer política emanam da sociedade brasileira.

De outra banda, cabe salientar que, como refere o próprio texto da Política Nacional (2011), tal documento encontra-se em conformidade com instrumentos internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, a exemplo:

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1981) e a Convenção Internacional contra o Crime Organizado

Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas (Convenção de Palermo, 2000) (POLÍTICA NACIONAL, 2011, p. 10).

Indubitavelmente, frente à complexidade da problemática da violência contra a mulher, assim como há um olhar diferenciado dos tratados internacionais para a questão, pois sua dimensão é mundial, as políticas públicas nacionais voltadas às vítimas são de fundamental importância, sobretudo quando abarcam as diversas formas de violência, haja vista que esse fenômeno ocasiona consequências psíquicas, econômicas, sociais, e até mesmo físicas às mulheres.

O Estado, como representante dos cidadãos brasileiros, deve transformar a prevenção e o combate à violência contra as mulheres em pauta obrigatória para a implementação de políticas públicas voltadas para o tema. Diante da subjugação histórica, cultural e social que as mulheres enfrentam, é imprescindível que as ações sejam interligadas entre diversas áreas e, por isso, a importância da formação de uma rede de enfrentamento e proteção às vítimas de violência, pois, essa problemática deve ser considerada como matéria de segurança, saúde e educação pública.

Em que pese a construção no plano normativo de uma séria política de enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil, ainda existem deficiências significativas no que tange às políticas preventivas. Notadamente aquelas que se referem à educação para questões de gênero e que contribuam para a superação do patriarcado e machismo como modelo de organização dos grupos familiares; para o rompimento com a lógica de naturalização e banalização da violência, em especial a psicológica, moral e sexual, que ainda seguem, em larga medida, não vistas como formas de violência; para a superação do processo de culpabilização das vítimas; e para o efetivo reconhecimento da igualdade entre os gêneros, em todos os aspectos da vida.

Neste aspecto, o Brasil caminha, nos últimos anos, na contramão da história, pois houve um claro desmonte das políticas preventivas, em especial a partir do Governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, eleito no ano de 2018.

A matéria online publicada pelo Jornal Estadão, em 10 de agosto de 2019, divulgou o pronunciamento do atual Presidente da República, o qual se manifestou sobre a ideologia de gênero, alegando ser “coisa do capeta”. Defendeu a família por ele considerada tradicional, constituída por homem e mulher, além de depreciar as questões relativas à temática de gênero. (PUPO; WEDERMAN, 2019).

No mesmo sentido, em outra reportagem datada em 26 de dezembro de 2019, também no Jornal Estadão, fora publicada a matéria online intitulada “Retrospectiva 2019: Relembre as polêmicas da ministra Damares Alves”, apontando várias declarações da atual Ministra Damares Alves, titular da Pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as quais geraram repercussões no país. De acordo com essa matéria, a ministra se pronunciou contra a ideologia de gênero, quando declarou que “menino veste azul, e menina veste rosa”, alegando o início de uma nova era (CORDEIRO, 2019).

Denota-se a transmissão de uma forte carga de estigma e de papeis de gênero instituídas culturalmente ao longo da história, através de pessoas públicas e conhecidas à nível internacional, formadores de opinião e que possuem o poder de decisão sobre toda a nação brasileira. Por tais ideias, políticas públicas preventivas ligadas à temática gênero e à problemática da violência contra a mulher não são incentivadas, tampouco aplicadas na prática, tendo em vista o posicionamento do atual governo.

Portanto, disseminou-se na sociedade, a partir de declarações naquele sentido, polêmicas voltadas às questões de gênero, inclusive no âmbitos dos tribunais superiores. Nesta lógica, recentemente, municípios brasileiros editaram leis que proibiam o debate acerca da questão de gênero nas escolas. A exemplo disso, o Município de Nova Gama, no estado de Goiás, publicou a Lei nº 1.516/2015, a qual vedava, nas escolas da rede pública municipal, o uso de materiais que versassem sobre a ideologia de gênero.

À vista disso, em julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 457 (2020), proposta pelo Procurador-Geral da República, os

Ministros do Supremo Tribunal Federal seguiram o voto do Ministro Relator Alexandre de Moraes, julgando procedente o pedido, declarando, por conseguinte, a inconstitucionalidade formal e material da lei acima citada.

O voto do Ministro Relator foi no sentido de que compete à União legislar, privativamente, sobre diretrizes e bases da educação nacional, de acordo com o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição Federal de 1988, embora o parágrafo único do referido artigo tenha autorizado os estados da Federação, mediante lei complementar, à legislarem sobre questões relativas à temática. Ademais, o Ministro citou, também, os artigos 24 e 30 da Constituição da República, referindo que aos Municípios somente é admissível a complementação da legislação federal e estadual, consoante interesse local, não sendo possível a edição de uma lei que veda conteúdos pedagógicos, não compatível com as diretrizes da Lei nº 9.394/1996.

Outrossim, o Ministro sustentou:

A Lei municipal impugnada violou os princípios atinentes à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF) e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF), regentes da ministração do ensino no País, amplamente reconduzíveis à proibição da censura em atividades culturais em geral e, consequentemente, à liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CF). [...] Reconheço também, ofensa a um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, relacionado à promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, da CF), e, por consequência, ao princípio da igualdade consagrado no caput do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (ADPF 457/GO, 2020).

Desta forma, a legislação municipal que ensejou a proposição da ADPF 457 (2020) foi declarada inconstitucional, formal e materialmente. Aliás, a referida lei, de acordo com o Ministro Relator,

[...] ao proibir a divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais, não cumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero (ADPF 457/GO, 2020).

Nesse sentido, verifica-se que o debate sobre questões de gênero em ambientes escolares é de fundamental importância, pois expande o campo do saber das crianças e dos adolescentes, permite aos estudantes o contato com diferentes ideias, a partir das quais passam a construir uma visão de respeito e igualdade para com as demais pessoas, colocando em cheque os papeis culturalmente impostos aos homens e mulheres, e a posição social que cada um deve ocupar.

É notório que o país é carente de ações voltadas à prevenção da violência contra a mulher, isso porque, há uma grande resistência na mudança cultural e social dos tais papeis de gênero, os quais estão enraizados na sociedade e assentados em valores patriarcais e machistas. Políticas preventivas postas em prática nos ambientes escolares, direcionadas às crianças e aos jovens são essenciais, pois, justamente alteram essa visão e permitem construir uma nova geração, rompendo com a perpetuação das diversas formas de discriminações e disseminando a ideia de igualdade, o que, consequentemente, previne a violência baseada no gênero.

Discursos de autoridades públicas que valorizam a família constituída por homem e mulher, ou que reafirmam, mesmo que inconscientemente, os papeis socialmente estabelecidos, editando leis que proíbem debates sobre gênero com crianças e jovens, são a materialização da perpetuação da violência contra a mulher e, validam o sistema punitivo como a única forma de combater esse fenômeno mundial. Não se pode negar a necessidade de um caráter repressivo, entretanto, formas preventivas mais eficazes sequer são incentivadas, tampouco implementadas.

2.3 A construção da Rede de Proteção às mulheres a partir da experiência de