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4 AS INDAGAÇÕES METAFÍSICAS DE MARIO QUINTANA: IRONIA, RISO E

4.2 OS TEMAS RELIGIOSOS

4.2.2 A criação do mundo

Um dos aspectos apresentados no primeiro capítulo deste trabalho foi a criação e movimento do cosmos na ótica de Dante Alighieri, nA Divina Comédia (1998), e de Luis Vaz de Camões, em Os Lusíadas (2008). Imbuídos de suas crenças e culturas, os dois poetas têm modos distintos de atribuir a Deus essa responsabilidade. Dante diz que toda a criação resulta do puro Amor divino, enquanto Camões, privilegiando a razão, acredita que a Máquina do Mundo foi fabricada pelo “Saber alto e profundo” (2008, p. 248). Independente das divergentes opiniões, se por Amor ou pelo Saber, os autores concordam num ponto: Deus criou e controla o cosmos.

Na Poesia completa (2005), ao contrário, quando Mario Quintana trata da criação do mundo, coloca a divindade em situação delicada, pois para entender o significado da própria obra, precisa de auxílio humano. Em “Do

Homo Sapiens” (EM), a irônica inversão de papéis entre criador e criatura salienta ainda mais a angústia do poeta diante do seu desejo de compreensão do todo:

E eis que, ante a infinita Criação,

O próprio Deus parou, desconcertado e mudo! Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,

Para que lhe explicasse aquilo tudo... (QUINTANA, 2005, p. 216)

Se Quintana não pode compreender “aquilo tudo...”, coloca Deus em situação semelhante. As reticências aqui representam um imenso ponto de interrogação em relação à infinita criação. Nessa transferência de sentimentos, as dúvidas humanas já eternas, tornam-se também divinas. Agora é Ele quem precisa de explicação. Diferente de Dante e Camões, o poeta gaúcho não tenta dar um sentido ao mundo, simplesmente questiona e, como o homem não sabe o que as coisas querem dizer, Deus se transforma em igual indagador desconcertado. O poema “Interrogações” (AHS), usado como epígrafe no início deste capítulo, é outro bom exemplo do questionamento Superior: “as estrelas.../ as flores.../ o mundo.../ são perguntas de Deus.” (QUINTANA, 2005, p. 390).

A falta de controle divino sobre o mundo também é retratada em “Diálogo” (CI):

– Que fazia Deus antes da Criação? – Dormia.

– E depois?

– Continuou a dormir.

– Mas Ele não tem de cuidar do mundo?

– Ele está é sonhando o mundo: está sonhando até nós dois aqui conversando...

– Cruzes! Cala-te! – Fala mais baixo...

(QUINTANA, 2005, p. 868)

A criação se realiza enquanto Deus dorme. Quintana não Lhe tira completamente o poder, mas não Lhe outorga ciência sobre o que a sua mente está a construir. De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, na página 1770, sonho é um conjunto de imagens, devaneios, fantasias, ou pensamentos soltos e incoerentes que se apresentam à mente durante o sono. Nesse caso, melhor falar baixo, pois, como se vê, Ele não tem consciência do que está surgindo a partir dos seus devaneios. A ironia da situação reside no fato de estar criando aleatoriamente, contrariando a explicação resultante da herança cultural e religiosa que nos foi legada.

O tema sempre foi um dos questionamentos de Quintana. Antes de “Diálogos”, já havia brincado com a criação e colocado em xeque a onisciência do Eterno Senhor em “Invenções” (DPMT): “Depois que criou a máquina dos mundos, Nosso Senhor espantou-se muito: – Ué! Será que eu consegui descobrir o moto-contínuo?!” (QUINTANA, 2005, p. 108). O termo “máquina dos mundos” usado neste texto nos leva diretamente ao Canto X de Os

Lusíadas (2008), pois fora visto pela primeira vez nos versos de Camões. O

poeta gaúcho foi um grande admirador do português e deixa isso bem claro ao nomeá-lo entre os seus prediletos, como vimos na introdução da tese, e ao fazer citações de seu nome ou de sua obra por diversas vezes ao longo de sua

Poesia completa (2005)28. Quando refere-se à máquina, tem um propósito

28 No poema “Lógica & linguagem”(CH), Quintana informa como aconteceram os primeiros

contatos dele com o épico camoniano: “Espero que a análise do meu tempo tenha sido substituída pela análise psicológica. Ah! aquela preocupação dos velhos lentes, de nos mandarem pôr Os Lusíadas na ordem direta... Vai-se ver, eles, inconfessavelmente, deviam estar tentando corrigir o velho Bruxo!” (QUINTANA, 2005, p. 237). Estudos como O sentido linguístico e social de Camões, de Antônio Cesário de Figueiredo, e Camões e a poesia brasileira, de Gilberto Mendonça Teles, mostram como aconteceu a disseminação do espírito camoniano entre os brasileiros e os motivos por que a obra fora adotada no país como herança cultural, social e linguística. (FIGUEIREDO, Antônio Cesário de. O sentido linguístico e social

distinto do que apresentou o escritor europeu: como fez Dante Alighieri, Camões observou com admiração o funcionamento, complexidade e organização do mundo a partir de seu personagem Gama. Mas, se para esses autores Deus era o responsável consciente por toda essa maravilha harmônica, no poema quintaneano a admiração acontece do alto para baixo, isto é, do Criador em relação à sua criação.

Ora, se Ele não sabe bem o que está a fazer, se também tem questionamentos, fica, pois, estupefato com a descoberta. Não tem certeza se conseguiu inventar um mecanismo de movimento próprio, que representava (e para algumas culturas e religiões ainda representa!) o imenso poder de Deus. No entanto, é preciso entender que o modo como Mario Quintana se expressa sobre a matéria é consequência da sua relação com o divino, calcada na dúvida da sua existência. Em uns momentos, tem intuições de Deus; em outros, questiona a Sua existência, o Seu poder, sem, todavia, negá-Lo por completo. Daí o humor e a ironia com que trata os assuntos envolvendo o Ser Superior.

Em uma das suas últimas obras, no entanto, Velório sem defunto (1990)29, abandona o deboche anterior e analisa a questão de modo mais sério, no poema “O tamanho da gente” (VSD):

O homem acha o Cosmos infinitamente grande E o micróbio infinitamente pequeno.

E ele, naturalmente,

Julga-se do tamanho natural... Mas, para Deus, é diferente:

Cada ser, para Ele, é um universo próprio. E, a Seus olhos, o bacilo de Koch,

A estrela Sírius e o Prefeito de Três Vassouras São todos infinitamente do mesmo tamanho... (QUINTANA, 2005, p. 909)

O olhar de Deus ante a criação agora já não é de dúvida, mas de igualdade por atribuir a mesma importância a todos os seres. A admiração volta a ser somente do homem. A divindade sabe, neste texto, o que significa cada “universo próprio” por Ela inventado. Quando o poeta compara a visão limitada

de Camões. Cuiabá: UFMT, 1974; e TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979).

do homem ao olhar de Deus, restabelece-Lhe o poder. A relatividade de tamanhos e distâncias sugere a incapacidade de compreensão humana sobre assuntos transcendentais, sobretudo porque, para o Ser Superior, tudo é “infinitamente do mesmo tamanho...”.

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