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Máscaras da morte e do eterno : as indagações metafísicas de Mario Quintana

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Academic year: 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

FACULDADE DE LETRAS

ÂNGELA MARIA GARCIA DOS SANTOS SILVA

MÁSCARAS DA MORTE E DO ETERNO:

AS INDAGAÇÕES METAFÍSICAS DE MARIO QUINTANA

Prof. Dr. Biagio D’Angelo (Orientador)

Professor Carlos António Alves dos Reis (Coorientador)

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ÂNGELA MARIA GARCIA DOS SANTOS SILVA

MÁSCARAS DA MORTE E DO ETERNO:

AS INDAGAÇÕES METAFÍSICAS DE MARIO QUINTANA

Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Professor Dr. Biagio D’Angelo (Orientador)

Professor Carlos António Alves dos Reis (Coorientador)

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AGRADECIMENTOS

À Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e ao Programa de Pós-Graduação em Letras, pela excelência do curso, pelos seminários, cursos e palestras oferecidos.

Ao Professor Dr. Biagio D’Angelo, pela leitura cuidadosa, pelo incentivo, pela valiosa ajuda, pela sugestão do título, pelo respeito e, principalmente, pela sensibilidade com que conduziu este trabalho.

Ao Professor Dr. Carlos António Alves dos Reis, pela atenção, pela disponibilidade e pelas sugestões de leitura.

Ao Professor Dr. José Augusto Cardoso Bernardes, pela generosidade com que me recebeu na Universidade de Coimbra, para realizar as pesquisas da tese.

À Banca Examinadora, composta pelas Professoras Doutoras Maria Aparecida Junqueira (PUCSP), Lúcia Sá Rebello (UFRGS), Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS) e Maria Tereza Amodeo (PUCRS), pela criteriosa leitura e pelas significativas contribuições para a versão final da tese.

A todos os docentes do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) que contribuíram de forma significativa para a construção do meu conhecimento.

À Professora Dra. Ana Maria Lisboa de Mello, pela disponibilidade e generosidade ao sugerir leituras e emprestar os seus livros durante todo o curso de Doutorado.

À Professora Dra. Vera Teixeira de Aguiar, pelas conversas e reuniões sempre animadas durante a organização das edições da Semana de Letras, das quais fiz parte da Comissão.

Às funcionárias da Secretaria, pela atenção e cordialidade com que se dirigem aos alunos do PPGL da PUCRS.

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Sempre fui metafísico. Só penso na morte, em Deus e em como passar uma velhice confortável.

Mario Quintana

Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.

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RESUMO

A partir da Poesia completa (2005) de Mario Quintana, reuniu-se um significativo número de poemas de teor metafísico e ontológico com o objetivo de apresentar as indagações do poeta acerca da existência de Deus e do sentido do mundo, da vida e da morte, com o intuito de incluí-lo no grupo de artistas brasileiros do século XX, igualmente ocupados com os temas transcendentais. Buscou-se demonstrar que essa reflexão de Quintana não decorre unicamente da sua formação simbolista, mas de todas as suas leituras filosóficas, religiosas e literárias e, sobretudo, da sua curiosidade humana na contemplação das questões existenciais. O modo de expressão do autor gaúcho, nesses textos, traz à tona traços peculiares da sua personalidade, como a ironia e o humor, ferramentas fundamentais para exprimir as angústias resultantes da impossibilidade de respostas para os enigmas do mundo.

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ABSTRACT

After having analyzed Mario Quintana’s Complete Poetry (2005), we selected a

significant number of poems of metaphysical and ontological tenor in order to

present the poet’s questioning of God’s existence and the meaning of world, life and death. Our goal was to include him in the Brazilian group of artists of the twentieth century who dealt equally with transcendental issues. We also tried to

demonstrate that Quintana’s refection doesn’t derive only from his symbolist

inheritance but also from all his philosophical, religious and literary readings, and mainly from his human curiosity in the contemplation of existential issues. In these texts, the mode of expression of the gaucho author reveals peculiar traits of his personality like irony and humor, fundamental tools to express the

anxieties resulting from the lack of answers to the world’s enigmas.

Keywords: Metaphysical Poetry; Ontology; Mario Quintana; Irony; Humor;

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LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE MARIO QUINTANA1

RC – A rua dos cataventos (1940) SF – Sapato florido (1948)

AF – O aprendiz de feiticeiro (1950) EM – Espelho mágico (1951)

CH – Caderno H (1973)

AHS – Apontamentos de história sobrenatural (1976) VH – A vaca e o hipogrifo (1977)

ET – Esconderijos do tempo (1980) BE – Baú de espantos (1986)

DPMT – Da preguiça como método de trabalho (1987) PG – Porta Giratória (1988)

CI – A cor do invisível (1989) VSD – Velório sem defunto (1990) PPI – Poemas para a infância 2

1 As obras acima referidas encontram-se reunidas na Poesia completa de Mario Quintana,

organizada por Tania Franco Carvalhal, publicada pela Nova Aguilar, em 2005.

2 Ao final da Poesia completa (2005), há uma compilação de textos introduzidos pelo título

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 A METAFÍSICA E OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE ARISTÓTELES... 22

1.1 A CRÍTICA À METAFÍSICA ... 29

1.1.1 A rejeição à racionalidade ocidental ... 30

1.1.2 A ontologia existencial de Martin Heidegger ... 31

2 GENEALOGIA DA POESIA METAFÍSICA. LINHAS HISTORIOGRÁFICAS E EXPERIÊNCIAS POÉTICAS ... 38

2.1 A ORIGEM DA POESIA METAFÍSICA ... 56

2.2 O SIMBOLISMO FRANCÊS E A RECUPERAÇÃO DOS TEMAS METAFÍSICOS ... 60

3 MARCAS METAFÍSICAS DA POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX ... 62

4 AS INDAGAÇÕES METAFÍSICAS DE MARIO QUINTANA: IRONIA, RISO E HUMOR ... 70

4.1 O SÉCULO DE MARIO QUINTANA: UM BREVE PANORAMA ... 71

4.1.1 O mal do século e a reação do poeta ... 71

4.1.2 A formação de Mario Quintana: um poeta sem escola ... 79

4.1.3 Um rastro de leituras ... 81

4.2 OS TEMAS RELIGIOSOS ... 82

4.2.1 A existência de Deus ... 83

4.2.2 A criação do mundo ... 94

4.3 OS MISTÉRIOS E AS VÁRIAS MÁSCARAS DA MORTE ... 97

4.3.1 A doce prometida: a morte como destino final ... 97

4.3.2 A personificação da morte ... 103

4.3.3 A porta para o outro mundo: libertação da alma e passagem... 105

4.4 UMA NOVA REALIDADE EXISTENCIAL ... 110

4.4.1 O outro lado da vida: céu e inferno ... 110

4.4.2 A dualidade corpo e alma ou espírito ... 118

CONCLUSÃO ... 123

REFERÊNCIAS ... 128

ANEXOS ... 132

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INTRODUÇÃO

Como o burrico mourejando à nora, A mente humana sempre as mesmas voltas dá...

Tolice alguma nos ocorrerá

Que não tenha dito um sábio grego outrora...

Mario Quintana

Descobrir (e redescobrir!) a poesia de Mario Quintana (1906 - 1994) é ter nas mãos a chave que abre a porta para muitos mistérios capazes de conduzir o leitor por caminhos sem volta, sobretudo se focar nos poemas que o obrigam a encarar as questões existenciais. A reflexão profunda da experiência do poeta a respeito de assuntos tão comuns a homens de diferentes épocas nos dá a estranha sensação de estarmos diante dos próprios dilemas. Lemo-nos, com espanto, no pensamento do outro, como se estivéssemos diante de um espelho. O discurso do autor nos situa humanamente no mundo e, ao mesmo tempo, aponta para a nossa pequenez diante do infinito. Coloca-nos, solitários, no meio do nada a enfrentar realidades que não fazem parte do plano sensível. Os seus textos gritam em nossa alma, pois “O eco do poema desloca perfis”

(QUINTANA, 2005, p. 203). Indagamos, com ele, o desconhecido, a significância da vida e da morte, a existência de realidades suprassensíveis e a sobrevivência da alma ao corpo. Somos jogados diante de um abismo e a nossa aflição aumenta na medida em que avançamos na leitura e nenhum desses enigmas se resolve.

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humor ao confrontar o incognoscível. Interessa-nos, ainda, traçar um percurso da temática transcendente ao longo da História para enfatizar que esse é um problema comum a todos os indivíduos em diferentes lugares e períodos de tempo, pois essa angústia se apresenta como uma linha de pensamento fundamental a todos os seres.

Como é da natureza humana encarar o mistério da própria existência em uma fase ou outra da vida, Quintana representa, na sua obra, essa busca incessante do homem pelo conhecimento do Ser Absoluto, da morte, do sobrenatural e da eternidade, expressando, desse modo, o seu caráter mais intimista e a sua ansiedade diante de questões para as quais ele também não chega a uma conclusão satisfatória. Ainda que algumas vezes afirmativos, os poemas revelam, no seu conjunto, apenas questionamentos a respeito de temas religiosos e dos mistérios que envolvem o fenômeno físico de perecer e a vida de além-túmulo, com a finalidade de compreender o significado de estar-no-mundo, do próprio mundo. A importância que o poeta confere a essa postura inquiritiva fica evidente em “Da dúvida” (CH), quando atribui à palavra que dá título ao texto um status de quase devoção:

Os espíritos verdadeiramente religiosos são os que andam e desandam pelas encruzilhadas da Dúvida. Os que atingem a certeza param satisfeitos. E a certeza, como lá diz o mestre

Augusto Meyer no seu “Tratado de metaparafísica”, a certeza faz

engordar. (QUINTANA, 2005, p. 298)

Note-se a palavra “Dúvida” com letra maiúscula para acentuar o seu significado, porque a certeza ante ao que nos escapa à compreensão é matéria inalcançável. O que interessava ao poeta desde a adolescência, como

demonstra em “Explicação parcial” (CH), era “apenas decifrar o mistério da

alma, o sentido da vida, a finalidade do mundo.”. Essa foi a razão por que, neste mesmo texto, diz ter devorado Dostoiévski aos 15 anos: “roí com a avidez canina não sei quantas ossadas metafísicas.”. Mas, “se tão formidáveis problemas, não os decifrou Platão, nem Aristóteles, nem outros de igual

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própria poesia. A ideia da eterna dúvida é reafirmada em “De uma entrevista com Edla Van Steen” (DPMT):

[...] se nem Platão e outros craques da Antiguidade, se ninguém, em trinta séculos de pensamento, conseguiu decifrar a significação da vida – muito menos eu! Fiquemos com o mistério da poesia. Nem foi por outro motivo que dei ao meu penúltimo livro o título de Apontamentos de história sobrenatural. Há pouco

você me perguntou se bastava uma ‘frase poética’ etc. A conquista da poesia moderna é a transfiguração, acabaram-se os temas poéticos. (QUINTANA, 2005, p. 745-46)

No espaço misterioso do texto pode, portanto, falar de tudo, de temas, inclusive, metafísicos, já que “acabaram-se os temas poéticos”, mas não é sua

função e nem da própria poesia dar explicações. O que fica evidente aqui é que essas interrogações o ocuparam e a dúvida se fez, em algumas ocasiões, a sua companheira mais próxima e fiel, como justifica ao citar os filósofos para corroborarem o seu dilema.

Definida a nossa proposta de estudo, julgamos necessário responder às questões que, a partir dela, se nos apresentaram: o que é, afinal, metafísica? As reflexões de cunho metafísico e ontológico de Mario Quintana derivam da sua formação simbolista, são consequência de um conjunto de leituras (literárias, filosóficas e religiosas), ou resultado da sua condição e curiosidade humanas? Há realmente uma poesia metafísica oriunda do século XX, da qual faz parte um grupo de poetas brasileiros? Se há, o poeta gaúcho, por ter escrito toda a sua produção neste século, poderia ser incluído neste grupo?

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metafísica que perpassa a obra do poeta como estímulo provindo da sua formação cultural e como curiosidade natural do homem.

Em sua dissertação de Mestrado Religião e literatura: suas interpenetrações possíveis a partir da obra de Mario Quintana (2001), apresentada à Faculdade de Teologia, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Vinícius Mariano de Carvalho faz uma leitura religiosa dos textos do poeta ao identificar a capacidade de sua poesia em desvelar o mistério, ao mesmo tempo em que conserva o misterioso sem, todavia, estabelecer verdades absolutas evitando, como refere, uma inclinação para conclusões de envergadura teológica. Com o olhar nos poemas de temática religiosa e naqueles em que o escritor se declara herege de todas as religiões, conduz a sua análise aproximando os textos de Quintana da Teologia Negativa, a fim de explicar a sobrevivência da religião na pós-modernidade.

Na Universidade de Passau, na Alemanha, Carvalho dá continuidade às suas pesquisas e amplia seus estudos ao apresentar uma tese de Doutorado intitulada Fora da poesia não há salvação (2005), com o objetivo de elaborar uma análise da obra de Mario Quintana que procure, hermeneuticamente, depreender o que e como o poeta, situado no modernismo brasileiro, fala poeticamente de religião.

Apesar de sugerir várias maneiras de se relacionar religião e literatura, tais como: Teologia e Literatura, Fenomenologia da religião e Literatura, Poesia e Mística e o método hermenêutico como ponte entre a religião e a literatura, escolhe a desconstrução como um tipo de hermenêutica da via negativa para moldura analítica de seu estudo. A partir dessa teoria, e conforme o pesquisador, a poesia de Quintana desconstrói o sagrado e faz um discurso religioso da Teologia Negativa. Com isso, evidencia como a via negativa é um caminho encontrado para a sobrevivência da religiosidade na pós-modernidade, pois acredita que o poeta não está comprometido com nenhum credo ou teologia dogmática.

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cataventos, e chega a comentar que o movimento modernista do século XX é um resultado direto da linguagem literária dos simbolistas que deixam como herança inovações tanto em relação à estrutura como à poética.

Na sequência, Carvalho (2005) descreve algumas das obras de Quintana ao mencionar brevemente temas como o sobrenatural, do qual se ocupa o poeta em O aprendiz de feiticeiro quando desenvolve uma certa proximidade entre poesia e magia através da palavra. Sobre Espelho mágico, alude à inovação dos quartetos no formato epigramático, no estilo de máximas e provérbios, os quais abarcam ideias filosóficas. Em Caderno H, diz que há um simbolismo explícito, um surrealismo das coisas nos poemas, mas não aprofunda o assunto. Já em Apontamentos de História Sobrenatural, sublinha a linguagem e os ritmos, descrevendo Mario Quintana como um experimentador na busca da expressão de um universo mutável. Neste livro, refere novamente o tema sobrenatural como a capacidade que tem o poeta de transubstanciar as coisas do quotidiano nos seus versos.

Seguindo o apontamento das obras, A vaca e o hipogrifo é classificada por Carvalho como uma síntese das publicações anteriores do poeta, uma reunião de fragmentos líricos, de canções oníricas surrealistas e de passagens satíricas e humorísticas recheadas de realismo dramático, que oferecem ao leitor poemas construídos a partir de uma concepção negativa da poesia, ideia desenvolvida no último capítulo do seu estudo. Em Baú de espantos, o pesquisador entende uma solidificação da maneira de falar sobre o misterioso, já iniciada em Apontamentos de história sobrenatural. Para ele, Quintana inaugura um modo particular de falar sobre o sobrenatural que pode ser encontrado, por exemplo, nas casas, nos seus corredores fantasmas.

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Falar de temas religiosos nos poemas de Quintana seria, para Carvalho, um falar negativo, desconstrucionista porque não é possível fazer da sua poesia portadora de um discurso religioso ou dogmático. Segundo suas palavras, a poesia de Quintana é o lugar onde sobrevive o religioso após a morte de Deus. E porque o poeta se diz um herege de todas as religiões, o autor da tese acredita que não há qualquer comprometimento com a teologia afirmativa. Explica, ainda, que o fato de usar um referencial do cristianismo não faz do poeta católico ou missionário de Deus. Dessa forma, a poesia do gaúcho

“é um discurso não essencialista de Deus, uma poesia que não procura metafísicas ou ontologias, não é uma mensagem teleológica.” (CARVALHO,

2005, p. 166).

Não cabe dúvida de que a obra do poeta possa ser lida religiosamente sem que esta leitura seja categórica, uma vez que não há no seu discurso uma explicação para religião, como demonstra o pesquisador. Trata-se, para ele, de uma possibilidade de leitura pela via negativa, uma desconstrução do discurso religioso. Carvalho salienta que a relação de Mario Quintana com a religião está exatamente no fato de não falar de Deus.

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enfim, a própria relação com esse Ser que estaria “por sobre” o mundo, de

modo a compreender o todo.

No caso de Quintana, diríamos, inclusive, que ele suaviza o mistério no instante em que o encara, dando-lhe um tom de leveza nos textos que apresentam, em alguns casos, um fino humor, e mesmo naqueles que contêm

certo tom melancólico. Carvalho diz que o discurso de Quintana “não procura metafísicas ou ontologias”. Nós, ao contrário, buscamos justamente essa hipótese de leitura ao salientarmos as dúvidas do poeta sobre as questões existenciais, pensando-o como o ente descrito por Heidegger confrontando-se com a própria existência, com as outras realidades, com a vida, com a finitude e com o mundo, e transcendendo em si e sobre si mesmo, a fim de buscar respostas para as suas indagações.

A presença simbolista na obra de Quintana mencionada pelo pesquisador é aludida igualmente por Regina Zilberman (1997) em seu artigo

“O poeta diverso”. A autorausa uma aproximação entre o primeiro soneto de A rua dos cataventos com o “Soneto XI” do poeta português Fernando Pessoa,

publicado na revista lisboeta Centauro, para falar da adesão de ambos à estética simbolista, já que são estimulados pelas paisagens pictóricas e privilegiam a expressão do eu. Pela semelhança dos textos, Zilberman sugere

que, talvez, os poetas tenham feito percurso similar de leituras “ambos

abeberando-se nos simbolistas, especialmente em António Nobre, quando se

trata do poeta gaúcho.” (1997, p. 59), atribuindo ao poeta português, diferente do que fez Vinícius Carvalho, a opção de Quintana pela forma do soneto no seu primeiro livro. Já na obra A literatura no Rio Grande do Sul (1992), Zilberman destaca a inclinação onírica do poeta, a valorização do sonho como herança do Simbolismo, movimento do qual retira alguns de seus poetas preferidos, como Antônio Nobre, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud.

Zília Mara Pastorelli Scarpari (1997) também aborda as marcas do simbolismo francês na obra do poeta gaúcho. O artigo “Presença da Literatura

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decadentista do século XIX, observando as diversas vezes em que os simbolistas Charles Baudelaire, Paul-Marie Verlaine e Jean-Arthur Rimbaud ficam explícitos ou implícitos nos primeiros livros do poeta.

Em relação ao primeiro, menciona algumas referências diretas ao poeta francês e atribui a ele a influência da preferência de Quintana pela forma dos sonetos desenvolvida em A Rua dos Cataventos, e a utilização dos pequenos poemas em prosa, além de alguns temas, como as ruas e multidões. Zília

aproxima os poemas “O morto alegre”, de Baudelaire, e o “Soneto XVII”, de

Quintana, no intuito de somente - e en passant - demonstrar o jogo intertextual entre os dois textos. Destaca, também, a presença de Verlaine no soneto

“XXXI” de A Rua dos Cataventos através do tema “outono”, que remete a “Chanson d’Automne”, e menciona a nota verlaniana em “Canção de Outono”.

Quanto a Rimbaud, refere o estilo do seu lirismo debochado que o poeta alegretense toma emprestado em Canções, e algumas imagens oníricas aproveitadas em O aprendiz de feiticeiro.

Em 2006, Solange Fiuza Cardoso Yokosawa volta a evidenciar a presença simbolista na obra do poeta. No capítulo intitulado “Quintana e o modernismo”, a autora destaca a influência dessa corrente nos poetas sul -rio-grandenses, pois além de ter sido a primeira estética dominante no Estado, teve seu registro eternizado na obra de muitos escritores, como Mario Quintana. Dessa forma, segundo as suas palavras, o modernismo gaúcho não significou exatamente uma ruptura com o simbolismo e, sim, uma correção desse movimento. Como os pesquisadores anteriores, cita A rua dos cataventos e Canções como as obras em que mais podemos reconhecer a presença do Simbolismo, em especial pela relação conflituosa entre artista e sociedade do que resulta, para ela, numa certa atmosfera crepuscular com a presença da morte.

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O estudo em questão apresenta um desenvolvimento mais aprofundado das características simbolistas utilizadas por Mario Quintana e dá ênfase ao mistério da poesia quintaneana retirado do cotidiano, das coisas miúdas da vida diária. Para além disso, centramo-nos nos mistérios mais profundos da alma que ocupam a mente do poeta na busca pela compreensão da existência humana e nas indagações do escritor acerca do lugar que ocupa na totalidade. Estamos, pois, tratando das inquirições de teor metafísico e ontológico na Poesia completa (2005) de Mario Quintana. Por esse motivo, vamos além da afirmação de Yokosawa quando cita o livro Apontamentos de história sobrenatural. Para a pesquisadora,

um leitor que não tenha familiaridade com a poesia de Quintana, com o insólito dos títulos dos seus livros, a simples leitura desse título poderia criar a expectativa de que a matéria do livro é o sobre-humano, o extraterreno. Essa expectativa se desfaz ante a leitura dos primeiros poemas, reveladores de que a realidade recriada não é outra que esta que se desenrola diante dos olhos do leitor. E este se indaga: - Mas onde o sobrenatural? E é então que descobre que o sobrenatural, do livro e da vida, está é aqui, nesta realidade de todo dia. (YOKOSAWA, 2006, p. 155)

Entendemos que ao representar outras realidades, isto é, ao abordar o que está fora ou por trás da natureza nesse e em outros de seus livros, o poeta ultrapassa o que está por sobre o humano, distante da realidade dos nossos sentidos. Nossa afirmação se apoia no corpus selecionado, constante no quarto capítulo deste estudo e encontramos elementos também em Apontamento de história sobrenatural, que justificam a gênese desta tese.

Apesar da influência simbolista apontada pela crítica especializada, a reflexão do poeta sobre a temática em questão não deriva apenas das suas leituras. É antes consequência da dúvida e da angústia que sente a respeito do desconhecido e das questões existenciais. Angústia essa já presente desde a tenra idade, quando ainda menino se deu conta dos mistérios do universo, tal

qual podemos verificar em “O menino e o infinito” (DPMT):

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pote, que... que... que... Neste ponto meu pobre espírito gaguejava de assombro e terror – pois aquilo era uma coisa perfeitamente lógica e absolutamente inconcebível.

Depois dessas crises metafísicas provocadas pelo infinitamente pequeno, confesso que nunca cheguei a me impressionar muito com os arroubos de meus professores de cosmografia, a propósito das fabulosas distâncias estelares.

Como me acostumara a olhar o infinito de alto a baixo, por assim dizer, achava tolo abrir a boca diante dessas distâncias

astronômicas, em verdade “fabulosas” no sentido etimológico do

termo. As distâncias não são grandes: nós é que somos pequenos... Que culpa têm disso os espaços siderais? Por isso a astronomia me pareceu uma ciência para basbaques. E isso de infinitamente grande e infinitamente pequeno é tudo a mesma coisa: o homem é que se meteu no meio, para atrapalhar. E o bacteriologista é um astrônomo às avessas: espia pelo outro lado do canudo... (QUINTANA, 2005, p. 702).

No “absolutamente inconcebível”, já notamos a dúvida e o susto da

criança diante do enigma com o qual se deparou. Na sequência do poema, Mario Quintana relativiza a grandeza do infinito mínima e maximamente com a intenção de abranger o mistério dele decorrente, de acordo com a percepção

dos indivíduos tão “pequenos” para dar conta de compreender essas

distâncias.

Isto posto, com a finalidade de darmos continuidade à análise a que nos propusemos, foi necessário dividirmos a tese em quatro capítulos, além desta introdução, da conclusão e dos anexos. No primeiro, definimos o conceito de metafísica, tomando o termo nas concepções de Aristóteles e de Martin Heidegger. De Aristóteles, porque a sua obra deu origem ao vocábulo através do título e das definições da ciência, que ainda são referência para os estudos de filosofia; e de Heidegger, porque dá ênfase ao ser do ente e ao modo como ele apreende as coisas na totalidade em confronto consigo mesmo, com a própria existência e com o mundo. É exatamente esse confronto do homem consigo mesmo e também com o universo que interessa para este estudo.

No segundo capítulo, procuramos mostrar que, desde a Antiguidade, os poetas se entregavam à contemplação dos temas metafísicos, situação repetida continuamente com o passar do tempo.

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contemporâneos de Mario Quintana, são representativos dos estados sensíveis da alma na busca pelo saber.

No último capítulo, apresentamos a poesia metafísica do poeta gaúcho, de modo a justificarmos por que entendemos que deve fazer parte do grupo antes referido. Nesta parte da tese, com um corpus constituído de mais de setenta poemas, buscamos evidenciar a linha de pensamento do autor a respeito de Deus e da eternidade. Quintana reflete sobre as máscaras que a humanidade Lhe veste ao longo da História; sobre a existência de um Ser

Absoluto; sobre as diversas “caras” da morte; sobre o vir-a-ser e sobre a vida de além-túmulo. Nesse ato singular de contemplação, lança-se na totalidade na tentativa de compreender os enigmas existenciais. Ao fazê-lo, eterniza, pela palavra, as suas (e as nossas!) indagações metafísicas.

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1 A METAFÍSICA E OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE ARISTÓTELES

Este capítulo tem o objetivo de apresentar as concepções teóricas que embasam este estudo, dando ênfase à definição de metafísica da sua origem até os conceitos filosóficos que tratam das perquirições do homem acerca da própria existência e do seu lugar no mundo e na totalidade.

De acordo com Hans Reiner (2005) em “O surgimento e o significado

original do nome metafísica”, não havia consenso entre os estudiosos do século XX sobre a origem do termo. Isso porque uns defendiam a ideia de que o vocábulo fora criado por Nicolau de Damasco, que teria realizado um estudo sobre o livro de Aristóteles; enquanto outros pensavam que o surgimento do nome “Metafísica” coincidia com a época de publicação dos escritos aristotélicos, tendo nascido por sugestão do editor do filósofo, Andrônico de Rodes, a fim de simplesmente nominar o compêndio, conforme a ordem em que foram dispostos os catorze livros, que tratam da lógica, da física e do “ser enquanto ser”. Esta última posição, conforme Reiner, é a versão mais aceita pela academia.

Se, como vimos, já não existia consenso quanto à procedência do título antes, um pouco mais tarde, mas ainda no século XX, surgiram novas perspectivas de interpretação para a origem do título, que deveria, a partir de então, considerar o seu conteúdo para tratar de tudo o que se ocupa do transcendente. Em outras palavras: a Metafísica passa a ser a ciência que se dedica ao estudo do que está para além (acima ou por trás) da natureza.

Alguns autores dessa época acreditavam que a palavra “metafísica”

seria anterior a Nicolau e a Andrônico, tendo sido mencionada em um catálogo de Aristo de Céos, no final do século III a. C. Mas, conforme Giovanni Reale, tradutor da Metafísica (2001) de Aristóteles e autor do ensaio introdutório à

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essa interpretação, constatado e derrubado por Paul Moraux3, é que os escritos de Aristo servem de modelo para o catálogo de Diógenes, e este não faz nenhuma menção ao termo. Explica que Moraux questiona o sentido e a validade atribuídos ao termo Metafísica, a partir de duas explicações de antigos comentadores: Simplício e Alexandre de Afrodisía.

Simplício e outros intérpretes neoplatônicos teriam descrito a Metafísica como uma ciência que trata das realidades além da matéria, isto é, das realidades transcendentes; e Alexandre, deu à “Metá” o sentido de relação de

sucessão dos conhecimentos adquiridos pelo homem, porque a metafísica, tal como ensina Aristóteles, trata das coisas divinas, da eternidade e, logo, vem antes dos fenômenos físicos. Contudo, para nós, segundo a sua teoria, seria posterior à física, porque primeiro precisamos conhecer o que nos é imediato para depois chegarmos a outras realidades.

O título da obra não partiu, portanto, do filósofo grego. Apesar de nunca sequer ter utilizado o termo, as diversas maneiras que usa para descrever a metafísica reúnem, para Reale (2001), as duas explicações anteriores. Algumas vezes, Aristóteles refere-se à ciência como “Teologia”, outras vezes como “Filosofia Primeira”, “Princípios ou Causas Primeiras”, “Ciência da Substância” e também “Ciência do serenquanto ser”.

Quando a conceitua Teologia, a descreve como ciência divina por ser mais digna de honra e por ser superior às demais ciências, sobretudo por se ocupar das razões supremas da realidade, daquelas que estão acima do que é físico. É a primeira sapiência. Para Aristóteles, as outras ciências se ocupam das realidades particulares dos seres: à alma, dedica-se a Psicologia; aos números, que permitem entender os fenômenos físicos, a Matemática; aos seres vivos, a Biologia; à vida social, a Sociologia e a Política; aos gêneros artísticos, a Poética; e aos movimentos dos astros, a Cosmografia e a Astronomia. Tratam, pois, de campos específicos dos seres, mas não da sua totalidade. Essas ciências dão conta das substâncias sensíveis, as quais estão naturalmente submetidas à geração e corrupção, com exceção dos astros e de todos os movimentos celestes, considerados por Aristóteles como

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incorruptíveis, uma vez que não estão sujeitos às mesmas mudanças por que passam os homens, seres temporais.

A única ciência que poderia abarcar a totalidade seria, para o filósofo, a ciência divina (ou Teologia), a qual, hierarquicamente, é descrita na sua teoria como superior às outras porque é a fonte de toda a vida. De acordo com suas palavras, essa ciência é livre por ter como objeto de estudo o próprio Ser Absoluto e, portanto, ter em si mesma o fim elevado ou supremo, razão pela qual só Ele pode dominá-la e compreendê-la totalmente em toda a sua perfeição. Aristóteles descreve-O como substância imaterial, imóvel, suprassensível e incorruptível, porque é eterna e não está, pois, submetida ao tempo. De Deus emanam as vidas de todos os outros seres. Ele é, para o filósofo, o Motor Imóvel do universo que a tudo e a todos movimenta e que, todavia, mantém-se inalterado.

Por esse motivo, permanece em si e para si sempre. Devido à sua perfeição e eternidade, vive em total estado de contemplação. É amado pelos homens, mas ama somente a si próprio porque é ato puro, é puro pensamento. As coisas é que estão a Ele destinadas por quererem se aproximar da beleza, do amor e da perfeição. O filósofo entende que o movimento dos homens, dos astros, e até do universo, que também é eterno, é sempre em direção a este Ser Supremo e nunca o contrário. Apesar de conceber como eternidades Deus e o universo, argumenta que superior é somente Deus por ser perfeito. O universo não o é, pois é infinito e, portanto, dependente do tempo.

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acontece em breves momentos, quando faz metafísica, ou seja, quando busca esse tipo de conhecimento elevado. Para Aristóteles, é nesse rápido contato em que realiza temporariamente a contemplação dos princípios primeiros e supremo das coisas, que os indivíduos podem alcançar o momento máximo de felicidade.

No sentido de sabedoria ou investigação do saber, ou, em outros termos, daquilo que busca conhecer o que gera, causa ou estrutura tudo o que existe no mundo, o filósofo grego denominou a metafísica também como pesquisa das “Causas primeiras”4 ou dos “Princípios primeiros”. Trata-se, de

acordo com Reale (2001), de ultrapassar a verificação empírica, ou primeiro tipo de saber, para compreender a razão de ser das coisas, o porquê último de existirem. Refere-se, enfim, às causas e princípios que dão origem aos seres em sua totalidade. Nesse sentido, Aristóteles argumenta que o nosso e os outros mundos se movimentam a partir de uma causa ou princípio primeiro que é Deus e, se Ele é o causador, tudo o que é causado, volta-se para Ele como uma lei de ação e reação. Assim, qualquer coisa que exista no mundo foi feita a partir de quatro causas, quais sejam: a formal, a material, a eficiente e a final. As causas formal e material são, respectivamente, a alma e a matéria que estruturam tudo o que é sensível, como o homem, por exemplo. Mas, por não ser imóvel como Deus, Aristóteles considera que as duas primeiras causas não dão conta de explicá-lo. A matéria apenas mostraria do que são feitas as pessoas, os animais e os objetos; a forma ou essência seria a alma (eidos), a causa primeira do ser, mais precisamente o elemento anímico do corpo, ato puro e imaterial. No entanto, ainda seria necessário algo que a movimentasse: a vontade, ou causa motora e eficiente.

Em outras palavras: esta causa identifica a força e o que provoca a mudança e o movimento das coisas, isto é, como nasceu o homem, o que fez com que fosse gerado e o que o impulsiona. O movimento é representado por suas ações, determinado pela vontade. A última causa (a final), completaria, para Aristóteles, a explicação do homem, pois indicaria o propósito ou o fim de

4A esse respeito, são bastante esclarecedores os esquemas e explicações de Giovanni Reale

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tudo, o porquê de cada coisa ser, advir ou se fazer. Tudo controlado pelo Bem, por Deus, portanto. Esta última causa levaria ao Movente Imóvel, ao Motor, pois é para Ele que tudo se destina. Logo, Deus é a causa eficiente-final, uma união das duas últimas. E porque igualmente são responsáveis pelo movimento e pela mudança das coisas, como do tempo, por exemplo, o sol e os céus foram também classificados pelo filósofo grego como causa motora e eficiente, tal qual a vontade.

De todas as causas descritas, são intrínsecas ao homem a matéria, a alma e o fim. A matéria porque constitui a sua formação e também porque é a

“casa” na qual habita o princípio anímico, pois a alma só pode habitar um corpo vivo; e o fim por fazer parte da vida dos indivíduos do mesmo modo que o nascimento, pois todos a ele estão destinados. Trata-se de uma certeza que se torna mais ou menos natural na medida em que o homem observa os seus iguais. Por isso, o filósofo grego se ocupou delas na física e na metafísica, a fim de poder observar o movimento do todo. Na física, porque o homem conhece e compreende as quatro causas; e na metafísica, porque, de acordo com Aristóteles, somente depois disso, ele é capaz de se dedicar à busca das realidades suprassensíveis. E é justamente esse movimento do todo que remete à Teologia, já que o objetivo é encontrar o grande responsável por tudo o que acontece no mundo e no universo, a causa primeira de todas as coisas: Deus.

Porém, ao investigar Deus como a primeira causa motora final, a metafísica sofre uma espécie de particularização, tal qual acontece com as demais ciências. Isso só se modifica quando Aristóteles conceitua a ciência como a teoria do “ser enquanto ser” ou ontologia, ampliando, dessa forma, o seu status de análise no que se refere aos traços mais universais do ser, por abarcar a totalidade da sua realidade, como esclarece Reale (2001). Assim, se a Teologia aborda apenas um aspecto do ser, Deus, a ontologia tem por objeto o estudo de todos os seres e isso inclui o Ser Absoluto.

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aspectos do ser, significa dizer que ele está em tudo. E essa multiplicidade de significados pelos quais se expressa levou o filósofo a chamá-lo “polívoco”.

A polivocidade do ser deve, entretanto, estar reunida no uno, na substância. Por substância, Aristóteles entende aquilo que subsiste em si e por si separadamente mantendo a unidade do ser. Portanto, ela não pode derivar de outro. Ao contrário, ela é ato que movimenta, que atua, logo, não pode ser potência. Depois de conceituá-la, o estudioso atribui a ela igualmente o adjetivo

“polívoca”, dividindo-a, conforme demonstra Reale (2001), em três gêneros: em dois sensíveis: o ser corruptível, sujeito à geração e à mudança do tempo, e os céus e esferas celestes, que são incorruptíveis por serem feitos de matéria incorruptível (o éter e a quintessência); e em um suprassensível (os entes imateriais que são ato puro). Para Aristóteles, dos gêneros sensíveis devem se ocupar a física e a astronomia. A metafísica se ocupa do gênero suprassensível e do sensível, se levarmos em conta a alma como único ponto de contato entre todos.

A fim de melhor se fazer compreender, Aristóteles explica a substância a partir da matéria sensível respeitando a ordem de conhecimento dos homens. A matéria não é ato, é potência latente, porque não subsiste sozinha. Desse modo, não pode ser considerada substância, algo unitário, a menos que esteja unida à forma (alma), isto é, animada por ela. É, pois, a forma uma unidade e aquilo que dá unidade à matéria, simplesmente por ser ato puro, princípio anímico, por subsistir por si mesma. Junto com a vontade, é ela que movimenta o corpo.

Para o filósofo grego, a forma possui mais ser do que a matéria porque dela não depende. Acontece exatamente o contrário, pois a matéria sem alma é morta. Desse modo, a alma é considerada por Aristóteles como substância no mais alto grau, tanto que dedicou-lhe um estudo intitulado De Anima (2012), no qual se volta para a análise desta substância. Nessa obra, a partir das atribuições deste princípio anímico levantadas por seus predecessores, o

filósofo conclui: “Assim, por um lado, todos aqueles que deram atenção

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percepção sensível, o homem manifesta o pensamento, pois o raciocinar é próprio daquele que possui intelecto, alma, isto é, enquanto a possui, já que o que é corruptível é o corpo, afinal,

a velhice não acontece porque a alma sofre algo, e sim o corpo em que ela está, tal como no caso das bebedeiras e doenças. O pensar e o inquirir certamente se deterioram quando algum outro órgão interno se corrompe, mas eles mesmos são impassíveis. (ARISTÓTELES, 2012, p. 62)

Diante do exposto, julgamos ter deixado bem claro a importância que Aristóteles confere à forma. Em grau menos importante nomeia por substância o sínolo, isto é, a união entre corpo e alma. O sínolo5, todavia, não possui o mesmo grau de substancialidade da alma (forma), porque, segundo Reale, é simplesmente consequência dessa ligação, um modo de manter a substância imaterial ligada à matéria. Isso significa que somente a alma pode ser um elo de contato entre o mundo corpóreo e as formas imateriais, como Deus e as inteligências moventes das esferas celestes, pois, com a morte do corpo, esse elo se desfaz e somente ela sobrevive.

A substância forma é, enfim, a estrutura ontológica e princípio metafísico do ser. É a realidade primeira porque todos os seres dela dependem. E se a

matéria enquanto “habitada” pela alma é substância, assim como também o é a alma e o sínolo, então o ser, para o filósofo grego, é o mesmo que substância.

De todas as substâncias, a primeira é Deus. Por ser Supremo, é definido por Aristóteles como ser inteligente, espiritual, eterno, vida contínua, que tem seu modo de viver na atividade contemplativa do pensamento. Pensa somente o que é puro, o que está relacionado ao Bem e, dessa forma, pensa, portanto, a si mesmo, porque apenas Ele é detentor de tantas qualidades morais. Esse estado de pensamento constante chamado pelo filósofo de excelente, a nós é impossível, porque desse ato temos apenas alguns momentos. Isso acontece por não sermos perfeitos como Ele para termos constância na virtude. Assim, Deus, que é eterno e ato puro, vive em condição superior. Nós, ao contrário, somos substâncias (matéria e forma) em potência e nos transformamos em ato quando nos movemos para algo a partir da vontade, quando exercitamos a

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sapiência e nos entregamos à contemplação das coisas supremas através do pensamento.

Mas, apesar da superioridade divina de Deus, o filósofo não O considerou capaz de governar o mundo todo e o universo classificado por ele em 55 esferas, segundo Reale. Deus seria o Primeiro Movente Imóvel movendo diretamente a primeira esfera e indiretamente as demais governadas por outras 55 substâncias imóveis e eternas, que Lhe seriam hierarquicamente inferiores. E mesmo sendo o Grande Governador, o Deus aristotélico não teria criado o homem, o mundo e as almas individuais. De acordo com Aristóteles, Ele é tão eterno como o é o mundo e o universo. E se o homem não foi feito por Deus, não seria também objeto do seu amor, pois Ele só pode pensar e amar a si mesmo. Porque é superior, só o homem pode amá-Lo por estar sempre na tentativa de aproximar-se da pureza e do Bem. Na teoria aristotélica, não há possibilidade de um movimento contrário.

A substância ou essência do ser é tão complexa que pode se apresentar de modos diversos, e seja como for essa manifestação, ela é considerada pelo filósofo como “acidente” de algo que já existe. Pelos conceitos aristotélicos, retomando o tema que conduz este estudo, se dizemos que Mario Quintana é um ser indagando o mundo, ele é também substância transformada de potência em ato no momento em que a forma “anima” a sua matéria, e quando se volta para as questões metafísicas em pensamento contemplativo, instante em que segue a direção das esferas superiores e de tudo o que está para além do que é sensível, como o além-túmulo, por exemplo.

O poeta é, portanto, um homem inserido numa determinada sociedade, num país, num estado, detentor de uma vasta cultura com relações diversas de família, amigos e trabalho. Tudo o que o determina enquanto substância, é, enfim, chamado de acidente, ou, mais precisamente, são todas essas categorias do ser que ajudam a descrevê-lo, mas não definem exatamente o que ele é, porque o ser é polívoco, universal e equívoco. Desse modo, a obra de Aristóteles deixou como herança para as gerações posteriores o problema das várias significações do ser.

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1.1.1 A rejeição à racionalidade ocidental

Em estudo intitulado “Nietzsche e a história da civilização”, Eduardo

Brandão apresenta uma síntese do pensamento do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900). De acordo com Brandão, a crítica de Nietzsche à racionalidade ocidental tem o objetivo de refletir sobre a relação entre civilização e cultura. Em suas primeiras obras, O nascimento da tragédia (1871) e Para além do bem e do mal (1885 / 1886), o filósofo refuta a cultura alemã por estar calcada no modelo francês de civilização, que apontava para um grave problema no país, revelador de uma educação limitada.

Inicialmente, toma como modelo para a formação alemã a música dramática de Wagner e a filosofia de Arthur Shopenhauer (1788 - 1860), no intuito de encontrar uma unidade para a cultura da nação. Porém, na maturidade, segundo Brandão, Nietzsche chega a conclusão de que toda a cultura de uma maneira geral, necessita de uma análise mais aprofundada e Wagner e Shopenhauer, antes modelos, passam a ser considerados decadentes na obra Humano, Demasiado Humano. Acreditava o filósofo que o primeiro inclinava-se ao pessimismo da filosofia de Schopenhauer, porque, na altura, teria se convertido ao cristianismo, tornando-se devoto. O rompimento com os dois representava também uma ruptura com a moral cristã e, ao mesmo tempo, uma crítica à metafísica.

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Queria, enfim, libertar a Europa da ideia resultante de crenças que traduziam a mesma aposta na razão, de Platão a Schopenhauer, enfatiza Brandão. Ataca, sobretudo, o cristianismo por conceber o mundo como um lugar transitório, de infelicidade, que se opõe à felicidade eterna do outro mundo. É nesse sentido que Deus estaria morto para Nietzsche, pois chama essa religião de “Platonismo para o povo”. Assim, por considerá-la uma síntese dos ideais de civilização desde a Antiguidade, ao criticá-la, rejeita a metafísica.

1.1.2 A ontologia existencial de Martin Heidegger

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889 - 1976), partindo da metafísica grega, desenvolve as suas reflexões sobre o problema do ser em suas obras Ser e tempo (2005) e Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão (2003), começando sua análise pela existência humana, por acreditar que somente através do homem é possível se chegar ao ser mais profundo, isto é, ao ser do ente. Critica, sobretudo, o caráter extrínseco do conceito de metafísica que percorreu a história, em que alguns mistérios como Deus e a imortalidade da alma nos são apresentados como entes dados, prontos.

Para Heidegger, interessa principalmente estudar o aspecto ontológico do ser, isto é, o ser na totalidade, a fim de entender o sentido da existência do homem em sua relação com o mundo. Por isso, desenvolve a sua teoria contrapondo o método de seu mestre Husserl. Em sua fenomenologia, Husserl defendia a construção do conhecimento pela redução transcendental, a partir de um eu transcendental e de um universo subjetivo, inalcançável, ao qual denominou Lebenswelt (mundo vivido).

O grande problema desse método, de acordo com a análise do filósofo Ernildo Stein (2004) em Mundo vivido: das vicissitudes e dos usos de um conceito de fenomenologia, é que nesse mundo vivido Husserl excluía totalmente a vida humana que sustentava a redução transcendental e esse mundo interior. Essa constatação foi feita por Heidegger e, com isso, ele pôs em dúvida a teoria do mestre. Nas palavras de Stein, a obra do discípulo Ser e tempo “passou a ser um espelho onde Husserl via o problema do seu trabalho

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A partir disso, ao considerar a vida humana em seus estudos Heidegger preocupa-se com o ser-no-mundo, com a finalidade de compreender o significado dessa relação entre o ser e tudo que o circunda, pois acreditava que o sentido do mundo não poderia vir simplesmente de Deus ou da natureza como pretendia a metafísica tradicional. O seu método é, desse modo, hermenêutico, por buscar a compreensão das coisas através do aspecto ontológico do ser. Trata-se de uma postura do indivíduo diante do mundo, um voltar-se para o eu interior ao que o filósofo chama “ser-aí”, a partir de um questionar-se sobre a própria singularização e sobre o que é, para ele, de certa forma oculto, mas que, ao mesmo tempo, o envolve. O ponto é que, ao adotar esse comportamento, o homem coloca-se também em xeque. Nesse sentido,

segundo Heidegger, “a metafísica é uma interrogação na qual nos inserimos de modo questionador na totalidade e perguntamos de uma tal maneira que, na questão, nós mesmos, os questionadores, somos colocados em questão.”

(HEIDEGGER, 2003, p. 11), principalmente porque é difícil haver uma resposta definitiva.

O que leva o indivíduo a perguntar-se e a buscar-se a si mesmo, conforme o filósofo em Ser e tempo (2005), é o sentimento de angústia perante o próprio aniquilamento no qual se vê mergulhado diante das questões cotidianas e das pressões sociais. Ao viver absorto nos conceitos e ideias determinadas pela sociedade, como explica Heidegger, o homem esquece-se do projeto individual de tornar-se “si-mesmo”. Mas, segundo o filósofo, temos intrinsicamente o impulso de nos lançarmos na totalidade em busca do Ser Supremo, porque estamos sempre a caminho de alguma coisa e por isso nos inquietamos.

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acontecimentos que fazem parte do destino do homem é a morte, o que é então a morte? E além da morte?

De frente para esse abismo de incertezas, surge um universo que aponta para o nada junto com um sentimento de total estranheza e de um desejo de entendimento do seu lugar no todo. Nesse instante, o indivíduo é tomado pelas mais diversas questões metafísicas que, por mais comuns que sejam a todos, como explica Heidegger, são autênticas porque emergem do si mesmo, porque não provêm de livros e porque traduzem a aflição individual. Dessas indagações, tomaremos algumas descritas pelo filósofo que são feitas pela própria ciência metafísica quando se pergunta pelo ente na totalidade, por acreditarmos que também o homem comum pode igualmente ser arrebatado por elas:

[...] o que é a própria vida, o que é a alma, o vir-a-ser e o perecer, o que é o acontecimento como tal, o que é o movimento, o lugar, o tempo, o que é o vazio, no qual o que está em movimento se movimenta, o que é na totalidade este ente que se movimenta a si mesmo e o que é o primeiro motor. (HEIDEGGER, 2003, p. 40)

Neste ato solitário de pura singularização, ocorre uma espécie de estar tomado por, uma necessidade de conhecimento, que leva o ser em direção à totalidade. No questionar-se, faz metafísica e pode chegar ao entendimento daquilo que pergunta. Mas tanto o filosofar quanto a compreensão sobre algo acontecem no eu interior, no ser-aí humano, a partir do que Heidegger denomina tonalidades afetivas, ou seja, a partir do modo como cada indivíduo vê e apreende as coisas. Então, se a metafísica é um acontecimento de um ente singular que ocorre nas profundezas do ser, e se compreender a essência das coisas depende do modo como esse ser-aí as entende no seu íntimo, os conceitos de metafísica são representações de entes universais e de nós mesmos no momento em que nos expandimos em relação a estes entes. Nessa situação, esclarece Heidegger, ocorre uma abertura do indivíduo enquanto ente na totalidade que precisa acontecer no seu interior, através do desentranhamento do ser do ente.

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estabelece em Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão (2003). A diferença entre ser e ente é bastante obscura, e irrompe, como já foi referido anteriormente, desde Aristóteles, principalmente porque a definição de ente é variável: há os sensíveis e o suprassensível. Mesmo assim, o ente é o que há de mais concreto na metafísica, enquanto o ser, ao contrário, se revela como universal e abstrato, sobretudo porque o ser é finito em sua manifestação no ente.

Heidegger sinaliza a problematização da falta de unidade da significação dupla do ente que nos foi legada ao longo da história: o ente na totalidade considerado ou ente em geral (o suprassensível), e o ser do ente como essência. Ainda que o ente divino seja mais elevado, esse objeto da Filosofia Primeira é considerado por Heidegger como sendo apenas uma região do ente

entre outras, a qual justifica o significado grego de “Metá”, pois está por sobre,

para além dos demais entes físicos. De acordo com a sua teoria, quando transcendemos em direção ao metafísico, ou seja, quando nos projetamos para fora do físico, nos deparamos com o caráter extrínseco do conceito de metafísica. Aqui vale esclarecer que, além do ente suprassensível que já está

naturalmente “para além”, o homem enquanto ente singular6, enquanto ser-no-mundo também pode “estar para além de” em dupla abertura, nas palavras do filósofo: quando se projeta em direção ao ente verdadeiro na totalidade, e quando se pergunta pelo que pertence a todo e qualquer ente como um e não outro, para o que o diferencia dos demais.

Porque todas essas questões são elaboradas no interior do homem, no fundo do ser, o objetivo da metafísica, segundo Heidegger, é procurar a essência das coisas, de modo a dar a conhecer a constituição ontológica do ente, ou seja, investigar o ente nele mesmo. O ser, mais abstrato, é, desse modo, justamente essa diferença. Em outros termos: o ser é o espaço interior onde acontece essa distinção. Trata-se de um lançar-se para fora de si em direção a alguma coisa, através do pensamento essencial, momento da manifestação e transcendência do ser-aí suspenso dentro do nada. O filósofo entende que toda vez em que procuramos saber alguma coisa, tal como já

6Heidegger explica que além do homem, ente é tudo o que está manifesto de um modo ou de

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havia dito Aristóteles, transcendemos, projetamo-nos no vazio em direção a algo.

Esse abrir-se do ser-aí para a totalidade, para a possibilidade de realização, implica antes uma constante apropriação do real para depois uma transposição para o interior e, finalmente, como um ato de expansão, no qual compreendemos as coisas. Heidegger esclarece que justamente quando ocorre esse desentranhamento ou irrupção do ser do ente, as dúvidas e os questionamentos do homem se tornam possíveis e as respostas às suas perguntas se apresentam como possibilidade. Possibilidade no sentido de que o ser-aí no homem se revela, conforme o filósofo, como formador de mundo, pois apresenta subjetivamente imagens e aspectos desse mundo, a partir do seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo, sobretudo em relação ao que está distante da sua compreensão, como o suprassensível e a eternidade.

Ao valorizar a fenomenologia com o objetivo de estudar a natureza originária do ser-aí, Heidegger distancia-se totalmente da metafísica tradicional. Assim, os mistérios da vida que estão “para além” passam a apresentar-se para o homem apenas como possibilidade. Deus, por exemplo, por estar “por sobre”, fora do ser-aí é, para o filósofo, não tematizável e, portanto, nada, um não-ente e só pode ser representado como uma hipótese, um “vira ser real”.

Seguindo esse raciocínio, o mundo é, enfim, um construto possível do homem, uma abertura do ente na totalidade. Diante de tantas possibilidades, o indivíduo viveria, segundo Heidegger, em estado de permanente tensão e inquietação em relação àquilo que realmente é e ao que pode vir a ser, pois precipita-se também em direção ao futuro (consideremos a morte, por exemplo) e para ele transcende. Porém, do mesmo modo em que se lança na direção do futuro, está, ao mesmo tempo, preso ao passado e carrega o peso da sua própria história e cultura. Essa inquietação, de acordo com o filósofo em Ser e tempo (2005), estrutura-o dentro da temporalidade, porque o sentido do ser está no próprio sentido do tempo.

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questões metafísicas, transcende em direção ao universal através do eu interior, a fim de tentar apreender o suprassensível, o que significa a sua existência e o que está para além dela como possibilidade. No instante em que se lança por este caminho, distancia-se da coisa observada, a ultrapassa, está por sobre ela buscando, num esforço da razão, entender o que há nela de abstrato criando, enfim, um mundo incorpóreo de ideias como possibilidade de significado para o que lhe é desconhecido. O ser humano estaria, assim, conforme Heidegger, sempre procurando algo além de si mesmo e o seu verdadeiro ser consiste justamente em objetivar aquilo que ainda não é.

Na essência do seu ser, forma um mundo subjetivo que só pode ser instaurado objetivamente na poesia e pela poesia, através da linguagem, como

explica o filósofo em “Hölderlin y la esencia de la poesía”. É, enfim, no espaço do poema que a essência do ser se revela e fixa o seu pertencimento na Terra

dentro de um tempo determinado. A poesia é, desse modo, “la instauración do

ser con la palabra” (HEIDEGGER, 1992, p. 137) e igualmente da existência

humana. Num jogo de palavras sem nenhum compromisso com a verdade, o

homem “inventa su mundo de imágenes”, como uma possível resposta para a

sua compreensão do mundo.

É assim que entendemos os poemas selecionados e analisados no quarto capítulo: como possibilidades de respostas, uma tentativa de Mario Quintana de minimizar as próprias dúvidas no que concerne às questões metafísicas, tornando o mais íntimo do seu ser totalmente desnudo diante dos seus leitores num ato de profunda e solitária comunicação.

Por essa razão, apesar da importância do pensamento nietzschiano, queremos justificar o motivo de termos recuperado as teorias de Aristóteles e de Heidegger. Embora Quintana não seja adepto de nenhuma religião específica, ou como diria Nietzsche, de nenhuma verdade absoluta, nos interessa, para este estudo, o modo como ele se posiciona na contemplação dos temas transcendentais em busca de respostas. Essa procura pelo saber, tão bem assinalada por Heidegger (e igualmente por Aristóteles!) como um comportamento inerente ao homem, reflete a atitude do poeta na sua relação com o divino, com a morte e com a eternidade.

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isso, a ontologia existencial de Heidegger e o modo como concebe a postura questionadora dos indivíduos diante da vida e do mundo interessa para este estudo pelos motivos que seguem: primeiro por considerarmos um corpus singificicativo que denota claramente uma linha de pensamento: a preocupação de Mario Quintana com a temática; segundo, porque nos centramos no poeta, um homem diante de si mesmo e de tudo o que cerca, colocando-se em xeque na medida em que procura entender o significado de existir; terceiro, porque o mote amplamente oferecido em sua Poesia completa (2005) não é uma particularidade sua, mas uma dúvida universal. Isso significa dizer que todos os homens em um momento da vida se voltam para a contemplação das próprias indagações, como descreve Heidegger em sua teoria. Todos buscam compreender o desconhecido, ou seja: tudo o que está para além do físico e do nosso entendimento nunca deixará de ser tema, principalmente porque se configura como curiosidade existencial e não como experiência humana, se considerarmos o além, por exemplo.

Por não conseguir decifrar o misterioso, o homem se entrega a novos modos de representação, segundo a sua tentativa de entendimento, pois não pode superar aquilo que desconhece. A intuição de um Ser Absoluto e os segredos do que nos aguarda o além-túmulo, como um possível retorno a um lugar incerto, marcam uma indagação eterna e cada ser, cada intelecto responderá a isso de um jeito, conforme o meio no qual está inserido.

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2 GENEALOGIA DA POESIA METAFÍSICA. LINHAS HISTORIOGRÁFICAS E EXPERIÊNCIAS POÉTICAS

Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convém, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência [...].

Mario Quintana A proposta deste capítulo, como bem demonstra o título, é apresentar um breve percurso da poesia metafísica ao longo da história. Para isso, devemos considerar que as relações entre religião, literatura e filosofia são bastante estreitas desde as primeiras manifestações culturais de que temos notícia na literatura ocidental. Na Antiguidade, poetas gregos e romanos instauravam, pela força da palavra, a sua interpretação do mundo, influenciando gerações de artistas e estudos realizados em todos os tempos. Desejamos registrar aqui a recorrência das questões existenciais reafirmadas pela representação de temas religiosos e dos mistérios que envolvem a vida, a morte e o além, como um elo entre os indivíduos de qualquer época. Questões essas trazidas à luz pela essência de cada ser como possibilidade de explicação.

É curioso como o homem procura dar sentido ao desconhecido, ainda que de maneira diversa e de acordo com a crença e com a cultura de seu tempo. Seja por uma forte intuição de uma presença superior, seja pela dúvida a respeito dessa presença e daquilo que ultrapassa a realidade do sensível, os poetas inauguram nos seus textos, cada um a seu modo, o que está por trás ou por sobre a natureza. Nesse sentido, Deus existe. Existe na escrita e está por ela eternizado. O inferno, o purgatório, o paraíso, as diversas “caras” da morte

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essas realidades individuais revelando, ao mesmo tempo, o seu mundo mental e incorpóreo, a sua essência concretizada pelos dos mundos que cria ou recria, independente das teorias e/ou filosofias aplicadas que corroboram ou refutam essa temática. São simplesmente questões existenciais que arrebatam o indivíduo em qualquer período da história.

Sem qualquer pretensão de adotarmos uma postura de historiadores, e muito menos de apresentarmos uma exegese teológica das obras escolhidas, apontaremos aqui apenas algumas a título de exemplo, as quais constituem o cânone ocidental, por terem imortalizado o que não pertence ao plano físico. São representações do desconhecido, do misterioso para onde a mente dos homens se volta em estado de total contemplação, buscando explanar para os seus pares uma possibilidade das realidades que podem existir, como acontece em a Ilíada, a Odisséia, a Teogonia, e a Eneida, textos que influenciaram o discurso de tantos outros escritores ao longo das eras.

Nessas obras, a religião estava presente em todas as fases da vida, basta que observemos as situações felizes ou infelizes por que passam as personagens. Todas as ações são comandadas pelos deuses, responsáveis pelo destino dos homens e de todo o movimento do mundo. Ainda que gozem de uma posição privilegiada em relação à humanidade e façam parte de um

plano que está “por sobre” ou “para além” do plano físico, o que lhes permite influenciá-lo diretamente e assistir à vida dos mortais como se fossem verdadeiras peças de xadrez, são descritos à semelhança dos homens tanto fisicamente como em suas paixões, enfatizando, dessa forma, uma espécie de proximidade entre eles.

A ideia supostamente lançada por Homero7, em seus poemas épicos, de

que tudo e todos estão hierarquicamente submetidos à vontade e à aprovação de Deus, é posteriormente discutida por Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) em sua Metafísica. Essa obediência a um único Deus a que o filósofo grego

chamará anos depois de “Movente Imóvel” fica bastante clara no canto V de Ilíada (2001), quando um dos filhos de Zeus, Ares brônzeo, desmancha-se em

7Para o propósito desta tese, basta-nos dizer que foi atribuída a Homero a composição dos

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queixas depois de ter sido ferido em batalha por uma lança guiada por Palas Atena:

Indignação não te causa, Zeus pai, assistir tanto abuso? Por comprazer os imortais, nós, os eternos, estamos sujeitos a indescritíveis tormentos, que a mútua discórdia nos causa. De tudo a culpa tens tu, pois geraste uma filha funesta e destituída de senso, a quem ímpias ações só comprazem. Todos os deuses eternos, que moram no Olimpo vastíssimo, te obedecemos, de grado, e acatamos, submissos, tuas ordens. (HOMERO, 2001, p. 160)

Igualmente em Odisséia (2003), na rapsódia V, é o todo poderoso Zeus quem dá a palavra final e a autorização para mudar o destino de um mortal, depois de ouvir o lamento indignado de Atena, contrariada por ver Ulisses prisioneiro da ninfa Calipso durante sete anos, na Ilha de Ogígia, impedindo-o de retornar à sua pátria, após a tomada de Tróia. Também aqui está claro que os outros imortais são hierarquicamente inferiores a esse Deus.

Zeus pai, e vós, bem-aventurados deuses sempiternos! que, de ora em diante, nenhum rei portador de cetro seja benévolo e bondoso, que seu espírito ignore a justiça, se mostre sempre cruel e pratique ações criminosas, visto que ninguém se recorda do divino Ulisses, entre os povos sobre os quais reinava com brandura de pai. Em paga, vive encerrado numa ilha, sofrendo violentas tribulações, no palácio da ninfa Calipso, que o retém contrariado, impossibilitado de regressar à terra pátria, por não dispor de naus providas de remos nem de companheiros que o conduzam por sobre o vasto dorso do mar; e agora, ainda por cima, querem matar seu querido filho, no seu regresso da sagrada Pilo e da divina Lacedemônia, aonde fora por notícias do pai.

Em resposta, Zeus, o amontoador de nuvens, lhe replicou:

“Minha filha, que palavra te escapou da barreira dos dentes? Não

concebeste acaso, tu própria, o plano, para que Ulisses, à sua chegada, se vingasse daqueles malvados? Quanto a Telêmaco, guia-o com tua sabedoria, porque tens poder para isso, de sorte que ele volte, são e salvo, à pátria, e os pretendentes, logrados,

retornem em sua nau”.

Disse; e a Hermes, seu filho querido, falou: “Hermes, tu que

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terra pátria, depois de lhe terem dado bronze, ouro e roupas, em maior quantidade do que ele teria trazido de Tróia, como quinhão dos despojos, se houvesse regressado sem embaraços. Porque seu destino é que reveja os amigos e volte de novo a seu palácio de elevado teto e à terra pátria (HOMERO, 2003, p. 72-73).

Essa representação do mundo e da crença religiosa da época retratadas por Homero são destacadas por historiadores como Otto Maria Carpeaux (2011), em sua História da literatura ocidental. Para ele, a Ilíada e a Odisseia são um “Cânone estético e religioso, pedagógico e político, uma realidade

completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade.” (CARPEAUX, 2011, p. 52), sobretudo porque são representações possíveis da vida do homem na Terra, símbolos das suas relações com os planos físico e transcendente, este marcado pela idealização da existência de Deus (ou dos deuses), a partir da visão do poeta. Ele salienta que exatamente esse equilíbrio entre idealismo e realidade foi responsável por transformar a Ilíada em uma “bíblia literária da

civilização ocidental”.

Também a Teogonia (1981), de Hesíodo (século VII a. C.), se ocupa do suprassensível ao apresentar o nascimento dos deuses, a luta das divindades pelo poder e a origem do mundo. A constituição da organização do plano transcendente é transmitida e fixada pelo canto do poeta, que tem seu ponto central na peleja de Zeus com as demais divindades pelo poder e pela sua manutenção, através de confrontos de sucessão. O episódio que trata do seu nascimento, por exemplo, mostra como enganou o pai Cronos, filho de Terra e Céu, e o fez vomitar os irmãos engolidos por ele imediatamente após o nascimento, com a finalidade de conservar o seu reinado e não deixar cumprir a profecia de ser dominado e substituído por um filho.

Referências

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