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1. CONCEITOS E REFLEXÕES DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

1.2 CRIANDO ALTERNATIVAS AS EPISTEMOLOGIAS DO

A atual crise global e a hegemonia continuada dos padrões econômicos, sociais, culturais e políticos que conduziram o mundo a este momento histórico têm sustentado um discurso de ausência de alternativas, frequentemente envolto num pessimismo conformado. As Epistemologias do Sul são uma proposta de expansão da imaginação política para lá da exaustão intelectual e política do Norte global, traduzida na incapacidade de enfrentar os desafios deste século, que ampliam as possibilidades de repensar o mundo a partir de saberes e práticas do Sul Global e desenham novos mapas onde cabe o que foi excluído por uma história de epistemicídio (SANTOS; ARAÚJO; BAUMGARTEN, 2016, p. 15).

Como visto, na perspectiva de Santos, os dois grandes motores da racionalidade moderna ocidental são a Ciência e o Direito que se constituem como saberes hegemônicos, regulando todos os contextos da sociedade contemporânea, desconsiderando a existência de outras racionalidades e saberes elaborados a partir das experiências sociais, políticas e culturais de todo o mundo e que “fogem” à razão dominante (SANTOS, 2010).

Como vimos, a racionalidade hegemônica e todo contexto de dominação cultural, política, econômica e social, Santos (2010) atribui, metaforicamente, ao Norte que, por suas características, desperdiça e limita-nos na compreensão das diferentes experiências sociais, políticas e culturais do Sul, que representa tudo que é desconsiderado, inferior e contra-hegemônico.

A racionalidade ocidental hegemônica impõe o “discurso dos vencedores”, o discurso do Norte a todo o restante, deslegitimando todo conhecimento, legalidade e cultura construída pelos grupos sociais do Sul, o que só pode ser superado por outra forma de fazer conhecimento, por outra epistemologia, que ofereça alternativas e possibilite validar as práticas, os valores e as experiências dos grupos sociais produzidos como “não-existentes” por escaparem à lógica hegemônica. À essa nova forma, Santos (2010) nomeou de Epistemologias do Sul.

Para Santos (2010, p.155), a modernidade ocidental se constituiu na base de duas epistemologias, designadas por ele por “conhecimento-regulação” e “conhecimento- emancipação”. No “conhecimento-regulação”, a ignorância é concebida como caos e conhecimento como ordem; já no “conhecimento-emancipação”, a ignorância é concebida como colonialismo e o saber como solidariedade.

Como é sabido, a modernidade reduziu as possibilidades de emancipação apenas àquelas ligadas ao capitalismo, tendo o conhecimento-regulação adquirido total preponderância, neutralizando o conhecimento-emancipação e encarando a solidariedade como caos e colonialismo como ordem (SANTOS, 2010). Nesse cenário, a ciência moderna assume preponderância total reclamando para si o monopólio do conhecimento, consagrando a epistemologia positivista e negando todas as demais, arrasando todos os conhecimentos alternativos a ela, seja no Norte ou no Sul, trabalhando a serviço do projeto de desenvolvimento capitalista (SANTOS, 2010).

De forma geral, toda Ciência produzida no Norte é tida como se fosse única ciência produzida no mundo, tornando o conhecimento científico a forma privilegiada de conhecimento na sociedade moderna, o que se agrava pelo fato de que toda forma privilegiada do conhecimento confere vantagens, de diferentes tipos, a quem os detém. Além disso, quanto maior o privilégio epistemológico, mais concentrado e menos distribuído na sociedade determinado conhecimento é, ou seja, poucos detêm essa prerrogativa. Assim, a ciência moderna é a forma de conhecimento que vem sendo privilegiada epistemologicamente e sociologicamente desde o século XVII, destituindo todas as outras formas de conhecimento (SANTOS, 2010).

Essa razão indolente encontra contexto para seu desenvolvimento no avanço neoliberal, no desenvolvimento do capitalismo e dos demais processos de dominação do capital, como o colonialismo, o imperialismo e a Revolução Industrial, uma vez que todos eles excluíram do debate qualquer conhecimento, cultura ou saber que não fossem provenientes do seu próprio sistema de saberes, tão necessário para sua reprodução, excluindo todo saber exterior a ele (SANTOS, 2002; 2010). Tudo é visto, entendido e analisado em relação àquilo que é dominante/hegemônico, o que produz uma visão de mundo bastante seletiva, relegando à marginalidade/subalternidade tudo o que não contempla ou responde aos interesses hegemônicos; tudo o que “está fora” é desperdiçado, desvalorizado e, portanto, inexiste (SANTOS, 2002).

Santos (2007) também se refere a esse pensamento hegemônico como um pensamento abissal, separado do restante pelas linhas abissais que, se no período colonial demarcavam o Velho e o Novo Mundo, hoje determinam as relações políticas, econômicas, sociais e culturais excludentes que vivenciamos, relegando o que está “do

outro lado da linha”, o Sul, à inexistência, ao desaparecimento como realidade, como legitimidade, tornando-se exclusão (SANTOS, 2007).

O processo de colonialismo, no qual se insere o pensamento abissal, utiliza-se da apropriação (incorporação, cooptação, assimilação) e da violência (destruição física, material, cultural e humana), para se tornar hegemônico e, portanto, as colônias representam tudo aquilo que é excluído radicalmente (SANTOS, 2007). As epistemologias do Norte ainda permanecem a serviço desse colonialismo histórico dos modos de saber, da política, bem como do capitalismo e do patriarcado, impedindo que grande parte da população do mundo possa representar o mundo como seu, exilando-os em seu próprio lugar (SANTOS, 2016).

A linha abissal, portanto,

assenta na ideia de que uma linha radical impede a copresença do universo “deste lado da linha” com o universo “do outro lado da linha”. Do lado de lá, não estão os excluídos, mas os seres sub-humanos não candidatos à inclusão social. A negação dessa humanidade é essencial à constituição da modernidade, uma vez que é condição para que o lado de cá possa afirmar a sua universalidade (SANTOS; ARAÚJO; BAUMGARTEN, 2016, p. 16).

Ou seja, além de determinar diferentes formas de exclusão, a linha abissal caracteriza-se por não poder ser vista e por impedir de ver o outro lado (SANTOS, 2007; 2012a). Na sua matriz, estão princípios, direitos, valores criados como “universais”, mas que vigoram somente no Norte, nas sociedades “metropolitanas”, criando uma suposta homogeneidade entre as diversas experiências sociais, em função do “todo” que é a razão soberana ocidental (SANTOS, 2001; 2002; 2007; 2016).

A ciência moderna, além de justificar processos de exploração e dominação, possui limites para alterar as injustiças sociais, sendo incapaz de alterar as relações machistas, coloniais e as demais relações de poder presentes na sociedade moderna (SANTOS, 2012b). Não só isso, por ser dominante, abafa as demais formas de conhecimento, especialmente aquele que vem da prática, da experiência, desconsiderando-os e invisibilizando-os e tornando impossível conciliá-los com os conhecimentos do Norte. Essa arrogância também torna o Norte, mesmo diante de seus limites e crises, incapaz de aprender com os conhecimentos e as experiências do Sul.

A resistência a essa forma hegemônica e excludente de pensamento precisa buscar um conhecimento alternativo, um pensamento pós-abissal e, como vimos, um

cosmopolitismo subalterno, configurando-se como os movimentos e lutas da globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão de todas as formas, promovidas pela globalização neoliberal (SANTOS, 2007).

O cosmopolitismo subalterno envolve uma ruptura radical com o pensamento abissal e qualquer forma de pensamento ou ação ocidental, tornando possível, um pensamento pós-abissal, necessário para dar visibilidade e romper com esses processos de exclusão e negação das realidades que não pertencem ao “outro lado”. Parte, portanto, da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada e que o pensamento abissal tende a se reproduzir se não houver resistência epistemológica e política - o pensamento pós- abissal só vem à tona se houver ruptura total com o lado norte da linha (SANTOS, 2007).

Logo, para Santos, faz-se necessário criar alternativas jurídicas, políticas e epistemológicas a partir do Sul, que tragam à visibilidade e à legitimidade tudo aquilo considerado não-hegemônico, logo, tratado como não-existente. Torna-se imperativo, portanto, confrontar e tensionar a razão indolente para que, somente assim, possam haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos, implicando novos processos de produção de conhecimentos que rompam com a hegemonia da racionalidade ocidental, as monoculturas e o bloqueio das emancipações, recuperando a experiência desperdiçada por sua arrogância e passando a coexistir com outras experiências sociais (SANTOS, 2002; 2010).

É nesse bojo que Santos propõe a teoria das Epistemologias do Sul, que seriam capazes de apreender a diversidade da experiência social de todo o mundo. Como vimos, o Sul não é simplesmente um conceito geográfico, mas refere-se aos países, regiões, segmentos e grupos populacionais que sofrem processos de exclusão, opressão e discriminação (CARVALHO, 2009; SANTOS, 2012b).

Nesse cenário, elas seriam a alternativa e a proposta epistemológica subalterna e resistente ao projeto de dominação moderna e de produção de diferentes formas de injustiça social baseado, de acordo com Santos (2012b), no colonialismo, no capitalismo e no patriarcado. Essa proposta epistemológica subalterna seria composta pelo conjunto de práticas cognitivas decorrentes das experiências dos grupos sociais subalternos e seria a forma possível de interromper o sofrimento imposto a todos que

compõem o Sul. Sem essa alternativa epistemológica a justiça global jamais será possível (SANTOS, 2010; 2012b).

De forma geral, Santos (2016)13 afirma que as Epistemologias do Sul “são uma intervenção na filosofia e na política do conhecimento, que visa ampliar os processos de criação e compartilhamento do conhecimento”, sendo uma “iniciativa/intervenção epistemológica do conhecimento para criar compartilhadamente conhecimento e compartilhar criativamente conhecimento”. Seu objetivo, portanto, também é político, uma vez que pretende validar os conhecimentos daqueles que sofrem as injustiças sociais, dos oprimidos e excluídos, tendo em vista que os conhecimentos legitimados na nossa sociedade não favorecem a emancipação e a visibilidade desses sujeitos.

Partindo do esgotamento da ciência moderna, especialmente a sociologia, e da necessidade de pensarmos alternativas para além dela, as Epistemologias do Sul pretendem desfamiliarizar aquilo que nos foi ensinado como familiar e como óbvio pela voz dos vencedores, do homem, branco, europeu, “abrindo uma janela para a experiência do mundo, cuja diversidade de saberes, sentidos, afetos é imensa”, criando alternativas (SANTOS, 2012b) e, de certo modo, rompendo com o totalitarismo hegemônico, do campo epistemológico, político e do direito que dominam na sociedade moderna, já que os diferentes modos de conhecer promovem diferentes efeitos no mundo, no sentido de transformação possível do mesmo (SANTOS, 2010).

Ressaltamos, porém, que as Epistemologias do Sul não rompem com a ciência, mas propõe convivência, partilha, relações não hierárquicas com ela – elas são contra sua hegemonia e a invisibilização dos outros saberes que decorre dela. Ou seja, elas são contra a arrogância da (suposta) universalidade conferida à ciência, propondo relações horizontais e não hierárquicas, para a produção de pensamentos pós-abissais, a partir do Sul, superando o pensamento abissal da modernidade (SANTOS; ARAÚJO; BAUGARTEN, 2016).

Assim, as Epistemologias do Sul são necessárias por existirem as do Norte e apesar de não serem uma ruptura completa com o conhecimento já existente, pois

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Além do material escrito, também acessamos aulas gravadas do professor Boaventura de Sousa Santos disponíveis em uma plataforma de compartilhamento de vídeos. Essa referência trata-se de SANTOS, B.S. Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. 2016. (1h22m45s). Publicado pelo canal ALICE CES Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q75xWUBI8aY Acesso em 05 Out. 2018.

também partem dele para construir novos e diferentes, constroem outra visão de mundo que colabora para nos tirar da opressão (SANTOS, 2012a; 2016). São os movimentos sociais, de mulheres, de indígenas, camponeses, que por meio de normas, conhecimentos que não são do Norte, mostram outras maneiras de estar no mundo e existir (SANTOS, 2016).

É imperativo, portanto, na perspectiva de Santos, trazer à tona e dar legitimidade a essas experiências e alternativas provenientes do “Sul” do mundo, uma vez que o desperdício e a ocultação dessas experiências, impostos pela racionalidade ocidental precisam ser extintos, a fim de dar espaço à razão cosmopolita.

Para tanto, Santos (2002) define três procedimentos que fundamentam a razão cosmopolita: a Sociologia das Ausências, a Sociologia das Emergências (ambos instrumentos para provocar a desfamiliarização, trazendo para a realidade outras realidades) e a Ecologia de Saberes que consiste no conjunto dos saberes alternativos que emergem desses procedimentos sociológicos. Esta última pressupõe a Tradução Intercultural, que seria a tradução entre esses saberes, para que eles possam transitar e serem inteligíveis em diferentes contextos e culturas, sem destruir nenhum deles (SANTOS, 2012b). Detalharemos cada um desses conceitos a fim de localizar nossas referências para a análise desse trabalho.

1.3 O que torna possível novas alternativas e existências? A Sociologia das