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1. CONCEITOS E REFLEXÕES DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

1.3 O QUE TORNA POSSÍVEL NOVAS ALTERNATIVAS E

Ecologia de Saberes

Tais procedimentos surgem, conforme vimos, da necessidade de uma racionalidade mais ampla, mais cosmopolita, que dê conta da diversidade epistemológica e das experiências sociais do mundo, desperdiçadas pela racionalidade moderna ocidental, ou seja, as Epistemologias do Sul. Assim, partem do inconformismo, da indignação buscando privilegiar as experiências, conhecimentos e saberes dos diferentes grupos sociais de forma que possibilitem a transformação e a emancipação social (SANTOS, 2010).

De acordo com Santos (2010), existem diferentes lógicas de produção de não- existência na sociedade moderna ocidental, configurando-se como monoculturas. A

a monocultura do tempo linear, que reforça a ideia de que a história tem sentido e direção únicos e conhecidos, em que os países centrais estão à frente, por seus conhecimentos, instituições e formas de sociabilidade dominantes, considerando atrasado tudo o que é diferente em relação ao que é considerado avançado; a lógica da

classificação social, que se dá pela naturalização das diferenças, distribuindo as pessoas

por categorias que naturalizam hierarquias (racial/sexual, por exemplo), tendo como consequência uma relação de dominação em que a não existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável, porque é dada como natural; a lógica da escala

dominante, sendo que as duas escalas na racionalidade ocidental são o universal e o

global, produzindo a não existência sob a forma do particular e do local; e por fim, a

lógica produtivista, baseada nos critérios da produtividade capitalista, produzindo não

existência sobre a forma do improdutivo que, aplicada à natureza, é esterilidade e, aplicada ao trabalho, é preguiça ou desqualificação profissional (SANTOS, 2010).

Para cada um desses modos, a Sociologia das Ausências opera substituindo monoculturas por ecologias (SANTOS, 2010), tendo por objetivo ampliar e expandir o domínio das experiências sociais já disponíveis/existentes, tentando trazer à tona e dar visibilidade ao que é produzido como não-existente, transformando ausências em presenças e criando condições para ampliar a experiência, questionando, portanto, a “suposta” totalidade hegemônica (SANTOS, 2002; CARVALHO, 2009). Ela parte do pressuposto que há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada, inferiorizada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de modo irreversível; pois tudo que é “inexistente” é “obstáculo” para o que é hegemônico, sendo que essa experiência é desperdiçada (SANTOS, 2002; 2010). Busca, portanto, dar existência a tudo isso, tornando presente e criando condições para ampliar a experiência ocultada, confrontando o tradicional.

A Sociologia das Emergências, por sua vez, têm o papel de fazer emergir, de expandir o domínio das experiências sociais possíveis, ou seja, daquilo que tem potência de vir a existir. É a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas; é responsável pela contração do futuro, o que consiste em substituir o vazio do futuro segundo a lógica do tempo linear por um futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que vão se constituindo no presente por meio das atividades de cuidado (SANTOS, 2010). Para

Santos (2003), a Sociologia das Emergências busca interpretar de maneira expansiva as iniciativas, movimentos, organizações que se mostrem resistentes ao neoliberalismo e à exclusão social.

Em outras palavras, segundo Santos, Araújo e Baumgarten (2016), a partir da linha abissal, o “outro lado” desaparece, tornando-se invisível mediante as monoculturas. As Sociologias das Ausências e das Emergências são fundamentais, justamente, para garantir a superação do pensamento abissal. Enquanto a Sociologia das Ausências traz para o presente o que foi invisibilizado, substituindo monoculturas por ecologias, a Sociologia das Emergências amplia as possibilidades/expectativas, os embriões de um futuro, carregando consigo, portanto, um futuro com esperança, rompendo com o pessimismo e o conformismo do presente.

Assim, enquanto a sociologia das ausências se move no campo das experiências sociais, a sociologia das emergências move-se no campo das expectativas sociais (SANTOS, 2010). As duas formas estão diretamente ligadas, uma vez que quanto mais experiências estiverem disponíveis no presente, no mundo, mais experiências serão possíveis no futuro (CARVALHO, 2009; SANTOS, 2010).

Outro processo fundamental nesse movimento emancipatório seria o Trabalho

de Tradução. Dado o infinito número de experiências sociais na sociedade

contemporânea, visibilizados pelas Sociologias das Ausências e das Emergências, é impossível que tais experiências sejam regidas por uma teoria única ou geral, logo, a tradução, ao articular movimentos e experiências contra-hegemônicos e emancipatórios, pretende criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a identidade de nenhuma delas (CARVALHO, 2009; SANTOS, 2010). Ela é complementar à Sociologia das Ausências e das Emergências, pois enquanto essas últimas visam criar o maior número e diversidade de experiências disponíveis e possíveis, o trabalho de tradução visa criar inteligibilidade, coerência e articulação entre a multiplicidade e a diversidade das experiências sociais (SANTOS, 2010).

O trabalho de tradução parte do princípio de que nenhuma experiência tem totalidade exclusiva e que “todas as culturas são incompletas, e podem ser enriquecidas pelo diálogo e confronto com outras pessoas” (SANTOS, 2002, p. 264). Segundo o autor, quando saberes não hegemônicos se articulam, por meio da inteligibilidade, com outros saberes em igual condição, cria-se uma maior potência de tornarem-se contra-

hegemônicos, uma vez que se fortalecem entre si. Assim, a tradução serve para identificar o que une, o que é coerente, e o que distancia diferentes saberes não hegemônicos, dando-lhes condições para se fortalecerem e se unirem, nas suas igualdades, bem como nas distinções (SANTOS, 2002).

A Ecologia de Saberes, então, consiste na pluralidade de todos os conhecimentos que compõem as Epistemologias do Sul, indo além do conhecimento científico, hegemônico, proposto pela racionalidade ocidental moderna, cuja característica, como se sabe, é a monocultura do saber. Ela serve para romper com essa forma de monocultura, dando espaço a outros saberes, legitimando-os (SANTOS, 2002; 2010). Parte do princípio da incompletude de todos os saberes e do pressuposto de “igualdade de oportunidades” a cada um deles, dando condições para o debate de diferentes formas de conhecimento e saber envolvidas nas muitas disputas epistemológicas contemporâneas (SANTOS, 2010).

Tendo por atributo fundamental a tradução cultural, a Ecologia de Saberes, ao abarcar diferentes saberes (e ignorâncias) e ao revelar toda diversidade e pluralidade das práticas sociais, possibilita dar credibilidade, legitimidade e fortalecer todas essas formas de produzir e conceber saberes, especialmente aquelas não visibilizadas pela racionalidade moderna e a globalização hegemônica, abrindo espaço para toda a diversidade epistemológica do mundo. E sendo assim, o pensamento ecológico constitui-se em um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2010). Trata-se também de uma

ecologia, pois, se assenta no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da

autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre os mesmos (SANTOS, 2010, p.157).

A Ecologia de Saberes baseia-se no diálogo, em que saberes plurais precisam ser articulados, bem como suas contribuições, permitindo, assim, tanto uma visão mais ampla do que conhecemos, como do que desconhecemos, pois torna possível o conhecimento daquilo que estava invisível (SANTOS, 2010).

Ela, emerge, portanto, onde a resistência ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado possibilita proliferar outros conhecimentos e práticas de resistência (SANTOS, 2010). Além disso, ela procura dar coexistência epistemológica ao saber propositivo (SANTOS, 2010, p. 157), partindo do reconhecimento da pluralidade, da autonomia de cada saber e da possibilidade de sua articulação, em que a tônica é

aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios – logo, saber e ignorância caminham juntos na Ecologia de Saberes.

Não se trata, portanto, de descredibilizar o saber científico, mas credibilizar os demais, possibilitando seu uso contra-hegemônico. Seu pressuposto é de que todo conhecimento tem limites sobre as intervenções que permitem na realidade; o conhecimento científico, além disso, tem limites em reconhecer alternativas. Não basta, portanto, socializar o conhecimento científico, tornando-o mais acessível, mas é necessário recorrer a outros conhecimentos, alternativos. Por isso é ecologia (SANTOS, 2010). A partir da criação de relações mais horizontais entre saberes, a Ecologia de Saberes também tem a potência de desconstruir hierarquias e poderes entre conhecimentos (SANTOS, 2010, p. 159).

Enfim, a Ecologia de Saberes seria, de acordo com Santos (2010), a forma epistemológica das lutas sociais emancipatórias emergentes, sobretudo no Sul, por darem visibilidade aos saberes invisibilizados pelo conhecimento hegemônico, constituindo-se como resistência ao capitalismo global, tornando visíveis as realidades sociais e culturais das sociedades periféricas.

Os conceitos e procedimentos até aqui abordados fundamentaram nossa base para a análise dos resultados deste estudo e foram escolhidos, pois, ao falarmos de aspectos voltados à população em situação de rua, referimo-nos à trajetórias, sejam das políticas e respostas institucionais, sejam das histórias das próprias pessoas - ocultadas, invisibilizadas e reduzidas à exclusão.

Assim, além do suporte teórico para apresentação e compreensão do tema, a obra de Boaventura, em seu recorte das Epistemologias do Sul e das Sociologias das Ausências, Emergências e a Ecologia dos Saberes foram compreendidas como contribuições fundamentais para análise do material produzido nesta tese, especialmente aquele referente às trajetórias trazidas nas narrativas das pessoas em situação de rua que participaram desse estudo, conhecendo os atravessamentos que o trabalho, e o desejo de se incluir nele, impõem às suas vidas e nos possibilitando compreender, a partir dessa população, os processos de invisibilidade, de desigualdade e os possíveis limites à emancipação social a partir do trabalho na sociedade moderna, bem como as estratégias que as situações limites, como a dessas pessoas, mas também como a de muitas outras,

vão sendo construídas a partir das suas experiências e tensões para continuar existindo, reinventando – quando não produzindo - as suas possibilidades de emancipação.

CAPÍTULO 2