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III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO DO ABUSO DE CONFIANÇA

2. Crime e/ou contraordenação?

O abuso de confiança fiscal é crime quando cumprido o estabelecido no artigo 105º do RGIT, como temos vindo a expor ao longo desta dissertação. Antes de se tratar de um crime é uma contraordenação regida pelo artigo 114º do RGIT.

Na aceção de Marques da Silva (2010:248) «embora o preceito não o diga expressamente, a contraordenação de falta de entrega da prestação tributária prevista nos números 1 e 2 delimita-se em relação ao crime de abuso de confiança previsto e punível pelo artigo 105º do RGIT, em razão da ausência, requerida pelo crime, do dolo do agente, da condição de punibilidade (não terem ainda decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega de prestação tributária) ou do valor mínimo de relevância penal do facto, desde que este foi introduzido». Ao crime de ACF é essencial que tenha havido retenção na fonte da prestação tributária ou a sua liquidação e cobrança (no caso do IVA, por exemplo), a falta de entrega de prestação indevidamente não deduzida constitui contraordenação de falta de entrega nos termos do nº 5 do artigo 114º do RGIT.

Verificado já em pontos anteriores o ACF consuma-se no decurso dos 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação do nº 4, artigo 105º, enquanto mora qualificada no tempo, artigo 5º, nº 2, ambos do RGIT. Os factos descritos no tipo legal de crime de ACF apenas são puníveis se tiverem decorrido mais «de 90 dias sobre o termos do prazo legal de entrega da prestação.», como evidencia Marques (2011:129) «A mora simples é cominada apenas como contraordenação uma vez que a não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com crime variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstratamente estabelecido (artigo 114º, nº 1, do RGIT).».

É precisamente neste contexto que se julga pertinente parafrasear Marques (2011), segundo o qual a notícia de um crime dá lugar à abertura de inquérito, nos termos do artigo 262º43, nº 2, 2ª parte, do CPP, procedendo assim a AT à instauração obrigatória de um processo de inquérito no caso de crime fiscal, artigo 40º, nº 1, 1ª parte do RGIT.

43 Como anotam Lopes de Sousa e Santos (2010:362), o artigo 262º do CPP refere-se «aos objectivos do

inquérito, nele aflorando uma amplitude de investigação que vai ao encontro do principio da demanda de verdade material que vem pontificando no direito processual penal»

65 Na busca de verdade dos factos apresenta-se a fase de inquérito que tem sempre lugar qualquer que seja o crime e a sua gravidade, recolha de provas e apuramento de responsabilidade que conduzem ao seu termo, à decisão final de acusar ou não.

A distinção entre crime e/ou contraordenação verifica-se precisamente nas situações explanadas no acórdão44 já analisado no ponto 1.4, (2006:13) sobre o conflito deveres/ estado de necessidade, extraído da opinião de Aires de Sousa (2006:126) onde se expõe que «para que a não entrega constitua crime de Abuso de Confiança Fiscal é necessário que a prestação tributária em causa tenha sido efectivamente deduzida ou recebida pelo agente», nos casos de substituição fiscal: «o tipo não exige o recebimento de prestação tributária» nem o poderia fazer dada a sua natureza: «quem retém na fonte não recebe de outrem», a exigência é que a retenção tenha sido feita, ou seja o substituído a tenha economicamente sofrido». Se o substituto nem sequer deduziu a prestação então não comete crime de ACF, nos termos do artigo 105º do RGIT, esta situação e a não liquidação do IVA «constituem apenas as contraordenações previstas no artigo 114º do RGIT».

Na primeira redação dada ao nº 4 do artigo 105º o facto (ACF), como recorda Ferreira dos Reis (2003:5) só era punível no «decurso do prazo de 90 dias após aquele momento, porque durante esse prazo estava nos domínios contra-ordenacionais, por força do art.º 114.º, 1 do RGIT.» Com a alteração dada ao nº 4 do artigo 105º, acrescentando a alínea b), tendo o contribuinte que ser notificado, a sua «confinação aos domínios contra- ordenacionais até é mais prolongada» logo, é claro que «não há crime enquanto não estiverem verificados os pressupostos do n.º 4 do art.º 105.º», pois como demonstra o mesmo autor «não é possível o mesmo facto ser crime e contra-ordenação», como referido na alínea d) do artigo 61º do RGIT, ao mencionar que «o procedimento por contra-ordenação extingue-se», «com a acusação recebida em procedimento criminal». Concluindo-se que o procedimento por contraordenação se extingue com o termo do prazo referido na alínea b) do nº 4, artigo 105º do RGIT, doutro modo poderia o devedor abarcar com contraordenação e ser iniciado o processo-crime.

Em face do ora relatado, não estranhará que Ferreira dos Reis (2003:6) aluda que «dizem os doutrinadores – com aceitação dos jurisprudentes – que a distinção entre o

66 facto sancionado contra-ordenacionalmente e o facto sancionado penalmente se opera ao nível da relevância da conduta - do facto punível.»

Marques (2007:144:Vol I) alude que o artigo 114º, nº 1 do RGIT prevê o sancionamento contra-ordenacional da

[n]ão entrega, total ou parcial, pelo período de 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, de prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstratamente estabelecido

Em suma, o artigo 114º - ilícito contra ordenacional, deverá ser conjugado com o artigo 105º - ilícito criminal, ambos do RGIT, cujo objeto é o abuso de confiança fiscal, conforme refere Marques (2007:133: Vol II), para que se determine se estamos perante um crime ou uma contraordenação. Ambos os artigos punem a falta de entrega da prestação tributária. Só existindo crime no caso de existir dolo e terem decorrido mais de 90 dias sobre a data em que deveria ter sido entregue a prestação tributária em falta, acrescido do prazo estabelecido na alínea b) do artigo 105º do RGIT para a notificação ao contribuinte.

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